terça-feira, 25 de outubro de 2011
Deselogio das aspas
Repetindo o texto de Rui Bebiano sobre as aspas. Para aprender mesmo! Para meu pró-reitor despreferido.
Deselogio das aspas
por Rui Bebiano aqui
Crónica publicada em 2002 na revista electrónica NON!, aqui retomada com pequenos retoques.
Não  é fácil sinalizar a escrita. Arrumar as palavras, separando-as com  pontos, vírgulas, pontos & vírgulas, hífenes ou travessões, mais  dois pontos, parênteses, colchetes… reticências. Mas também com aspas («  »), esse adorno – análogo às comas duplas ou vírgulas dobradas (” “),  usadas sobretudo para citar ou introduzir expressão em língua estranha –  que confere um valor significante diverso do habitual à palavra ou à  expressão que entre elas se intromete. Com «indecorosa» intenção  normativa, D’Silvas Filho, autor de um Prontuário editado pela  Texto, declara que a aposição das aspas constitui uma prática que serve  para grafar «termos ou expressões que se devem evitar, termo  estrangeiro, reserva no que se escreve (ortográfica, fonética,  semântica, eventualmente autoria)». Preceito que a ser seguido  com rigor, neste tempo de contínua chocalheira da fala e da escrita,  faria do nosso entendimento um labirinto cravado de minas e armadilhas.
De  inegável utilidade pública na construção de sentidos esconsos e álibis,  as aspas, sinais de vida fácil e atribulada, são muitas vezes objecto  de abuso. Abre aspas, por dá cá aquela palha, fecha aspas. Solícitas,  sem pudor, servem para contornar insultos, podendo afirmar-se na sua  companhia que o senhor director «é um valente “pulha” (entre aspas)!».  Noutros momentos, ouvimos o comentador desportivo afirmar que “Cristiano  Ronaldo saltou para cima do adversário. «Para cima» entre aspas,  naturalmente”. Ou então lemos, nas letras grossas de um jornal regional  especializado no desperdício obtuso das referidas sinalefas, que «os  turistas espanhóis “invadiram” Coimbra». Não fossemos nós,  azamboados leitores, pensar que, por ablação das ditas, o avançado do  Manchester United se tivesse dedicado a subverter em pleno relvado a  homofobia dominante no mundo do futebol. Ou que os castelhanos tivessem  esquecido a padeira Brites e decidido preencher a linha de confusão  urbanística que se alonga do Choupal até à Lapa com postos militares  avançados, camuflados como simpáticas tendinhas de tapas e bocadillos.
Existem,  todavia, maneiras menos hilariantes de abusar das aspas. Elas  propagam-se, para abreviar a descrição, em três sentidos possíveis: o  primeiro define-as como instrumentos destinados a contornar a pobreza da  retórica, o segundo relaciona-as com a desresponsabilização do  discurso, o último associa-as à incapacidade para afirmar processos de  conhecimento próprios e não tutelados. Mas, nestas coisas de formular  «verdades», nada melhor do que ser claro para dissipar a escuridão  (dispensando-se aqui as aspas por ter o leitor entendido já que não  estou a falar do tempo nocturno). 
Remendar a retórica.  Esta é uma estratégia vulgarizada, que podemos ouvir em diversas  situações. Ora o orador e, faltando-lhe o exacto termo ou a figura de  linguagem adequada, adianta a aproximação aspada. Proclama assim:  «Porque serão justamente os cidadãos menos favorecidos, senhores  deputados, aqueles que têm menos hipóteses de se eximir ao ónus dos  impostos? É caso para dizer, usando a sabedoria popular, que quem se  [faltando-lhe neste preciso momento o termo] “prejudica” (entre aspas) é  o mexilhão!». Também apresentadores televisivos, professores,  conferencistas, advogados e outros profissionais da fala recorrem com  frequência a este expediente, de toda a vez que lhes escapa a palavra  certa ou entendem ornamentar o verbo sem correrem grandes riscos.
Desresponsabilizar o discurso.  O sentido aqui é outro, aparecendo, seja na escrita ou na oralidade,  naquele exacto momento em que se depara algum temor de que à palavra ou à  expressão utilizada se possa atribuir um sentido que não aquele, um  pouco menos taxativo, que se lhe quer dar, suscitando o descontentamento  ou o despeito de alguém. Afirma o eventual «prevaricador» (com aspas):  «Considero a atitude anteriormente tomada como uma “asneira”, podendo  vir a afectar “pesadamente” o futuro desta instituição. Sinto-me, pois,  algo “constrangido” em relação à possibilidade de lhe conceder o meu  aval.» Usa-se frequentemente em certas reuniões de trabalho ou nas actas  públicas das mesmas.
Recusar a criatividade.  Esta é a situação menos vulgar mas de mais pesadas consequências.  Traduz uma incapacidade, demonstrada na produção de discursos de  natureza interpretativa, para contrariar formas de conhecimento  dominantes e produzir novos conceitos ou alargar os existentes. A  construção de formas de saber diferenciadas e o encontro com realidades e  lógicas anteriormente desconhecidas, conduzem a que se criem novas  palavras ou expressões, muitas vezes usadas de maneira necessariamente  experimental, que correspondem à afirmação de leituras possíveis e  legítimas. Aqui é preciso assumir a queda das aspas. Por exemplo, a  noção de campo criada por Pierre Bourdieu – aquele pedaço do  mundo social que é regido por leis e códigos próprios – não pode ser  confundida com a paisagem do Campo de trigo com corvos, o  último quadro de Vincent Van Gogh. Não sendo preciso acompanhá-la, para  que percebamos a diferença, desses tristes e incómodos sinais da  ortografia.
As aspas são pequenos demónios que tornam mais pobre e mais opaca a comunicação.  Num hipotético futuro serão abolidas ou cairão de podres. Até lá, o  melhor que temos a fazer é evitar usá-las como grilhões da palavra ou  instrumentos da tolice