quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

No Blog de Orlando Tambosi

Terça-feira, 3 de Fevereiro de 2009

Criacionismo? Só em aula de religião. E olha lá...

André Petry, correspondente da Veja nos EUA, escreve sobre Darwin e o criacionismo em sua coluna desta semana na revista. Observa que, enquanto o criacionismo tem suas asas cortadas, quem diria, até nos Estados Unidos, por aqui ele começa a se expandir, invadindo as aulas de ciências. Que as idéias criacionistas sejam ensinadas nas aulas de religião, tudo bem (trata-se, mesmo, de religião). Mas é um absurdo que sejam ensinadas como científicas nas aulas de biologia. Não existe criacionismo científico. Como já disse aqui há muito tempo, o criacionismo é uma fé envergonhada de si própria.

Não estamos diante de teorias concorrentes. A teoria darwiniana impulsionou quase todos os ramos das ciências contemporâneas. É científica sob todos os títulos. A doutrina criacionista não é teoria científica - ou melhor, nem teoria é, posto que não falseável. Por que os criacionistas têm vergonha de sua posição religiosa?

Se o criacionismo deve ser ensinado nas aulas de biologia, então vamos ensinar também numerologia nas aulas de matemática, alquimia nas aulas de química e assim por diante.

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Comentário, Roberto Romano :

O mais ridículo é que o núcleo da "teoria" sobre o "projeto inteligente" não passa de banalização tardia, muito tardia, do pensamento platônico. Basta ler o Timeu e a República com inteligência. É alí que o termo "paradigma" tem seu uso sancionado e posto em prática para se entender a gênese do universo e da ordem humana. No passado, doutores da Igreja souberam usar com rigor os textos platônicos, inseridos em seu mundo teorético. Depois da revolução newtoniana, os fundamentos do platonismo tiveram um abalo imenso, embora tenha sido mantida a formulação mecânica que ele introduziu no mundo da cultura. Mas o demiurgo como arquiteto do universo foi afastado. "Não precisei desta hipótese", é a resposta quase folclórica de Laplace a Napoleão, quando o imperador lhe perguntou sobre o lugar do divino em seu sistema.

A Igreja Católica (não esquecer que boa parte dos propagandistas do "projeto inteligente" são de origem protestante, o que piora o seu caso pois a Reforma surgiu com o mundo moderno) no período do Concilio Vaticano 2, ainda não fora mergulhada no fundamentalismo de João Paulo 1, João Paulo 2 e Ratzinger,. Naquela época existiram trabalhos e setores eclesiásticos que examinavam com seriedade, sem irenismos ou dogmatismos inúteis quando se trata de ciência, a evolução e assuntos conexos, como na ética o aborto, etc. A revista Concilium do período merece ser lida pela honestidade intelectual e profundo respeito pelos dois lados do problema, o religioso e o científico. Algum fruto deste labor resistiu ao retorno à Idade Média dirigido pelo Vaticano (com a caça às bruxas que o marcou). Em Curitiba, o Instituto Ciência e Fé tenta reunir cientistas, teólogos e demais pensadores para o debate de semelhantes questões. Mas se trata, infelizmente, de uma exceção.

Resumindo: o tal de "projeto inteligente" é o platonismo indigente dos nossos dias. Pobre Platão!

Roberto Romano

Abaixo, segue um trecho de um artigo que publiquei sobre o assunto : "A crise dos paradigmas e a emergência da reflexão ética, hoje"
www.bibvirt.futuro.usp.br/content/download/11278/80958/file/eds_artigos19n65_2.pdf -

"Paradigma" surge num campo da língua antiga que se liga a deiknumi, cujo sentido é "mostrar", "demonstrar", "indicar". Quando acrescido da partícula "para", significa "mostrar, fornecer um modelo". Termo importante na técnica dos oradores.4 A raiz deik-, por sua vez, refere-se ao ato de "mostrar mediante a palavra", mostrar "o que deve ser", donde a conseqüência de união com dike a lei, a regra.5 Uma interpretação do pensamento platônico, pelo menos em determinadas passagens, coloca o paradigma como ilustração de uma evidência sensível que remete para uma necessidade inteligível.6

A noção de paradigma cobre, na Antiguidade, os campos hoje distantes da ciência, da técnica, das artes. A filosofia deu-lhe vários estatutos, todos eles capitais para as atitudes éticas herdadas por nós. Na expressão grega, paradeigma tem a ressonância de modelo, exemplo, plano de arquiteto. Em Heródoto (5, 62), o termo é usado para indicar o esforço dos atenienses na construção do templo, em Delfos: "sendo muito ricos e, como seus pais, homens de reputação, eles trabalharam no templo para que ele tivesse uma forma mais bela do que a posta no paradigma".7

O contexto dessa passagem de Heródoto é de luta política contra o despotismo. Nela, o elemento político une-se à ética e à estética. Em Platão, o termo refere-se, entre vários reflexos semânticos, ao modelo do pintor. Na República (500e), Sócrates discute com Adimantos sobre o homem ético e sábio, cujo pensamento está fixado nas coisas eternas e verdadeiras. Um tal homem não tem lazer para inspecionar as mesquinharias dos homens, mas dirige seus olhos para as coisas do eterno, com sua ordem imutável. Quanto mais admira aquelas coisas, mais ele se produz à sua semelhança e assimila a si mesmo a elas. Após várias considerações sobre o povo, e seu modo inconstante de viver e opinar, Sócrates retoma a tese de que, à semelhança do homem reto, a cidade apenas será feliz "se as suas linhas forem traçadas por artistas em pintura, os quais usam o paradigma celeste".8

No mesmo diálogo, de 591c até 592b, lemos que o homem reto une à saúde física a justiça sapiente, operando de modo a estabelecer harmonia entre sua alma e seu corpo. Desse modo, ele será o músico verdadeiro, afastando a desmedida que impera na multidão, no relativo às riquezas. Ele enxerga a harmonia de sua alma, fugindo ao excesso ou falta de bens. Tal homem fará, com prazer, em público ou em privado, tudo o que não dissolva o hábito (de hexis, donde "ética") de sua alma. Assim, ele não irá voluntariamente se misturar à política. Sua participação será dirigida para a cidade, não a de seu nascimento, mas a que é descrita na República, "cujo modelo (paradigma), talvez esteja no céu, para quem deseja contemplá- la e se tornar seu cidadão. Mas não faz diferença alguma se ela existe agora ou se ela está sempre se tornando. A política dessa cidade sempre será apenas dele, e de nenhum outro". E assim termina o livro 9 da mais eminente obra sobre ética e política de nossa cultura. No trecho, encontramos vinculados exemplos das artes, da música entre outras, com a busca da medida ética e cívica. Como sabemos, Platão julga ser necessário forçar o homem reto e sábio a se comprometer com a vida política, mesmo que ele, voluntariamente, respire melhor na celeste harmonia.

O último texto platônico, que irei recordar, é o Timeu. Nele, o filósofo distingue, na teorização do universo, o que sempre é e não tem devir e o que está em devir e nunca é. O primeiro pode ser captado pelo pensamento com a ajuda da razão, pois é idêntico a si mesmo, enquanto o outro é conjecturável pela opinião com a ajuda da sensação desprovida de razão, pois é gerada e perece. Aliás, tudo o que nasce deve necessariamente nascer de uma causa, pois nada pode, sem causa, nascer. Assim, pois, quando o operário (demiurgo) que forma um objeto, com os olhos fixos no imutável, toma um modelo (paradigma) desse tipo, aquele objeto, executado desse modo, deve necessariamente ser belo; mas sempre que ele olha para o que vem à existência e usa um modelo (paradigma) produzido, o objeto assim executado não será belo (28 a-c).

E Platão passa a discutir o Demiurgo ou Pai do cosmos, interrogando "qual modelo (paradigma) foi usado pelo Arquiteto para construí-lo? Foi o que é sempre idêntico a si mesmo e uniforme, ou segundo o que vem à existência? Ora, se o cosmos é belo e seu construtor é bom, é claro que ele fixou os olhos no que sempre é". Portanto, "ele construiu o cosmos segundo o modelo do perceptível pelo pensamento e pela razão, e, pois, é idêntico a si mesmo".9 Segundo Henri Martin, a presença constante do termo "paradigma" reforça a interpretação do pensamento platônico segundo a qual, para ele, com exceção de uma só essência, a indivisível e imutável, todas as demais essências das coisas nada oferecem de estável, sendo, portanto, estranhas ao domínio da ciência.10 O demiurgo, o fabricante do cosmos a partir das idéias que ele contempla, e da matéria preexistente, é descrito no Timeu através de várias formas de trabalho técnico e artístico. Ele é um modelador de cera, um operário que recorta a madeira, um construtor que sintetiza todos os elementos, um fabricante (poietés).11

4. Cf. Chantraine, P. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris: Klincksieck, 1983, p. 257.
5. Cf. Benveniste, E. Vocabulario de las instituciones indoeuropeas. Madri: Taurus, 1983, pp. 301 e 303.
6. Cf. Goldschmidt. Les dialogues de Platon. Structure et méthode dialectique. Paris: PUF, 1947, p. 207.
7. Cito seguindo a edição da Loeb Classical Library. Herodotus. Cambridge: Harvard University Press, 1971, volume III, pp. 66-67. Tradução de A.D. Godley.
8. Cito a partir da edição Loeb Classical Library. Plato in twelve volumes. The Republic. T. VI, II, pp. 68-71. Tradução de P. Shorey.
9. Cito a partir da edição Loeb Classical Library, Plato, 9, pp. 50-53. Tradução de R.G. Bury. Cf. também a tradução de Th. Henri Martin, Le Timée de Platon. Paris: Vrin, 1981, pp. 82- 85.
10. Cf. Martin Th. Henri , op. cit., p. 351.
11. Cf. Brisson, Luc. Le même et l'autre dans la structure ontologique du Timée de Platon. Paris: Klincksieck, 1974, p.
31 ss.