sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

http://veja.abril.uol.com.br/blog/genetica/20090101_dia.shtml


Genética

Mayana Zatz

Geneticista e diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano (USP) | email: mayanazatz.ciencia@gmail.com



Criacionismo nas escolas

Eu gostaria de saber o que a senhora acha do ensino do criacionismo nas escolas?
(Natalia)

Como cientista não posso acreditar no criacionismo embora defendo o princípio de que todos saibam a diferença entre a teoria científica da evolução e o criacionismo. Também não sou contra que isso seja discutido nas escolas, mas, na minha opinião, isso só poderia acontecer quando os alunos tivessem a maturidade para entender a diferença entre uma teoria baseada na pesquisa científica de outra de cunho religioso. Por exemplo, em aulas de filosofia discutir as duas correntes, sem tomar partido, seria muito interessante. Para falar desse assunto, entrevistei a doutora Roseli Fischmann, professora titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, que está diretamente envolvida nesse debate.

Por que voltou a polêmica entre o criacionismo e o evolucionismo?
A expressão "voltou" é bem feliz, porque em 2004 houve uma polêmica bastante intensa no Rio de Janeiro, sobre o que se fazia com publicações no meio científico. Mas de forma mais imediata, há dois aspectos. Primeiro, veio à tona o fato de que algumas escolas confessionais tradicionais em São Paulo estavam ensinando criacionismo nas aulas de ciências, inclusive com os livros didáticos ali adotados trazendo essa abordagem, e os ânimos se inflamaram. Houve os que defenderam que as escolas confessionais poderiam fazer o que bem entendessem, por serem particulares; e houve os que as acusaram de obscurantismo, por ensinarem como ciência o que é conteúdo de religião. O outro aspecto é que o debate sobre a laicidade do estado tomou força a partir do final de 2006 junto à opinião pública, e em particular quando da visita do papa Bento XVI ao Brasil em maio de 2007. Recentemente o governo brasileiro assinou um acordo internacional no Vaticano que tem impacto sobre a vida da população brasileira, e que passará pelo Congresso Nacional, para ser ou não ratificado. O impacto do caráter laico do estado também ficou claro, por exemplo, no debate no STF sobre as pesquisas com células-tronco, onde sua atuação, como cientista foi tão decisiva para permitir que se continuasse a pesquisar com liberdade, auxiliando a tantos.

Parece, então, que além do debate científico há vários fatores envolvidos nessa temática?

Sim e não. Sim, porque há questões ligadas à estrutura do sistema escolar brasileiro e ao funcionamento das escolas privadas em comparação com as públicas; e porque envolve crianças e adolescentes, arrastando consigo uma série de outros aspectos sociais e culturais, como argumentos de fundo religioso, que precisam ser analisados com discernimento. E ao mesmo tempo não, porque é preciso destacar que o ponto mais importante nesse debate é a definição que a ciência pode dar às questões ligadas ao tema, daí a relevância de que cientistas, como é seu caso, envolvam-se em esclarecimentos à sociedade.

Sua resposta me lembra o debate das pesquisas com células-tronco embrionárias. Seria possível traçar uma linha demarcatória entre a religião e a ciência, no contexto da educação?

Sem dúvida. Estudantes mesmo muito novinhos podem entender que a ciência é uma conquista da humanidade, que tem servido à melhoria da qualidade de vida no planeta. Confundir os argumentos, invocando visões religiosas sobre a origem da vida, das espécies e do universo - que são tantas quantas religiões e espiritualidades existem sobre a face da Terra -, como sendo do mesmo tipo que as teorias científicas, não serve a nada e a ninguém. Concordo que , em níveis mais avançados, como no ensino médio, esse é um tópico excelente para ser tratado em aulas de filosofia, por exemplo.

Qual é a grande diferença, na sua opinião, entre o pensamento científico e o religioso?

Religiões, que merecem todo respeito enquanto religiões, são aceitas por seus adeptos como fruto de revelação, inspiração divina e iluminação. Por isso, não podem ser contestadas com os mesmos tipos de argumentos que se usam na ciência, até em nome da liberdade de crença e de culto. Já a ciência se funda no questionamento e no progresso contínuo, no escrutínio entre pares, ou seja, cientistas devem satisfação do que fazem aos demais cientistas, com base em métodos científicos, e é isso que lhes dá, ou não, reconhecimento. Os cientistas, para ter credibilidade, precisam comprovar as suas hipóteses o que só ocorre se elas puderem ser replicadas por outros. A ciência não depende da religião para existir e produzir, o que parece gerar um tipo de rivalidade por parte de algumas religiões, que pretendem submeter as ciências às suas normas e valores. As religiões não devem se sentir ameaçadas pelas ciências, como não deveriam se sentir inclinadas a invadir a esfera da política pública, que se dirige a todos da cidadania, independentemente de religião. Se tiverem uma mensagem que sensibilize o seu adepto nesse recôndito humano, que é a consciência, nada as impedirá de influenciar essas pessoas; e será no íntimo de cada um que se fará, ou não, essa conciliação entre o que dita a religião e o que investiga a ciência.

Como cientista, defendo que nas aulas de ciências se ensine apenas evolucionismo, é claro. Como o sistema educacional brasileiro trata essa questão?

Desde 1997 está em vigor uma série de documentos para todas as escolas do Brasil, intitulado "Parâmetros Curriculares Nacionais", dentre os quais estão os documentos referentes a ciências. Foram fruto de um processo que envolveu pesquisadores e professores com prática da Educação Básica, redigindo versões que tomaram como base as mais avançadas propostas de educação, em nível nacional e internacional,. O conjunto dos documentos está disponível no site do MEC. Em todos eles a questão é tratada, obviamente, apenas a partir do tema do evolucionismo. Há um tema transversal dos PCNs, que redigi, denominado Pluralidade Cultural. Nesse documento há espaço para se falar de culturas, e tratar da diferença entre o que se constrói culturalmente e a busca científica.

Que diferença existe entre uma escola particular e uma escola pública, no que se refere a esse tema?

Entre as escolas não pode haver diferença no que se refere a esses conteúdos propostos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC. Visam definir uma referência comum a todos os estudantes do Brasil, sem tirar a liberdade da escola estabelecer seus planos de trabalho. Do ponto de vista dos direitos dos estudantes é indispensável que as escolas tenham a mesma base, até porque o direito de acesso à ciência é para todos, como o acesso à educação. O caráter confessional é plenamente reconhecido pela lei, desde que o eixo religioso da escola não submeta o eixo ligado à educação nacional. Ao funcionar regularmente, ou seja, atendendo os preceitos legais e normativos oficiais, essas escolas privadas e comunitárias, confessionais ou não, somam-se às escolas públicas, formando o sistema escolar, o qual propicia, portanto, que os pais possam escolher o tipo de educação que querem dar a seus filhos. Se as escolas confessionais quiserem ensinar criacionismo na aula de religião, poderão, é claro; mas não na aula de ciências. A ciência como obra humana auxilia o estudante de todas as idades a entender a natureza e os fenômenos biológicos, as responsabilidades que lhe são inerentes como cuidar do planeta , o respeito devido a cada ser humano, em sua dignidade inalienável. O papel da ciência, como praticada pela comunidade cientifica, é insubstituível.

Quero aproveitar para desejar a todos vocês, queridos leitores, um super feliz Natal e 2009.