O bloco dos descarados
12 de julho de 2012 | 3h 08
O Estado de S.Paulo
Na política, quando chove cinismo, é uma tempestade. 
Dias atrás, por exemplo, o ainda senador Demóstenes Torres alegou, em 
desespero de causa, que não seria justo ele perder o mandato por ter 
mentido aos seus pares sobre as suas relações com o contraventor 
Carlinhos Cachoeira, com quem trocou pelo menos 300 telefonemas, segundo
 a Polícia Federal. Mentir, sofismou o desmascarado paladino da ética 
numa das sete vezes em que discursou para se safar da cassação, é uma 
questão de consciência, não de quebra de decoro parlamentar, até porque 
os legisladores são invioláveis por suas palavras e atos. 
Corte para a sala de sessões da CPI do Cachoeira, onde o prefeito 
petista de Palmas, no Tocantins, Raul de Jesus Lustosa Filho, tenta se 
defender do indefensável: a proposta que fez ao bicheiro em 2004 pela 
qual, em troca de recursos para a campanha, a empreiteira Delta 
receberia de mão beijada um contrato de coleta de lixo na capital. Pobre
 político: ele ignorava que Cachoeira tinha escondido uma câmera de 
vídeo no ar-condicionado do escritório onde se reuniam, na cidade goiana
 de Anápolis. A fita foi descoberta com diversas outras pela Polícia 
Federal na casa do ex-cunhado do contraventor. "Tive a infelicidade de 
ser filmado", lamentou-se o prefeito negocista.
Aplica-se aos dois casos o implacável dito popular: "Vergonha não é 
roubar; é roubar e não poder carregar". Demóstenes enganou muita gente 
durante muito tempo. Raul Filho só enganou os que gostavam de ser 
enganados, ou pouco se lhes dava, como o ex-presidente Lula, que 
agasalhou no PT o político que começou a vida no PDS (a ex-Arena da 
ditadura militar) em 1982, passou para o PFL (atual DEM), daí para o 
PSDB e, enfim, para o PPS. Agora, transpirando indignação, os 
companheiros preparam o seu desligamento da sigla, como se nunca antes 
tivessem encontrado o menor indício de má conduta do prefeito eleito e 
reeleito sob a sua bandeira. Tanto encontraram que tentaram expulsá-lo 
no ano passado, mas ficou por isso mesmo.
Raul de Jesus Lustosa Filho é uma figura. "O senhor Carlos Cachoeira 
(sic) nunca fez doação para a minha campanha", disse à CPI, alegando 
ainda não se lembrar como veio a conhecer o interlocutor nem se sabia de
 suas atividades no ramo da batotagem. "E nenhuma empresa (dele) venceu 
qualquer licitação durante o meu governo." De fato, o bicheiro não é 
formalmente acionista da Delta - com a qual a prefeitura de Palmas 
firmou seis contratos em sete anos para a coleta de lixo. Mas ele, Raul,
 não teve nada com isso. Quem cuidava das licitações municipais era uma 
certa Kenia Duailibe, coincidentemente sua cunhada. Quem as fiscalizava 
era outro cunhado.
Decerto uma coisa também nada tem que ver com a outra, mas a irmã de 
Kenia e mulher de Raul, a deputada estadual, também pelo PT, Solange 
Duailibe, tem uma assessora em cuja conta a Delta depositou R$ 120 mil. À
 CPI, o prefeito não negou o depósito, mas disse não saber por que foi 
feito e para que teria sido usado. O cinismo de Raul enfureceu os 
inquiridores tanto da oposição como da base aliada, enquanto os membros 
petistas do colegiado, à exceção do relator Odair Cunha, de Minas 
Gerais, faziam a proverbial cara de paisagem. Um deputado, Chico 
Alencar, do PSOL fluminense, disse que o prefeito encarnava o "padrão 
degradado" da política nacional.
Esse padrão se materializa no trânsito dos políticos pelas siglas, 
reduzidas a cabides de candidaturas em benefício das caciquias que as 
controlam. A conivência com a corrupção vem de cambulhada. Ainda agora, o
 País acompanha, bestificado, as alianças mais improváveis para as 
eleições municipais de outubro próximo. O pacto entre o PT de Lula e o 
PP de Paulo Maluf em torno do ex-ministro Fernando Haddad em São Paulo 
só virou escândalo por causa da teatralização exigida pelo ex-prefeito. 
Já o dono do PSD, Gilberto Kassab, que apoia na capital o seu antecessor
 tucano José Serra, impõe ao partido em Belo Horizonte uma aliança em 
torno do candidato do PT - que só se explicaria, segundo se especula, 
pela ambição de se tornar ministro de Dilma Rousseff no ano que vem.