Ombudsgirl
Estudante de 13 anos cobra no Facebook soluções para os problemas de sua escola pública e a repercussão leva as autoridades escolares catarinenses a se manifestarem
02 de setembro de 2012 | 3h 08
Roseli Fischmann - O Estado de S.Paulo
Isadora Faber, de 13 anos, aluna de escola pública de Florianópolis, ao criar o Diário de Classe no Facebook trouxe oportunidade de aprofundamento ao debate sobre a qualidade da educação.
Usualmente restrito, na mídia, a resultados de Saeb, Prova Brasil, Ideb,
indicadores quantitativos que se tornaram familiares a todos, a jovem
apontou o papel do desenvolvimento crítico na sua formação como
componente dessa qualidade.
Permite, assim, a análise de direitos entrelaçados ao direito à
educação. Por exemplo, o direito à liberdade de consciência e o direito à
liberdade de expressão. Se para os professores o tema da liberdade de
cátedra é incontestável como espaço da liberdade de expressão docente,
para os estudantes o tema, embora crucial, não é simples. E o caso de
Isadora é exemplar.
O direito à liberdade de consciência implica o direito à formação
dessa consciência. Ou seja, é preciso nutrir à consciência, que não se
faz sozinha, do nada. Para os que têm oportunidade de estar junto a
crianças e jovens, o perigo é a atração pela facilidade de doutrinar,
que não guarda nenhuma relação com alimentar consciências, mas com o
abandono da ética e das possibilidades democráticas.
A história dos autoritarismos vividos no Brasil, apoiados por
processos de doutrinação na escola e na propaganda pública (como o DIP
de Getúlio Vargas), marcou a mentalidade da sociedade e deixou uma
herança pesada para a escola, que não está lavrada em papel, mas nem por
isso é menos atuante.
Se as condições materiais de trabalho nas escolas públicas muitas
vezes deixam tanto a desejar, como Isadora deixou às claras, afetando a
atuação de cada docente, as marcas do passado também dificultam que seja
melhor o trabalho educativo. Observe-se a primeira reação da escola, a
de chamar os pais de Isadora para sinalizar os riscos de que a menina
continuasse com seu Diário de Classe. Calada e omissa, seria acolhida.
Crítica, inconformada e informando o público, era vista como ameaça e,
portanto, naquela ótica, merecendo a resposta da retaliação, além de
destiná-la, o quanto possível, ao ostracismo no interior da instituição.
Se, por um lado, no Brasil, é crônica a falta de prática de prestar
contas do que se faz com o bem público, com transparência, (a mal
traduzida accountability), por outro o quadro está mudando. A criação da
Comissão da Verdade, ou as transmissões de julgamentos do STF, como o
agora em andamento, sinalizam que, à imperiosa necessidade republicana
de transparência e correção para os atos públicos, soma-se o direito da
sociedade de ser informada de maneira adequada, em tempo real, na sua
relação com o Estado. A educação pública é fundada na escola pública,
mas vai além, porque é continuada e para toda a vida. Cada um que pode
testemunhar a forma como sofrerão consequências os que agiram à margem
da lei, desrespeitando o bem público e violaram direitos, recria-se como
cidadão em sua cidadania, ao ver a história do País sendo redirecionada
pela via da Justiça, do Estado em processo de reflexão e reconstrução. A
prática efetiva da Justiça é educativa.
A consciência de Isadora, ao afirmar que a escola pública é paga,
sim, pelos que a utilizam, por meio de impostos, sabendo que deve, por
isso, cobrar dos governantes, é alvissareira, indicando novos tempos. As
redes sociais e, de modo mais amplo, a popularização da internet,
trazem novos elementos com os quais a escola ainda não sabe lidar,
chegando mesmo a sentir-se frente a dilemas cada vez que surge algo
inusitado.
A divulgação de casos dramáticos em que a rede foi usada para fins de
violação de direitos de crianças e adolescentes vê-se substituída pela
possibilidade do uso construtivo de tão relevante ferramenta. São ainda
incipientes as pesquisas a respeito desse importante fenômeno
contemporâneo, em especial na forma como atinge crianças e jovens. No
caso de Isadora, demonstra um potencial rico, de formação de consciência
para muitos e de exercício de liberdade de expressão que não poderia
transformar-se, por seu mérito, em ocasião de represália violadora de
seus direitos.
A prática de levar a público sua opinião e expor-se, enquanto expõe a
realidade escolar em que vive, significa não apenas o exercício e a
busca de solução, mas ao mesmo tempo, pela dimensão da publicidade, um
paradoxal risco seguro. Porque quantos mais tomaram conhecimento de seu
Diário, mais protegida Isadora ficou de que lhe infligissem qualquer
arbitrariedade. Habilmente a Secretaria de Educação entrou em campo,
amparando a escola e sua diretora, procurando mediar o alegado "dano à
imagem" da escola, que nada mais era que a expressão efetiva do que ali
se passava. A comparação a um tipo de "ouvidoria", proposta pela
secretaria, indica abordagem mais adequada que protege a escola, mas não
garante o cotidiano da menina, cujos méritos são tão notáveis quanto o
apoio que seus pais lhe deram, mas que pede ainda proteção. Para
demonstrar que efetivamente encara Isadora como ouvidora, já que
ouvidores ou "ombudsmen" sempre têm garantias em relação ao que fazem e a
sua segurança pessoal, a secretaria precisa apoiá-la e valorizá-la.
Isadora - felizmente - tem a palavra. Ficamos à espera.
ROSELI FISCHMANN É COORDENADORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO, DOCENTE DA PÓS EM EDUCAÇÃO DA USP