O favor indecoroso
09 de junho de 2012 | 3h 08
ROBERTO ROMANO, filósofo, 
professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas 
(Unicamp); é autor, entre outros livros, de 'O Caldeirão de Medeia' 
(Perspectiva) - O Estado de S.Paulo
Sobre o diálogo secreto dos srs. Luiz Inácio da Silva, 
Gilmar Mendes e Nelson Jobim, muito foi dito ou escrito. Poucos 
analistas sublinharam, nele, a prática do favor. Ninguém se reúne em 
sigilo para trocar nonadas. Se é impossível que o povo soberano tenha 
acesso ao tema do simpósio, existe, no entanto, a certeza, trazida pelos
 relatos dos envolvidos, de que houve favor para facilitar a conversa. 
Nelson Jobim foi bondoso ao emprestar salas para que os dois outros 
discutissem o sexo dos anjos? O favor, no caso, quebrou hierarquias e 
competências (se o trato fosse legítimo, haveria audiência formal) e 
abalou ainda mais a confiança nas instituições. Pensemos a origem do 
favor em nossa vida política.
O Estado depende da ética social que o envolve. Na sociedade 
brasileira governa o favor, obstáculo que impede a autonomia dos 
eleitores e distorce a vida parlamentar. O favor dissolve os traços 
igualitários da vida pública. No mercado, nos partidos, em igrejas e 
seitas religiosas, ele define alianças que tornam as doutrinas 
irrelevantes. Em todas as sociedades, antigas ou modernas vigora o 
favor. Mas países democráticos o regulam em prol de procedimentos 
impessoais e abstratos. Aqui ele é "mediação universal", como afirma 
Maria Sylvia de Carvalho Franco em Homens Livres na Ordem Escravocrata. 
No Brasil, poderoso é o político que mais auxilia os amigos, os aliados 
e, não raro, os próprios inimigos. O favor alimenta alianças, rebaixa 
ministros, ordena as pautas legislativas e atormenta o Executivo. Ele 
ordena redes de interesses obscuros, lobbies disfarçados, corrupção de 
agentes públicos por empresas privadas, achaque de empresas por 
funcionários estatais. Somos a antirrepública do favor, assumido como 
técnica predileta de oligarcas como José Sarney e similares. E não 
existe favor gratuito: a censura à imprensa (como a aplicada ao jornal O Estado de S. Paulo) retribui obséquios prestados pelos nossos oligarcas. Não surpreende, pois, o sigilo usado pelos que controlam o poder.
O favor tem origem na República Romana e na sociedade do Antigo 
Regime. Nascemos sob o absolutismo que se firma no século 16. Nele o 
favor impera na corte e nos elos entre os nobres. Como enuncia o 
historiador Joël Cornette, o rei sustenta aliados e os liga à venalidade
 na administração pública. A ascensão política é feita pelos grupos e 
indivíduos numa imensa rede de favores. Os interessados (rei e nobres) 
precisam de intermediários e nasce o "é dando que se recebe". No 
absolutismo, diz outro historiador (Jean Petitfils), o favor define a 
rede de interdependência em que o nobre se insere desde o nascimento, se
 casa e sustenta a reputação de sua família. O alvo é atingir conexões 
em estratos mais altos, nas redes de interesse. É o arrivismo geral. 
Entre os pactos tácitos está o que enuncia que alguém "pertence" a um 
outro, é sua "criatura". Tais cadeias prendem o patrão, o cliente e os 
brokers (os intermediários). No corrupto Antigo Regime, "quem precisa de
 um outro é indigente e se curva. (...) O ministro dá seu passo de 
cortesão, bajulador, serviçal ou mendigo diante do seu rei. A massa dos 
ambiciosos dança as posições de cem maneiras, umas bem mais baixas do 
que as outras, diante do ministro" (Diderot, O Sobrinho de Rameau). 
Pantomima pior é exibida nos palácios brasileiros de hoje.
Mas o invento da clientela é de Roma. Como no Antigo Regime, as 
relações políticas romanas são praticadas segundo o favor. O consulado 
foi possível por causa do trato obsequioso das famílias nobres com os 
clientes. Os cargos maiores de Roma eram gratuitos, porque os ocupantes,
 ricos e poderosos, não viam como adequado à sua dignidade receber para 
administrar. Os salários no governo marcam regimes que fornecem acesso 
ao poder a todos os cidadãos. Roma não é uma democracia. Nela a eficácia
 política depende da fratura entre quem governa e a massa dos que 
obedecem. O cimento que os une é o fauor (favor). Favere tem o sentido 
de "ser favorável", na língua comum e política. Fauor significa o 
próprio voto, mas não a campanha política, que tem por nome officium. O 
favor manifesta-se por sinais externos : laude, plausus, clamor 
(louvação, aplauso, clamor). A partir do teatro, aqueles termos são 
aplicados à política. E o favor indica "popularidade". Fauere significa 
"trabalhar para o aumento da posição política de alguém". Se o cliente 
tem o dever moral de votar no patrão, este último deve protegê-lo. Como 
na República existe a fictícia soberania popular (a Monarquia caíra com 
Tarquínio), o favor do voto tem o nome eufêmico de beneficium. Tal 
relação se cristaliza no obsequium (indulgência, complacência) e na 
ambitio, palavra para caracterizar os candidatos quando eles perdem a 
vergonha na caça aos votos. O favor é ambição indecorosa.
Voltemos ao bafafá gerado por nossos homens ilustres. Entre Luiz 
Inácio da Silva e Gilmar Mendes, Nelson Jobim operou como "broker", 
intermediário que, na clientela política, aproxima favorecidos ou fontes
 de obséquio. Houve ausência do necessário decoro na cena ocorrida. 
Decoro e prudência definem o que é permitido às pessoas públicas: 
roupas, modos de falar, tratamentos, lugares e ocasiões. Spinoza diz que
 se o governante "corre, ébrio e nu (...) nas praças, faz o papel de 
histrião ou despreza abertamente as leis que ele mesmo estabeleceu, é 
impossível que ele conserve a majestade do poder (...), pois tais coisas
 transformam o respeito em indignação e o estado civil em estado de 
guerra" (Tratado Político). O decoro não é "simples formalidade" porque a
 pessoa pública representa o Estado. Suas excelências não viram o 
"detalhe". Os agrados anteriores e os insultos posteriores falaram mais 
alto do que o respeito à cidadania. E agora José Sarney executa o favor 
de "apaziguar os ânimos" dos poderosos. Triste e indecoroso Brasil.
Tweets Top / All
      Older Tweet results for http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-favor--indecoroso-,884180,0.htm are unavailable.
    
 Monica Salles
    Monica Salles
     Mayara Beckhauser D.
    Mayara Beckhauser D.
     Humberto Dantas
    Humberto Dantas
     Luiz Mario Muniz Bar
    Luiz Mario Muniz Bar
     Roberta
    Roberta
     cal garcia
    cal garcia
     Duh
    Duh
     Aderbal Machado
    Aderbal Machado
     Robinson Damasceno
    Robinson Damasceno
     aimarlabaki
    aimarlabaki
     Markus Fendel
    Markus Fendel
     Aldo Pereira
    Aldo Pereira
     oscar cesar quiroga
    oscar cesar quiroga