Fui torturado e posto no 'trono do dragão', diz professor vítima da ditatura
“É preciso romper com a prática do favor, que desgraça nossas relações sociais e políticas!”. - diz o Professor Roberto Romano da Silva
Professor Roberto Romano da Silva
Tácito Loureiro
Professor universitário frequentemente chamado para emitir opiniões
políticas na televisão e em outros meios de comunicação, Roberto Romano
da Silva é um acadêmico conhecido no país. Nesta entrevista exclusiva,
comenta temas de grande interesse nacional (exemplo: as eleições).
O entrevistado, conhecedor de vários idiomas, demonstra o
conhecimento de quem não cai na arrogância intelectual, típica dos que
se julgam “donos da verdade”.
É graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1973), Doutor
em Filosofia pela École des hautes études en sciences sociales (1978),
Livre Docente e Titular pela Universidade Estadual de Campinas (1991).
Atualmente, trabalha na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
no Departamento de Filosofia. Dedica-se ao estudo de alguns eixos
fundamentais: Direitos Humanos, Século das Luzes (especialmente ao
pensamento de Denis Diderot, grande democrata do século 18), Teoria do
Estado. Prepara no momento a edição de um livro (de autoria própria)
sobre a razão de Estado.
Confira a entrevista, onde Roberto Romano da Silva conta o que passou na época da ditatura, na prisão.
Prefere ser chamado de “você”, “senhor” ou “Professor Doutor”?
Roberto Romano da Silva. Pelos amigos íntimos e os que trabalham
comigo, prefiro ser chamado de “você”. Como, entretanto, o mundo
coletivo é um lugar de responsabilidades e papéis, para o público
costumo usar o título de “professor”, por respeito ao mesmo público e à
minha profissão, que busco honrar.
Recordo sempre que os judeus, quando presos nos campos de
concentração, perdiam o nome e os qualificativos profissionais. Então,
não eram mais considerados, não mais recebiam tratamento de
“professores”, “médicos”, “juízes”, “advogados” e nem mesmo o pronome
“vós” lhes era devido. Eles eram tratados como “tu” e pelo número que os
levaria à morte.
O nome pessoal e o qualificativo profissional entram na “persona” dos
indivíduos, integram a alma deles nos tratos com a sociedade, o estado,
etc. Tenho por norma chamar meus estudantes (muitos ainda adolescentes
de fato, com no máximo 18 anos) de “senhor” e “senhora”: para acentuar
que, na universidade, partilham a cidadania que merece respeito. Faço o
mesmo com os jovens ou adultos postados atrás de um balcão de padaria,
com os garis que varrem minha rua, e outros.
Certa vez, me dirigi a uma pessoa idosa como “senhora”. Ao receber a
resposta habitual (“Senhora está no céu!”), disse a ela que o tratamento
de “senhor” ou “senhora” indica a dignidade cidadã e que mesmo os
operadores ímprobos do estado (nos Poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário) exigem o título de “excelência” (cuja origem está no povo
soberano, que deve ser o senhor da república).
Infelizmente, no Brasil, perdemos tal noção de respeito e nos
encontramos em plena destribalização. E a coisa mais lancinante é
encontrar um grupo de indígenas sem tribo, sem ritos, sem títulos.
Ah, o dado segundo o qual os judeus perdiam os títulos (“Senhor”,
“Senhora”, “Doutor”, “Doutora”) pode ser lido no livro amaríssimo de
Bruno Bettelheim: The informed heart, the human condition in modern mass
society (O coração modelado, a condição humana na moderna sociedade de
massas).
Fale a respeito da sua formação acadêmica: Onde estudou? Há experiências marcantes neste período?
Estudei em escolas públicas e particulares, na época do secundário.
Depois, segui cursos na Escola Apostólica Dominicana, em Juiz de Fora -
MG e São Paulo - SP. Segui para o Instituto de Filosofia e de Teologia
nesta última cidade. Finalmente, graduei em Filosofia pela Universidade
de São Paulo (USP) onde também cursei a pós-graduação em Filosofia. Em
Paris, na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, fiz o curso de
Doutorado (apresentei a tese de Doutorado em 1978).
Para mim, foi uma oportunidade rara seguir cursos com grandes nomes
da História (como o historiador Jacques Le Goff), da Antropologia
Filosófica (como Jean-Pierre Vernant), e da Filosofia (filósofos
políticos como o meu orientador: Claude Lefort). Foi marcante a
interrupção de meu curso de Filosofia na USP, devido à prisão que me
reteve mais de ano no Presídio Tiradentes. Sai de lá e depois fui
absolvido (absoluta falta de provas e inexistência de crime) por um
tribunal composto por militares e por um juiz togado. Aprendi muito
sobre o mundo humano na prisão, sobretudo consegui entender melhor o
pensamento de Maquiavel e de Hobbes.
Quando foi preso?
Em final de 1969, quando o regime estava mais rígido e repressor
(garantido pelo Ato Institucional número 5). Fui arrolado no processo da
Aliança Libertadora Nacional (ALN), dirigida por Carlos Marighella.
Mas, como ficou patente durante o interrogatório e no processo
judicial/militar, não tinha culpa a ser punida. Daí, a absolvição por
absoluta falta de provas e inexistência de crime. Só que a absolvição
durou anos para chegar. Antes dela, fiquei mais de ano no Presídio
Tiradentes, em São Paulo.
Para onde foi levado?
Fui preso na porta do Convento dos Dominicanos, no bairro Leme (na
cidade do Rio de Janeiro) e levado ao Centro de Informação da Marinha
(CENIMAR).
No mesmo dia, fui conduzido para o Departamento de Ordem Política e
Social (DOPS), localizado em São Paulo. Após as torturas de praxe (no
comando do Delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury), segui ao Presídio
Tiradentes.
Além de meu advogado (o corajoso e lúcido Dr. Mario Passos Simas),
recebi assistência da minha família, dos padres dominicanos e,
sobretudo, de Dom Paulo Evaristo Arns.
Viu alguém ser torturado? Apanhar?
Fui torturado. Não como os meus companheiros de prisão, mas fui posto
no “trono do dragão” (um aparelho televisivo ao lado de grande cadeira
onde recebíamos choques elétricos), etc.
Raros foram os presos políticos naquele momento político que não
receberam um tratamento torcionário. Vi muitas pessoas destruídas (pelos
interrogatórios), em uma atmosfera de medo perene: quando alguém era
retirado da cela (do Presídio Tiradentes), quase sempre era para voltar
ao trono do dragão, ao pau de arara, e a outros métodos violentos.
Como foi a experiência na prisão?
Foi um pesadelo continuado, implacável. Não tínhamos como apelar
contra o violento arbítrio. A coragem dos advogados que defenderam os
presos políticos ainda está a esperar um livro, que lhes reconheça os
méritos.
Como disse, percebi o quanto o Leviatã hobbesiano pode esmagar almas e
corpos. Desde então, abomino ditaduras (de direita, esquerda,
religiosa, laica...) e me levanto contra os golpes de Estado. Aliás, o
tema (os golpes políticos, as ditaduras) será discutido por mim no meu
próximo livro, algo em torno de 400 páginas sobre a razão de Estado.
Só é possível perceber o valor da ordem democrática quanto esta
falta. Fico sempre indignado com pessoas que, ao ignorar o que se passou
nas ditaduras Vargas e na militar/civil de 1964, dizem, com a desculpa
de combater a corrupção e outras coisas mais, desejam novamente o regime
ditatorial. Naqueles tempos terríveis, ninguém estava a salvo do
arbítrio. Ninguém mesmo! Muitas famílias que apoiaram o golpe de 1964
tiveram filhos, pais, mães, subtraídos ao convívio íntimo e jogados,
como lixos, nas masmorras.
Combater a corrupção por meios ditatoriais é cruel e ao mesmo tempo
ineficaz. Quando os ditadores deixaram o poder, os corruptos de sempre
continuaram a faina (aliás, não interromperam sob o regime de exceção).
A corrupção não é essencial à democracia. Nos regimes autoritários,
fica escondida sob o pano. Subtraída à opinião pública (devido à
censura).
Após o término da ditadura, o senhor foi indenizado pelo Estado?
Meu advogado entrou com o pedido de anistia, embora eu tenha sido
absolvido plenamente, porque as minúcias jurídicas assim o exigiram. Se
algum dia for indenizado, doarei a soma, que certamente será pequena, a
uma obra de caridade. Meu caso até hoje não foi analisado por quem de
direito. Não sou amigo da corte...
Como as pessoas podem estabelecer algum contato com o senhor?
Podem se comunicar comigo por meio do Departamento de Filosofia, por
carta (meio preferido por mim). Não sou adepto às redes sociais (meu
perfil no Facebook não é usado) e, sinceramente, mesmo o e-mail é
complicado: obriga-me a responder na velocidade do veículo de
comunicação, o que vai contra a minha noção de mundo e de trato humano.
O que lhe move? O que lhe dá entusiasmo para realizar tantas atividades intelectuais?
Acredito em Deus, nos valores religiosos e humanos acima de tudo. Não
creio ser entusiasmado, mas comprometido com a melhoria de nossa vida
coletiva.
Tenho defeitos graves, mas não me julgo proprietário do verdadeiro.
Por isso procuro dialogar em artigos, livros, entrevistas, com o maior
número possível de entes humanos inteligentes.
O que mais me aborrece é a militância que não reflete sobre si mesma,
sobre os limites e os possíveis erros dela. O dogmatismo, cedo ou
tarde, resulta em assassinato de almas.
Das diversas obras que publicou, há alguma que destacaria ou não? Onde é possível encontrar os teus livros para comprá-los?
Publiquei vários livros. Até hoje, tenho predileção por um volume
pequeno intitulado: Conservadorismo romântico, origem do totalitarismo.
Também penso ser de bom proveito, para quem se interessar, o livro sobre
Diderot, que publiquei na Editora Senac: Moral e ciência: a
monstruosidade no século 18.
Quando começou a se interessar pela Política? Por quê?
Em 1961, ano de muitos abalos políticos e sociais no Brasil. Em 1962,
segui um curso para ser monitor do método Paulo Freire, na cidade de
Marília-SP. O curso era coordenado por dois professores da Faculdade de
Filosofia de Marília: Ubaldo Martini Puppi e Antonio Quelce Salgado.
Como resultado do curso, foram expulsos da Faculdade em 1964. Só
voltaram anos depois. Em 1964, fui presidente da entidade estudantil da
Escola Amilcare Mattei, na mesma cidade. Senti toda a pressão dos que
tinham vencido com o golpe. A partir daí, me dediquei à crítica, à
teórica e à prática, em relação ao regime ditatorial.
Politicamente, o Brasil do presente é melhor do que o país do passado? Como o senhor enxerga a trajetória política brasileira?
Creio que apenas Deus possui uma visão absoluta das coisas humanas e
naturais. Apenas Ele pode dizer se uma coletividade melhorou ou piorou.
Não raro, temos uma visão preconceituosa do passado: achamos que ele
seria melhor ou pior.
Existem dados estatísticos sobre a criminalidade, por exemplo, que
comprovam: a Inglaterra do século 18 era bem mais violenta do que a
atual, o que choca o senso comum, segundo o qual hoje a situação é pior.
Além disso, precisamos saber se melhorou em qual aspecto, ou piorou
em qual sentido. Como os homens não são anjos (e mesmo Lúcifer, o anjo
mais luminoso, pecou...) eles progridem para o melhor, mas sempre
guardam a tentação do pior.
No mundo, por exemplo, após Auschwitz-Birkenau devemos esperar tudo,
no pior sentido, do ser humano. O mesmo vale para o Brasil. O país
seguiu para o interior, deixando a faixa litorânea, diminuiu bastante a
miséria que imperava nos anos 60 do século passado, alargou horizontes
intelectuais, etc. No entanto, ainda na atualidade o país é uma terra de
injustiças, insegurança coletiva, desigualdades.
Ano eleitoral. Eleitores costumam, muitas vezes, sentirem dificuldades na hora de decidirem o voto. Há algum critério que queira compartilhar com as pessoas, a fim de ajudá-las no momento dessa escolha?
O primeiro passo, arrisco dizer, é seguir a vida passada do
candidato. Alguém que não paga as contas, que não se interessa pelos
problemas coletivos, que não tem escrúpulos para “subir na vida”,
dificilmente será o legítimo representante de interesses sociais:
defenderá sempre os próprios interesses.
O segundo passo é conversar com os amigos, os vizinhos, o pastor, o
padre. Com todas as pessoas que seguiram a vida do candidato. Graças à
lei da ficha limpa, o trabalho de análise do Curriculum Vitae dos que
postulam cargos públicos foi muito facilitado.
O terceiro é saber se o partido ao qual ele adere tem compromissos de
fato com a sociedade, ou se é uma agremiação que defende alianças
espúrias (com a desculpa de “realismo”). Quem é assim, realista no plano
dos programas, será com certeza realista (ou seja, ímprobo) com os
recursos públicos.
Ainda, é preciso saber o que o candidato propõe fazer uma vez no
cargo. Quando votamos, escolhemos uma via de política pública e depois
um nome. Trocar a ordem é nos arriscar a não ter um representante, mas
sim um patrão na Câmara e na Prefeitura.
Qual é o Brasil que deseja ver acontecer e o que é preciso para alcançá-lo?
O Brasil da igualdade, da liberdade, da fraternidade. O Brasil sem
injustiças! Sem donos do Estado ou da sociedade civil! É preciso romper
com a prática do favor, que desgraça nossas relações sociais e
políticas! O Brasil a ser alcançado é aquele no qual nunca mais
ouviremos a pergunta obscena: “Sabe com quem está falando?”.
Não somos eternos. Como o senhor quer ser lembrado pelas futuras gerações?
Prefiro ser eterno, junto a Deus. Esquecido pelos que ainda permanecem no tempo e no espaço.
Conhece o Mato Grosso do Sul ou gostaria de conhecê-lo?
Estive de passagem por esta bela terra, para encontros acadêmicos. Gostei muito!
Quer deixar alguma mensagem final à sociedade, em especial à sul-mato-grossense?
Que Deus esteja com todos. Paz e prosperidade!