Lula malufou para Maluf lular
20 de junho de 2012 | 3h 08
José Nêumanne
Há nos afagos entre o ex-governador Paulo Maluf (PP-SP) e
 o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), sob os olhares 
embevecidos de Fernando Haddad, mais filustria do que possa perceber 
nossa vã filosofia. Mas, por incrível que pareça, há também muita 
sintonia. Ou, como reza o título do romance famoso de Goethe, Afinidades eletivas.
 Como? - perguntará o leigo desabituado aos vaivéns da política, que o 
ex-governador de Minas e banqueiro Magalhães Pinto comparava com a 
mutação das imagens formadas pelas nuvens no céu. Ele mesmo comprovou 
sua metáfora fundando o PP com seu principal adversário mineiro, 
Tancredo Neves - um, ex-UDN, outro, ex-PSD -, aparentemente 
inconciliáveis. Os mais ingênuos dirão que não há traços ideológicos 
comuns entre o PT de Lula e o PP atual, que conta entre seus mais fortes
 dirigentes com um sobrinho do presidente que foi sem nunca ter sido, 
como a Viúva Porcina, Francisco Dornelles, também aparentado do caudilho
 gaúcho Getúlio Dornelles Vargas. Ora, ora, mas quem está interessado em
 ideias? Na política contemporânea contam cargos na máquina 
administrativa pública e segundos no horário da propaganda eleitoral 
gratuita no rádio e na TV. O PP ficou com um cargo; o PT, com mais 95 
segundos para vender seu peixe fora d'água ao eleitorado escaldado, como
 sempre o foi o paulistano.
Maluf nunca deixou de ser o que dele dizia Lula nos tempos em que 
encarnava o furibundo João Ferrador, personagem das greves do ABC 
lideradas por ele nos jornais dos metalúrgicos nos anos 70 e 80 do 
século 20: um "filhote da ditadura". Prefeito nomeado pelos militares 
para administrar a maior cidade do País, o ricaço descendente de 
libaneses ganhou de seus admiradores a imagem do realizador, tocador de 
obras. O símbolo desse gestor que faz mais é o horrendo Minhocão, sem o 
qual hoje o trânsito paulistano não fluiria. Seus detratores, entre os 
quais os petistas que estão no poder federal e os tucanos que governam o
 maior Estado da Federação, o rotularam como símbolo da malversação do 
ensebado dinheiro do Zé Mané, que paga impostos e quase nada recebe em 
troca do Estado. Essa moeda de duas faces, não necessariamente 
excludentes nem sequer opostas, poderia ter a inscrição "rouba, mas faz"
 do velho Adhemar.
Mas Lula está longe de ser o demônio execrado pelos malufistas de 
antanho como um perigoso inimigo do mercado e da democracia, um 
sindicalista subversivo que liderava grevistas furiosos no ABC e se 
deixou, depois, politizar por antigos guerrilheiros que queriam mudar o 
sinal de uma ditadura de direita por outra de esquerda. Mais longe ainda
 está o PT, que o sindicalista fundou, de sua imagem original de partido
 ideológico comprometido com a mudança de "tudo o que está aí". Atolado 
até o pescoço num pântano de corrupção e desmandos em administrações 
municipais, estaduais e federal, o partido se deixou levar pelo canto da
 sereia da conciliação de seu principal líder e ocupou o bote 
salva-vidas ao lado de Jader Barbalho, Severino Cavalcanti e... Maluf.
Para sobreviver no campo minado da política partidária brasileira, 
Lula trocou os piquetes do ABC pelo toma lá dá cá franciscano, superando
 os aliados que combateu antes de cingir a faixa presidencial. Para 
tanto adotou, sem pejo, a retórica dos cultores da velha realpolitik 
tupiniquim. Nisso o milionário da madeireira foi um mestre valioso para o
 aplicado estudante egresso do miserável semiárido nordestino. Se não o 
superou em cinismo, tarefa reconhecidamente hercúlea, cultiva a caradura
 com eficiência ainda maior. Pilhado em algum passo em falso, aplica 
fintas que nem Mané Garrincha foi capaz de incluir em seu amplo 
repertório. E com muito mais credibilidade do que as tentativas de 
drible que seu mais recente aliado tem repetido para tirar o pé das 
armadilhas dos repórteres maledicentes e dos promotores incansáveis que 
vasculham as contabilidades de suas gestões. O dono do PP já foi muitas 
vezes alcançado pelos braços longos da lei, mas nessas ocasiões, até 
agora, escapou desse abraço escorregando como bagre ensaboado para o 
amplo território da impunidade do país da Justiça lerda e vesga. O 
senhor do PT lança mão de súditos que assumiram bandalheiras que 
chegaram pertinho de seu gabinete palaciano e se tem saído com 
habilidade de invejar Arsène Lupin, protagonista de populares folhetins 
policiais. Posto diante das evidências de que, no mínimo, não ignorava o
 que faziam seus auxiliares na fraude dita "mensalão", saiu-se com a 
patacoada tornada dogma de fé de que tudo não passara de "intriga da 
oposição".
É notório - e não deixa de ser ridículo - o truque chinfrim de 
marketing de Maluf de se apropriar de quase tudo o que pareça plausível 
de ter sido obra dele desde a posse de Tomé de Souza como 
governador-geral. Lula foi adiante em esperteza e criatividade ao criar o
 próprio slogan, "nunca antes na história deste país". Maluf sabia que 
nunca precisaria comprovar afirmações duvidosas. Lula construiu o 
próprio mito de forma a nem sequer ser questionado a respeito.
Maluf foi beneficiário do arbítrio. E Lula tornou-se dirigente 
sindical atendendo ao anseio de parte dos militares que topavam tudo 
para impedir a influência de Leonel Brizola, herdeiro presuntivo do 
inimigo número um das casernas, Getúlio Vargas, no aparelho sindicalista
 que o caudilho de São Borja forjou. Com as greves, o esperto 
sobrevivente da pobreza do semiárido passou a simbolizar o ideal do povo
 brasileiro cultivado pela esquerda que ganharia nas urnas a guerra 
perdida na tentativa de tomar o poder com as armas. Maluf foi 
escorraçado dos palácios e virou uma aposta perdida de volta da direita 
ao topo.
Neste ambiente em que governabilidade justifica barganha e pouca 
vergonha se confunde com pragmatismo, Lula malufou para Maluf lular, 
enfurecendo os tucanos que perderam a chance de preceder o PT no afã.