O desespero, do Haiti a São Paulo
Roberto Romano
João Cabral de Melo Neto canta a 
desgraça da migração brasileira. O retirante Severino vai durar na 
cultura pátria enquanto existir a nossa língua. Clama aos céus perder a 
terra que nos deu a luz por vê-la transformada em cova rasa. O quadro 
tecido pelo poeta evoca a tragédia planetária de hoje.
Famélicos aos milhares procuram tênues promessas de 
vida. Os países procurados por eles os julgam inimigos a serem expulsos.
 Tal enredo repete milênios da humanidade. A nossa principal matriz 
ética, o povo israelita, até data recente sofreu exílio, pogroms, 
perseguição de potências estatais. Nossa alma está vincada pelos versos 
de Camões em Sobolos Rios, que entoa o desconsolo de quem perdeu Sião. O
 sopro da morte ameaça os sobreviventes, espalha dores em tempos frios.
Santo Agostinho usou aquele salmo para afirmar o exílio dos 
homens na cidade terrestre. No mundo, o banimento do lar é 
incontornável. A oração mais profunda e bela dos cristãos, dirigida à 
Virgem, afirma o sofrimento de quem perdeu a pátria. “A ti clamamos, 
exilados filhos de Eva (…) neste vale de lágrimas”.
Lamento doloroso também em Ulisses, longe de Ítaca e dos seus.
 No Brasil temos várias formas de queixume pela expulsão da própria 
terra. Gonçalves Dias testemunha.
O papa Francisco leva uma batalha quase solitária em defesa 
dos imigrantes que, ao perder a vida no berço familiar, enxergam futuro 
em países onde ainda são mantidas garantias, como o direito de viver. 
Conhecedor da cultura judaica e sapiente quando se trata da vida 
internacional (recordemos, ele é jesuíta), Francisco eleva a voz para 
tentar, esforço desesperado, salvar existências. Ele sabe, melhor do que
 muitos governantes, que o problema reside nas relações assimétricas de 
poder – econômico, bélico, religioso – na cena mundial. Mesmo assim 
defende corpos dissolvidos por oceanos – e coiotes.
Retornou à pauta brasileira o caso dos haitianos que fogem em 
busca de subsistência própria e familiar. Eles chegam ao Acre tangidos 
por hienas que se aproveitam de carne humana enfraquecida. Dali são 
postos em comboios para São Paulo, como pacotes incômodos. Depois 
recebem acolhimento da Igreja Católica paulistana e de demais organismos
 humanitários. Tudo ocorre como se o Brasil nada tivesse com a tragédia 
de sua terra.
Mas temos responsabilidade pelo Haiti. Aquele país foi o 
primeiro das Américas a romper o jugo colonial racista. Ele paga até 
hoje a suprema audácia de se definir como livre. A má consciência 
brasileira diante da catástrofe haitiana vem de longa data. E nossas 
instituições políticas, acadêmicas, bélicas agem como se o uso da força 
física resolvesse uma situação gerada pelos grandes interesses 
internacionais. Os golpes de Estado no Haiti não brotaram do nada: eles 
executaram exigências hegemônicas, como a europeia e norte-americana, e 
os alvos políticos de potências menores, como o Brasil.
Para captar a questão haitiana no seu todo existem trabalhos 
acadêmicos que deveriam ser mais discutidos na mídia e nos câmpus. É 
difícil de entender, por exemplo, o que se passa hoje no Acre e em São 
Paulo sem a consulta de um livro publicado em 2014 por Ricardo 
Seitenfus: Haiti, Dilemas e Fracassos Internacionais (Editora Unijui). O
 pesquisador descreve com exatidão e firmeza a gênese da catástrofe, 
pois não apenas a estudou, mas seguiu missões diplomáticas no país. Seus
 primeiros capítulos abordam os furos negros da consciência ocidental 
diante daquele povo. Autoridades e comentaristas puderam falar, sem 
enrubescer, que o país “pode existir como um grande vilarejo de marrons,
 um quilombo ou um palenque. Mas jamais será aceito no Concerto das 
Nações”.
Seitenfus relata os sucessivos golpes de Estado e a presença 
da força internacional que, em vez de ajudar a democracia haitiana, 
ampliou um podre lodaçal de incertezas, arrogância, morte. Corajoso, ele
 não hesita em caracterizar o pensamento brasileiro, incluindo o de Frei
 Betto sobre o Haiti: “Difícil seria encontrar maior primor de 
desinformação e, para um homem de fé, maior testemunho de como 
utilizá-la malevolamente”. Começa o leitor a entender a má vontade para 
com o livro: ele não poupa a direita, a esquerda e o centro do cenário 
ideológico nacional. O silêncio é a pena de morte de toda escrita 
realmente crítica.
A missão “pacificadora” liderada pelo nosso país custou muito 
em vidas, finanças e rompimento com os valores democráticos. A sua 
verdade aparece no ditado haitiano: “A Constituição é feita de papel, ao
 passo que a baioneta, de ferro”. Vivemos longos anos sob o comando da 
baioneta e percebemos o pouco valor da Constituição numa tirania. “Às 
favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos”… 
Não posso, aqui, seguir todos os dados históricos, sociais, 
econômicos expostos por Seitenfus. Seu livro incomoda os que, podendo 
denunciar a força como política, preferem a emoção barata diante da 
miséria que, digamos, é partilhada pelo Haiti e pela nossa gente. A 
culpa da tragédia haitiana, no Brasil, não vem apenas do Acre nem de São
 Paulo. Ela tem origem na História colonial, na violência da razão de 
Estado acostumada a jogar a sorte de povos na voragem dos rios, em 
tristes Babilônias.
Termino citando o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira: 
“Como exercício militar a Minustah (United Nations Stabilization Mission
 in Haiti) é excelente. No entanto, como Operação de Paz, ela não tem 
mais sentido”. Ao ler as páginas de Seintefus, é possível interrogar: 
essa missão teve algum dia sentido regenerador e democrático?
Jaques Wagner, ministro da Defesa, anuncia o final da 
“pacificação” para 2016, o que deveria ser uma boa notícia. Mas a ferida
 aberta no Haiti continuará sangrando, com a silente cumplicidade 
brasileira.
*Roberto Romano é professor da Unicamp, autor de ‘Razão de Estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)


 


