Ricardo 3
Cada rosto humano reúne um palimpsesto de expressões diferentes. Nenhum retrato exprime perfeitamente os segredos da alma, pois esta última ao mesmo tempo se esconde e se revela nas dobras da pele. Denis Diderot, filósofo dedicado a mil coisas, sobretudo ao teatro, falou de si mesmo neste sentido: “eu tinha num só dia cem faces diversas, segundo a coisa que me afetava. Era sereno, triste, sonhador, terno, violento, apaixonado, entusiasta”. Trata-se do mesmo escritor que produziu um personagem plural, o vagabundo e gênio sem talento, Jean François Rameau. Este existiu realmente, ([i]) mas foi transfigurado por Diderot num paradigma da cultura ao encarnar em seu corpo e alma o Mesmo e o Outro, a bondade e o crime, o belo e o feio, a elevação moral e a sordidez. Encenado muitas vezes, O Sobrinho de Rameau evidencia o quanto é árduo levar ao palco um escrito sublime. É preciso perceber, pensa o teatrólogo Diderot, que mais nos emocionamos numa peça “com os gritos, as palavras inarticuladas, as vozes que se quebram, alguns monossílabos que escapam por intervalos, não sei bem qual murmúrio na garganta, entre os dentes”. O teatro se afirma quando as palavras cedem lugar ao silêncio e aos rosnados da fera humana.
Tal visão do palco liga-se à doutrina formulada por Diderot sobre o artista. Este deve ser frio e técnico, capaz de imaginar modelos e de segui-los sem emoções, justamente para que a platéia tenha sempre diante de si vozes que se quebram e outras experiências apaixonadas, sempre novas e convincentes. Se o ator sentir mais e fingir menos, ele se esgota e os personagens perdem a capacidade de encantar, alegrar, aterrorizar, enojar. Para bem estabelecer o treino do artista, recomenda Diderot a reabilitação da mais antiga forma teatral existente, a pantomima. “Perdemos uma arte, cujos recursos os antigos conheciam bem. A pantomima desempenhava outrora todas as condições, os reis, os heróis, os tiranos, os ricos, os pobres, os habitantes das cidades, os do campo, escolhendo em cada estado o que é mais próprio; em cada ação, o mais notável.” O silêncio na cena é estratégico. Sem ele, impera o palavrório. Lady Macbeth caminha silenciosamente, olhos fechados, imita o ato de uma pessoa que lava as mãos, como se estivessem ainda manchadas pelo sangue do rei degolado há muito tempo atrás. “Não conheço nada mais patético do que o silêncio e o movimento das mãos desta mulher” exclama Diderot. No século 18 francês, nosso filósofo era dos poucos admiradores de Shakespeare, considerado violento e bárbaro pelos que exigiam pudor e decorum.
Silêncio, unidade e pluralidade dos personagens, a receita é antiga como a retórica —grega e romana—, velha como o teatro e a literatura. Todos os indivíduos humanos são capazes de apresentar de si mesmos múltiplas caras. Eles também recebem diversas máscaras, pregadas sobre o seu rosto pelos amigos e inimigos. Assim ocorre no mundo político e filosófico. Basta pensar nas inúmeras representações de Maquiavel, visto como demônio, patriota, democrático, fomentador de tiranias. ([ii]) O mesmo ocorre com Platão, alcunhado como pai do totalitarismo ou como lúcido crítico dos defeitos democráticos. Algo similar se passa com Rousseau, Hegel, Marx e toda uma série de pensadores transformados em personagens trágicos ou ridículos da história. Nenhum deles, é claro, adquiriu a densidade alcançada por Sócrates, ser que resume todas as tragédias e comédias do universo ético ocidental.
Quando deixa a vida biológica e penetra a cultura da humanidade, todo personagem importante multiplica ainda mais a sua face e passa ao registro mitológico. Não é preciso que o indivíduo seja um Sócrates, basta que ele represente algum setor da existência com densidade maior do que a levada pelos mortais comuns. Etiemble publicou há muitos anos um livro excelente sobre o mito de Rimbaud. Nele, mostra que o poeta, a cada momento histórico, recebe um rosto diverso. Temos certo Rimbaud comunista, outro católico piedoso, outro homosexual debochado e cruel, outro mercador de escravos, etc. ([iii])
Shakespeare é exímio na arte de apresentar personagens que se transformam em múltiplos. O mais terrível tem o nome de Ricardo 3. John Norwich mostra duas interpretações “historicas” do rei maldito. ([iv]) A primeira, mais prestigiosa, tem a marca de Thomas Morus. Ricardo, para aquele santo católico e mártir, é um monstro sedento de poder, capaz de todas as vilanias para garantir o trono. Ele seria a perfeita manifestação do maquiavelismo. A segunda forma de o considerar é defendida por Horace Walpole e outros. As duas vertentes apresentam um soberano atormentado pelo mando, seja para raptá-lo com dolo supremo, seja expulso dos palácios com o mesmo dolo, mas por seu rival Henrique 7. Este último seria o verdadeiro demônio do maquiavelismo. Shakespeare vai além das duas vertentes e expõe um personagem capaz de trair os arcana do Estado e dos indivíduos particulares, das pessoas supostamente boas e honestas e dos seus representantes malditos. Ricardo rompe a hipocrisia dos bem pensantes, dos fariseus universais, dos que insultam os políticos mas os corrompem se encontram oportunidade.
Entre os vários ângulos da face atormentada exibida por Ricardo, o histriônico foi exposto com segurança por Jacek Woszczerowicz em 1958, na Casa de Cultura de Varsóvia. ([v]) Aquele ator foi o primeiro a construir o personagem do tirano com meios cômicos. O canalha real encara tudo e todos como risíveis, nada é sério, desaparecem os tristes valores. Nenhuma pessoa ou cargo merece reverência ou respeito. Trata-se de um riso cujo significado só é percebido pelos que possuem entranhas e cérebros e são capazes de penetrar no universo da sátira.
Shakespeare integra a galeria dos que, à semelhança de Aristófanes, Juvenal, Quevedo, Swift, “designam os limites humanos, ultrapassando-os impiedosamente”. Ao criar o poderoso bufão, o poeta também “joga os homens num tal medo que isto os empurra para adiante de seus limites”. ([vi]) Woszczerowicz percebeu algo penoso : os milhões sacrificados na liturgia totalitária, dos judeus aos combatentes em favor ou contra o nazi-fascismo, surgiram do riso que acolheu os ditadores quando estes ainda estavam no casulo. Eles brotaram da inconsciência de quem se julgou seguro sob a polícia, os tribunais, os bancos e as igrejas. Atoladas na ordem cotidiana, as “elites” não perceberam o quanto os inofensivos palhaços tagarelas eram a epifania do niilismo que regia as suas vidas enfatuadas e confortáveis. Elas não levaram a sério as bravatas. No “reino animal do Espírito” (o termo é de Hegel), as hienas vencem quando os leões se afastam. Também no teatro, o que não se pode falar, deve-se calar. O riso entra no intervalo entre o não dito e o insuportável. Poucos escritores e poetas conseguem transmitir esta experiência do homem,“ridicolosissimo eroe” na perfeita caracterização do autor cômico que redigiu as Cartas a um Provincial (sobretudo a de número 11) e os Pensamentos. ([vii]) É lamentável a carência de filósofos como Pascal, no mundo moderno!
[i] Cf. A. Magnan : Rameau le neveu, textes e documents (Paris, CNRS Éditions, 1993).
[ii] Cf. Lefort, C.: Machiavel, le travail de l ´Oeuvre (Paris, Gallimard, 1973).
[iii] Cf. Etiemble : Le mythe de Rimbaud (Paris, Gallimard, 1961).
[iv] Cf. Norwich, J. : Shakespeare´s Kings (London, Penguin, 2000).
[v] Cf. Kott, J. : Shakespeare, notre contemporain (Paris, Payot, 1978).
[vi] Canetti, E. : Le Territoire de l ´Homme (Paris, Albin-Michel, 1978).
[vii] “O espírito do maior homem do mundo não é tão independente (…) não vos espanteis se ele não raciocina bem neste momento: o ruído de pequena mosca incomoda seus ouvidos. Basta isto para torná-lo incapaz de bom conselho. Se quereis que ele encontre a verdade, afastai o animalzinho que impede a sua razão e inferniza a poderosa inteligência que governa cidades e Reinos”. (Pensées).