terça-feira, 16 de julho de 2013

Maria Sylvia Carvalho Franco, "Armadilhas para Dilma", Folha de São Paulo, 15/07/2013

 
15/07/2013 - 03h30

Maria Sylvia Carvalho Franco: Armadilhas para Dilma

Tendências / Debates Os atuais movimentos de massa no Brasil não se devem apenas a recentes demandas sociais, econômicas ou políticas. Essa atribuição toma o resultado pela gênese dos eventos. Estes determinam-se no interior de um arraigado sistema produzido em nossa história. 

Destaca-se na origem da sociedade brasileira a ex­ploração de riquezas baseadas na escravidão moderna, instituição constitutiva do capitalismo, articulada às mudanças socioeconômicas, inclusive o trabalho livre, em curso na Europa. Não por acaso, J. Locke deu forma teórica às práticas capitalistas, fundamentou o pensamento liberal e legitimou a escravidão moderna, alicerçando-os no direito natural e individual à propriedade: só o proprietário pertence ao gênero humano. Os sem posses convertem-se em inferiores, justificando-se o seu jugo e a pena de morte para quem atenta contra a propriedade, "ipso facto", contra a vida e a liberdade. 

A violência do estado de natureza permeia a sociedade civil, garantindo --pela recusa de sua humanidade-- a exploração do trabalhador livre e do escravo. Na vertente moderna e cristã exposta por Locke, o escravo está expulso do estado de natureza, segregado da religião, excluído da sociedade civil. 

Entre nós, esse elenco articulou-se ao absolutismo português gerando, em nossa concretização do capitalismo, ampla rede de controle social arbitrário e economia espoliativa. Por séculos, mudanças decisivas ocorreram entre dominantes e dominados, mas subsiste a essência dessa ordem: a produção de lucro. Distraída desse fato, Dilma caiu em ciladas, algumas embutidas em sua própria ideologia. 

A primeira delas foi acatar o esquema de poder construído por seu antecessor, que esbanjou ardis retribuindo os provedores de suas campanhas políticas e produziu, com astuciosa propaganda, o mito do herói em um país próspero e venturoso. Com essa herança, Dilma caminhou para o inferno ao cortar benesses. Perturbou o setor financeiro ao baixar juros e introduzir impostos para o capital externo, provocando fuga desses bens, elevação do câmbio, desequilíbrio no mercado. 

Crente no "papel histórico da burguesia nacional", cortou impostos, concedeu crédito copioso, subsidiou o consumo, supondo que os ganhos acrescidos se transformariam em produtividade. E veio a desaceleração industrial, o "pibinho", as aventuras com recursos do BNDES e a volumosa remessa de lucros. Jogou com a inflação visando lastrear o desenvolvimento, mas conseguiu carestia e queda no consumo, suposto lastro para a ascensão social, produtor de nova classe média, na verdade inexistente. 

Classes não se formam com artifícios de propaganda e participação rapsódica no mercado. Exemplar dessa falácia é o Minha Casa, Minha Vida. O banco oficial não empresta os recursos iniciais para construção, apenas ressarce o montante previamente aplicado pelo candidato, quantia que lhe é impossível amealhar; as prestações excedem os bolsos da família e é exorbitante o preço final do imóvel. Diante do impasse, o bancário aconselha o cliente a procurar um construtor "acostumado a trabalhar com a Caixa", vale dizer, com a empreiteira favorecida pelo governo. 

Dilma tropeçou no rijo sistema de privilégios e troca de favores. Nessa faina, o empresariado conta com lobbies operando no Congresso, influenciando os partidos oligarquizados e a burocracia estatal, com apropriação privilegiada e uso irresponsável dos dinheiros públicos. 

Contra esses interesses destrutivos da imensa riqueza nacional, ergue-se a massa dela despojada. A revolta contra as tarifas de transporte não é a gota d'água, o estopim que acendeu o povo, mas parte importante da experiência diuturna de pessoas roubadas de seus direitos. Elas têm consciência de que preços maiores visam favorecer os concessionários que financiam eleições e ocupam cargos chaves na administração pública. 


Visca
Aqui, é nulo o perigo de populismo tarifário e é inválida a alegação de que a estabilidade dos preços possa bloquear investimentos e, "ipso facto", piorar o serviço. Esse automatismo não existe; o alvo é o lucro fácil, isento de contrapartida. 

O peso desse arcabouço torna irrisória a assertiva de que a atual rebelião seria difusa, alheia a partidos, carente de alvos precisos. Nebulosa apolítica, seria a expressão do fortalecimento ("empowerment") do indivíduo, sujeito da consciência e dos atos sociais, gerado no bojo da internet.
Trata-se de versão requentada da secular ideologia liberal, em que o indivíduo é constitutivo do universo. O poder de seres isolados --hoje como antes-- anula-se diante dos monopólios estatais da força física, da norma jurídica e dos impostos. As massas assustam e um recurso para aplacá-las seria dissolvê-las em seus átomos. Mais vale compreender o sentido desses movimentos. 

Eles não poderiam conjugar-se a partidos, por serem fonte da corrupção que recusam; a liderança não poderia ser hierárquica, pois são contra a oligarquização da política; suas demandas são exatas, referentes a direitos que lhes são roubados e pelos quais pagam tributos; não querem "mais", como reza a propaganda, querem o imprescin­­dível. Nem são amorfos: as redes sociais ensejam a organização dos grupos e atividades. 

Como toda técnica, ela é meio para ações cujo sentido define-se por seus atores e por seus fins.
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO é professora titular aposentada de filosofia da USP e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)