Revista Veja, 27 de junho de 2012, páginas 72 e 73.

Coveiros do Leviatã
Roberto Romano
Nossos partidos abusam do eleitor ao 
mercadejar alianças. Longe de conceitos ou doutrinas, pechincham e 
barateiam adesões. Não existem diferenças entre eles porque, diriam os 
petistas juvenis, todos são "farinha do mesmo saco". Weber, Marx, 
Tocqueville, Bobbio  e outros tentaram pensar a política. Hoje ela 
atinge o impensável.
O Estado, desde o seu 
nascimento, sofre ameaças de morte. Sempre que os dirigentes abusam do 
poder, os governados se rebelam. Assim ocorre nos levantes democráticos 
(século XVII na Inglaterra,  XVIII  nos EUA e na França), quando garantias e direitos são arrancados do  maquiavelismo absolutista. No século XX, a divindade mortal sente o cheiro da morte. Num espasmo para garantir sobrevida,
 ela passa ao totalitarismo, se alimenta dos corpos  trucidados na 
Alemanha, na URSS, no mundo. Com a Guerra  Fria, o seu poder  atinge o 
ápice. Nas batalhas pelo controle internacional, o Leviatã extenua as fontes econômicas,
 culturais, jurídicas, religiosas. Os partidos assumem ideologias para  
conservar diferentes formas de poder. Comunismo ou republicanismo entram
 na paleta dos ideários que  reúne cores mistas como o gaulismo na 
França e o trabalhismo inglês. Existiram formas ideológicas porque o 
Estado ainda administrava a sua crise mortal. 
Com o fim da URSS, desaparece a bipolaridade planetária, perdem força 
os poderes estatais.  Crises financeiras, desindustrialização, choques 
desastrosos no comércio externo, diplomacia sem arte, sociedades à 
mingua de segurança. A soberania é corroída com maior  ou menor efeito. O
 caso da Europa mostra o quanto as lesões podem ser profundas e 
duradouras. Sem o poder soberano (em campo nacional) ou hegemônico (no internacional), as ideologias perdem sentido.  
Como o Estado é o terreno da política, com seu enfraquecimento, somem a causa e a razão de qualquer doutrina. Na crise, o primeiro signo letal é a perda de substância programática nos partidos.
 Partidos projetam formas de Estado e sociedade. Eles oferecem aos 
eleitores um plano de ordem social e jurídica: liberal, socialista etc. 
Vencendo as eleições, os dirigentes tentam aplicar o prometido. Se vence
 o socialismo, dele se espera  a preeminência do coletivo sobre os 
indivíduos. Os vencidos seguem para a legítima oposição. Vitorioso o 
liberalismo, as políticas seguem outras vias. Na democracia, a derrota 
ou a vitória nunca expulsam os adversários da cena pública. A 
alternância do mando  prolonga a vida do Leviatã.  Caso uma agremiação 
tenha um programa, mas para atingir e manter indefinidamente o mando se 
alie a setores que pregam o contrário do que ela promete ao eleitor, 
ocorre o estelionato eleitoral. O programa, depois de escolhido, não  
pertence mais aos eleitos, mas à maioria que o sufragou. Ao quebrar a fé
 pública, os partidos chegam à infâmia e a sua política se limita ao camelódromo dos votos. 
Na compra de certo produto, o cliente experimenta suas virtudes ou 
defeitos. Não se dá o mesmo nas urnas. Como diz um sábio, "o eleitor não
 conhece antecipadamente o efeito de sua escolha, porque o poder do 
partido ou candidato ao qual deu o voto depende do  maior ou menor 
número de votos que eles receberam de outros eleitores, sobre os quais 
ele não exercita isoladamente nenhuma influência".  No comércio político, o poder se conquista com votos. Para adquiri-los e livrar-se das despesas de sua compra,
 o demagogo "usa o poder conquistado ou adquirido para obter benefícios 
(...). O poder custa, mas rende. Se custa, deve render. O jogo é 
arriscado: às vezes, custa mais do 
que rende, se o candidato não é eleito; mas ele rende mais do que 
custa". (N. Bobbio, "A utopia de cabeça para baixo")
E assim 
vive a maioria dos partidos. Max Weber diz que a diferença entre a 
política norte-americana e a européia reside no fato de que as primeiras
 se caracterizam pela pragmática do mercado eleitoral, sob a batuta de 
um chefe (o boss) que negocia alianças.  Os europeus seriam 
doutrinários. Descontada a injustiça weberiana para com os americanos, o
 tipo por ele referido se universaliza na crise de Estado. O mercadejo  
eleitoral tudo vende, tudo troca, tudo compra. O Brasil piora a 
tendência. Após o regime de força  (quando liberais e esquerdistas se 
uniram para lutar, por meios distintos, contra o arbítrio), a esquerda e
 os conservadores acentuaram seus ideários e doutrinas. Foi a hora da 
pureza ética, da guerra pelo monopólio da virtude. Após Sarney e o 
impedimento  de Collor, a social democracia subiu ao Planalto com FHC. E
 chegou a vez do socialista Partido dos Trabalhadores. Para garantir a 
"governabilidade", no entanto, surge a feira das alianças (“é dando que se recebe”),  o mensalão e outros recursos mercadológicos. 
Para explicar o vezo dos oligarcas, só Nietzsche : "Eles querem o poder e, antes, muito dinheiro, a alavanca do poder. Todos eles almejam ganhar o trono. Com frequência,
 é a lama que está  sobre o trono, e não raro o trono está plantado na 
lama.”  (Zaratustra). Tem razão Nietzsche, basta rever a foto de Lula e 
Maluf : nela, aparece o lado real da mentira ideológica. Antônio Donato, coordenador da campanha do petista Haddad,
 explica : "Quem está neste jogo tem que jogar o jogo que existe, e não o
 do mundo ideal, que não existe". Com defensores desse naipe, o Leviatã 
será enterrado no Brasil. Diagnóstico  da moléstia que o levará à cova ?
 Esclerose mental.