Patrícia Cruz/LUZ - 09.09.10
Romano: 'No senso comum quem vence na vida ganha privilégios'
Em um sistema político republicano sólido, os bens ou tudo o que é considerado público não pode ser usado para fins pessoais ou para favorecimento de amigos ou familiares dos gestores governamentais. É da natureza deste regime político – contraponto ao absolutismo da monarquia –, que os recursos públicos sejam destinados para o benefício de toda a sociedade. No Brasil, entretanto, há a cultura dos privilégios proporcionados pelos próprios bens públicos. Essa cultura, difundida em toda a sociedade, torna inclusive "aceitável" para a população que os filhos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenham o privilégio de receber passaportes diplomáticos do governo brasileiro mesmo depois do pai deixar a Presidência. A análise é do filósofo e cientista político Roberto Romano, professor de Ética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em entrevista ao Diário do Comércio, o professor vê os privilégios como uma falha no desenvolvimento educacional e político do próprio povo – que ainda acredita: vencer na vida é destacar-se da sociedade mesmo "levando vantagem" sobre os outros. Veja a seguir os principais pontos da entrevista:
O presidente Lula, com toda sua popularidade, não deveria dar o exemplo ao povo contra os privilégios negando os passaportes diplomáticos concedidos aos seus filhos?
Roberto Romano – Se você conversar com as pessoas mais pobres, menos esclarecidas, verá que elas aceitam os privilégios de Lula na Presidência. A grande maioria da população aceita esses privilégios para quem considera poderoso e acima das instituições. Para essa população, Lula é uma pessoa pobre, do povo, que chegou lá e por isso tem o direito de ter privilégios. O próprio ex-presidente aceita naturalmente essa situação. Para Lula, como para toda a nossa cultura, é normal que os políticos e chefes de Estado tenham privilégios. No senso comum brasileiro isso é uma forma de expressar que a pessoa venceu na vida e ganhou o direito aos privilégios.
Vemos a atenção aos privilégios também no PT depois de assumir a Presidência da República com seu candidato Lula...
Romano – O PT sempre lutou contra os privilégios das elites. Quando se viu no poder passou a lutar de todas as formas para receber os mesmos benefícios. Vemos isso claramente no comando das estatais. Esse comportamento não é privilégio só do PT. Os demais partidos políticos brasileiros também reproduzem a mesma qualidade quando estão no poder.
O senhor acredita que a população brasileira ainda vai reagir à questão dos privilégios?
Romano – Vamos avançando aos poucos. Depois de muito debate, temos hoje a lei da Ficha Limpa, uma grande conquista da sociedade brasileira. Vamos avançar em questões pontuais já que a sociedade brasileira não reage por seus direitos, como em outros lugares do mundo. Vemos notícias de países e continentes, como a Europa, onde mínimas mudanças nos diretos civis geram grandes protestos e tumultos. No Brasil, não. Vemos aqui um povo que recebe os privilégios como algo natural. Veja os aumentos dos salários dos parlamentares há pouco. Não recebeu reação contrária da população.
Aceitamos naturalmente a mistura entre o público e o privado nesse caso?
Romano – Ainda carregamos a marca do absolutismo em nossa sociedade. No absolutismo, o soberano, o rei, concentra todo o controle da guerra, da polícia e da arrecadação de impostos. E para garantir a fidelidade de seus súditos, ele "compra" o apoio da nobreza e do clero com privilégios e isenções. O sistema das monarquias foi combatido pela burguesia. O problema é que no Brasil não tivemos revoluções vitoriosas como em países como Inglaterra, Estados Unidos e França, que instalaram a democracia. Nós aqui ainda vivemos esperando favores dos soberanos. Isso ainda está impregnado em nossa sociedade e só a educação política é que poderá mudar esse quadro.