MENTIRA E RAZÃO DE ESTADO. ROBERTO ROMANO
8 de março de 2010   
Roberto Romano/Unicamp
Quando recebi o honroso convite do Dr. Marcio Sotello Felippe para 
expôr algumas idéias a este grave e seleto auditório, pensei falar 
algumas coisas sobre a Razão de Estado. A justificativa era evidente, 
imaginava eu, bastando inspecionar a midia internacional e brasileira 
para ver o quanto os poderes se desenvolvem no segredo e aprofundam as 
diferenças entre a cidadania comum e que os agem em nome do público. 
Guerras, modificações econômicas e jurídicas são empreendidas sem que os
 contribuintes saibam as suas causas e alvos. Pior quando medidas 
restritivas às liberdades civis—como o conjunto de ordenamentos 
norte-americanos batizados como Lei Patriótica— são esposadas por 
juristas e tribunais superiores. A democracia e as exigências de 
transparente responsabilidade governamental perdem a cada átimo sua 
marca de origem. No mundo inteiro observa-se uma espécie de retorno ao 
absolutismo, que por sua vez imaginávamos afastado pelas revoluções 
inglêsa, norte-americana e francêsa. Sequer pode-se afirmar que hoje 
vigora um Termidor. Na verdade o retorno político que testemunhamos 
segue para o arbítrio e a imposição de leis e normas pelos que ocupam o 
lugar do arcaico rei sagrado. Nunca, na história política moderna e 
deste país, o Executivo foi tão impositivo e tirânico.
Com a hegemonia inconteste do Príncipe (inclusive com o retorno da 
prática na qual os bens do Estado pertencem a governantes e áulicos) 
temos algo similar ao descrito por Peter Burke na consolidação moderna 
do Estado: todas as instituições públicas tornam-se instrumentos para 
ilustrar a imagem do governante. ( ) A Raison d´État é apenas um outro 
elemento da reivindicação enunciada pelo Rei Sol: L´État c´est moi. Como
 indica Peter Burke, as academias científicas, artísticas, os palácios 
públicos, as avenidas, as cidades, as fábricas, os quartéis passaram a 
existir apenas para exibir a “glória da França” na figura de Luís. As 
técnicas empregadas pelo Estado absolutista foram assumidas pelos 
governos após o refluxo da Revolução de 1789. A primeira delas é o culto
 da personalidade, abusado por Napoleão e conduzido ao delírio no século
 20.
Recomendável é a leitura dos últimos considerandos feitos por Burke 
sobre o século anterior. O autor critica quem separa de modo radical a 
ordem política, na época de Luis e em nossos dias. Ele mostra que muitos
 autores recentes erram ao comentar o Estado do século 17. Por exemplo 
Daniel Boorstin que, em 1960, cunhou o termo “pseudo-evento”, cujo 
significado vai de uma ação encenada tendo em vista midia aos rumores 
sobre atos noticiados antes mesmo que ocorram. Em português atual o 
termo é factóide. As jóias, os quadros, medalhas e gravuras absolutistas
 integravam encenações meticulosamente ensaiadas. Existem outros termos 
como “Estado Espetáculo”, produzido por Schwartzenberg em 1977 ( ) para 
descrever a política de Kennedy, De Gaulle, Pompidou e Carter e o 
empacotamento dos candidatos. Dizer que “antes” os pretendentes ao 
governo não eram vendidos à população é olvidar que Richelieu e Luís XIV
 tinham ghost-writers para redigir discursos, memórias, cartas. A 
“venda” do produto político não difere em demasia hoje do que se fez na 
era da Razão de Estado.
Finalmente: “os meios de persuasão assumidos por governantes no 
século 20 como Hitler, Mussolini e Stalin e, em menor grau, pelos 
presidentes franceses e norte-americanos, são análogos sob certos 
aspectos importantes aos meios empregados por Luíz XIV”. Existem 
diferenças, pois “os novos meios eletrônicos têm suas próprias 
exigências. A mudança de discursos políticos para debates e entrevistas,
 por exemplo, é um dos seus efeitos. Mesmo assim, o contraste entre o 
que poderíamos chamar de ´governantes eletrônicos” e seus predecessores 
foi exagerado”. Conhecemos o sentido atual da manipulação das massas. 
Depois de Elias Canetti, cujo exame das multidões captou as bases 
totalitárias do século 20, em Massa e Poder, analistas como Peter 
Sloterdijk mostram as potencialidades da nova midia e da Internet no 
movimento de massas virtuais, determinado pela propaganda. ( )
Semelhantes artifícios são reunidos na classificação ética 
tradicional que diz respeito à mentira. Engana-se quem une razão e 
verdade. Como enuncia I. Kant, antecedido por Rousseau e Platão, a força
 do pensamento racional, no mundo finito, é acelerada pela mentira e 
pela desmesura. As primeiras linhas da Critica da Razão Pura dizem que 
“a razão humana sofre um destino peculiar, pois em todas as espécies de 
seu conhecimento ela se incendeia por questões que, como é prescrito 
pela própria natureza da mesma razão, ela não pode ignorar mas que, se 
ultrapassar os limites de seu poder, ela também não pode responder”. 
Como o poder político, a razão deve encontrar limites, caso contrário 
ela delira sem suportes na corporeidade humana. Se o conhecimento é o 
seu alvo, ela deve começar dando à sensibilidade o seu quinhão, 
partilhando seus poderes. Quando se imagina absoluta, a razão, enuncia 
Kant, torna-se despótica e vazia. A verdade necessita tanto de 
ingredientes raros e caros quanto das humildes fontes estéticas. Justo 
por tal motivo Kant defende a crítica da razão. Como diz o intróito da 
sua obra estratégica: “Nossa era é propriamente a era da crítica, a quem
 tudo deve ser submetido. A religião, por sua santidade e a legislação, 
por sua majestade, querem ser isentadas pela crítica. Mas então elas 
despertam suspeitas e não podem exigir o respeito sincero que a razão 
concede apenas ao que passa pela prova livre e pública”. ( ) O trecho 
kantiano é um ataque direto ao dogmatismo trazido pela razão de Estado. 
Tanto a ordem religiosa quanto a civil buscam um estado de exceção para 
si mesmas, enquanto a crítica liga-se à continuidade no ordenamento 
público e republicano. Alí, a regra é efetivamente universal e não 
admite exceções, muito menos estados de exceção. E a Raison d´État opera
 segundo a lógica do que é excepcional. Não por acaso um dos autores 
primevos na constelação absolutista redigiu em 1652 (tempo áureo da 
raison d´État, especialmente sob Richelieu e Mazarino) o primeiro livro 
claro sobre os golpes de Estado. Refiro-me a Gabriel Naudé. ( )
Proponho às senhoras e senhores inspecionar a mentira como essência 
da razão de Estado. Na tarefa, uso os trabalhos de vários escritores, 
sobretudo o de Victoria Camps, “A mentira como pressuposto”, editado em 
coletânea dedicada ao problema da mendacidade. ( ) Uma constatação 
primeira é sobre a natureza da linguagem verdadeira. Se ela é uma 
convenção ou se brota diretamento da natureza, é algo que se discute na 
filosofia desde os seus primórdios. Com esta zona cinzenta que obnubila 
noção de gênese, a hipótese mais produtiva, em termos políticos e 
jurídicos enuncia que a verdade no mundo finito não pode ser absoluta. E
 nem a mentira. A lingua, como a cultura humana incluindo o poder, 
define-se como um jogo. De Pascal a Wittgenstein, esta via tem sido 
explorada com insistência. A mentira, segundo o último pensador citado, é
 um jogo de linguagem que deve ser aprendido, como qualquer outro jogo.
Se existe uma atenuação do conceito de verdade e mentira no mundo 
moderno, ainda somos suficientes herdeiros de Rousseau e não perdemos a 
certeza na sinceridade. Este é o pressuposto da comunicação, sobretudo 
em coletivos que se desejam democráticos. Que a lingua seja o lugar dos 
equívocos, da insuficiente clareza, dos desvios semânticos, é algo 
debatido desde os pré-socráticos e o Crátilo platônico é eloquente 
testemunho. A simples inspeção em textos fundamentais do pensamento 
político moderno como o Leviatã, também mostram que antes de penetrar os
 segredos do poder é preciso bem vigiar o uso das palavras. Em nossos 
dias um analista que traz elementos para este labor é Austin, no 
importante How to do things with words. ( )
Segundo Austin, o que a lingua faz não é nem verdadeiro nem falso : 
está bem feito ou mal feito. Em lugar de erros ou falsidades, ele 
prefere dizer “atos infortunados”, como os abusos do pensamento, 
sentimentos, intenções, trazidos pela insinceridade do agente. Assim, 
dar conselhos com objetivos torpes, dizer culpado o inocente, prometer 
querendo não cumprir, não consiste em dizer coisas “falsas”, mas 
insinceras. Aí reside propriamente o ato de mentir.
Qual é a mais espalhada definição da mentira em nossa cultura ? A de 
Santo Agostinho. Este último proclama que Deus é inocente de toda 
falsidade. Ao dizer que Deus não precisa de nossa mentira, ele segue 
Platão à risca. Todos recordam as passagens da República que censuram os
 deuses homéricos mendazes, e a sentença do filósofo que define os 
atores divinos como inocentes. Do celeste ao humano: como a nossa 
vontade decidiu-se pelo mal, ainda no Paraíso (incluindo a mendacidade),
 no mundo finito tudo é pervertido. O Estado só existe porque ocorreu 
aqule primeiro ato de vontade maléfica e mentirosa. Servos de nosso 
egoísto e orgulho, para nós a mentira só pode consistir em “dizer o 
contrário do que se pensa, com a intenção de enganar”. (De mendacio) Em 
outro texto, o Contra mendacium ( ) [Contra o ato de mentir], o padre da
 Igreja analisa a mentira feita para obter vantagens. Nada mais 
acertado, no caso, do que recordar as passagens de Edmund Burke sobre a 
atração racional pelo mal, o que produz no homem o sentimento do 
“delight”, tranqüilo horror que segundo Burke é a fonte do sublime. 
Satã, o mentiroso supremo, pelo prazer da luz racional nos joga no 
delírio, armadilha cujo nome latino é lacio: rede luminosa que o 
Príncipe das Trevas joga sobre os “animais racionais”, para que eles se 
afastem da luz. ( )
A mentira é portanto um ato de fala. Vejamos o que isto pode 
significar. Os atos de fala dependem, segundo Austin, do ajuste de quem 
enuncia a um “procedimento convencional aceito (…) que inclui a emissão 
de certas palavras, por parte de certas pessoas em certas 
circunstâncias”. Este aspecto é determinado como ilocução (o que fazemos
 ao dizer algo), mas não como perlocução (o que fazemos pelo fato de 
dizer algo). A perlocução é o efeito produzido por um ato linguistico, o
 objeto ou a simples sequela deste ato. A perlocução pode ser 
intencional ou inintencional. A perlocução não é convencional, ela se 
produz ou deixa de ocorrer independentemente da correta efetivação do 
ilocutivo. Vejamos exemplos disso: “mate-o” é locutivo. “Ordenou-me que o
 matasse”, ilocutivo. “Persuadiu-me a matá-lo”, perlocutivo.
“Persuadir”, “convencer”, “assustar”, “alarmar” são perlocutivos cuja
 efetivação não depende do fato de usar certas expressões ou situá-las 
em contexto adequado, mas sim da habilidade, destreza ou astúcia do 
falante, da fraqueza ou vulnerabilidade do ouvinte, circunstâncias nem 
sempre previsíveis nem controláveis pelos próprios sujeitos do ato de 
fala. ( ) Para expôr a não convencionalidade do perlocutivo, Austin 
afirma que um juiz pode decidir, pela oitiva de testemunhas, quais 
locutivos e quais ilocutivos foram empregados no ato delituoso, mas não 
pode saber quais foram os perlocutivos porque não tem provas para tal 
exame. O ilocutivo é um ato físico mínimo, que consiste em dizer algo. O
 perlocutivo resulta do ter dito algo, que não consiste em outro ato de 
dizer. Ele não é convencional e isto poder ser verificado pelo fato de 
que ele não pode ser explícito, caso contrário perde eficácia. Não se 
diz: “eu te persuado”, ou “eu te assusto” quando se deseja realmente 
persuadir ou assustar. O perlocutivo pode ser intencional ou 
inintencional, um fim proposto ou querido, ou ser uma simples sequela do
 ilocutivo.
Se a mentira é “dizer o contrário do que se pensa com a intenção de 
enganar”, como considerá-la no contexto dos atos de fala? Falar a 
mentira, para Austin, é transgredir a condição dos atos de fala, a 
sinceridade. No ilocutivo, a mentira está em não cumprir de uma regra, 
que exige dos partícipes de uma troca de enunciados que eles possuam os 
pensamentos e sentimentos expressos, e que tenham a intenção de falar em
 consequência. Digamos em forma de jogo: os partícipes de um jogo de 
xadrez devem ter a a competência e o intento de jogar xadrez, não dominó
 ou um outro jogo. A sinceridade, assim entendida, é um pressuposto da 
conversa. A mentira, dizer o contrário do que se pensa, negaria o 
própria ato comunicativo. Ela não é um ilocutivo, mas um perlocutivo. 
Por exemplo: se falarmos “ao dizer X, eu o enganei” o intento e a 
consequência se ampara, justamente, na ausência de explicitação, na 
falsidade do ato, a inconexão encoberta entre o que digo e o que, de 
fato, pretendo conseguir sem que o outro o perceba, pois se trata de 
enganá-lo.
Permitam-me afirmar que nesse passo temos a condição primeira da 
Razão de Estado. Todos os comentadores daquela política indicam que a 
inconexão encoberta entre falante e ouvinte, entre os que falam pelo 
poder e os que obedecem, é o seu núcleo. A questão do segredo aninha-se 
neste fio básico da mentira. A mentira vai além dessa prática de engôdo 
metódico, pois alguém pode enganar e ocultar de si mesmo este seu 
intento, salvando às meias a própria consciência. “O político mente para
 ganhar eleições; o desempregado mente para conseguir emprego, e até 
existe quem minta exclusivamente para chamar a atenção”. Nestes casos, o
 perlocutivo não é apenas enganar. Assim, podemos imaginar que a mentira
 como perlocutivo absoluto —mentir por mentir— jamais ocorre. Mentir é 
um recurso próximo do que chamamos manipulação. Ela é um ato unilateral:
 eu engano, minto, e ele não deve perceber. Aqui também nota-se o traço 
da Razão de Estado, segundo a maioria dos comentadores. Quando citei 
Kant e a questão da crítica pública, era em preparação a este passo. A 
mentira, na perspectiva de Kant, nega o pressuposto semântico e 
pragmático essencial que, se ausente, a comunicação torna-se impossível 
e, com isso, toda ciência, moral, política. A razão de Estado é uma 
política paradoxal, porque tende a reduzir todo enunciado político à 
manipulação dos dirigidos, neles criando a aceitação temporária do que 
se diz e se faz, e que tem a marca da mentira. A adesão aos atos do 
governante é fabricada com meticulosa astúcia. A cada vez o engano deve 
ser retomado, sem que se acumule realmente qualquer obediência cuja 
origem seja a vontade efetiva do coletivo.
A razão de Estado arruina a base da política, a fé pública, porque 
ela é “um engano radical, uma ruptura de fé que arruina todo contrato 
discursivo; na mentira [e na Razão de Estado, RR] o ouvinte não é capaz 
de explicitar nenhuma estrutura; trata-se de um discurso ´fora da lei´”.
 ( ) A mentira é um abuso da linguagem. Quando descoberta, a mentira 
precisa de razões excusas para justificar tal abuso. A verdade não 
precisa se desculpar, salvo justamente diante da razão de Estado, como 
se apreende da história desta política que não ousa dizer seu nome. Os 
julgamentos das seções especiais de Justiça em Vichy, os julgamentos de 
Moscou e muitos outros julgamentos demonstram esse ponto.
Quais os tipos de mentira que mais operam na cultura ocidental, berço
 da razão de Estado? Na ficção, que sem dúvida não é verdadeira mas 
também não é mentirosa, pois não intenta enganar. A linguagem política 
comum, não presa à Razão de Estado, pois nela se encontram os 
eufemismos, as evasivas, os silêncios, as desinformações. Esta lingua 
promete sem prometer e deseja agradar e conseguir votos, persuadir mais 
do que convencer. Mas não pode ser dita mentirosa, mas demagógica. Nela,
 os interesses pragmáticos se sobrepõem a todos os demais interesses. A 
lingua da publicidade exagera para persuadir, é prescritiva de modo 
sutil. ( ) A lingua religiosa não é verdadeira, pois usa a analogia. Os 
atributos divinos são incognoscíveis. Só pode-se falar deles a partir 
das criaturas. A lingua cotidiana conta com fórmula mentirosas, que não 
podem ser tomadas ao pé da letra. Assim nas desculpas, saudações, 
expressões de contentamento ou tristeza. Victoria Camps cita a grande 
filósofa Mafalda, que se refere à expressão “não tenho tempo” como uma 
boa “mentira dos adultos que costuma funcionar”. Sempre é bom que se 
lembre o estratégico livrinho de Torquato Aceto, o Della dissimulazione 
onesta. “Existem classes e profissões que se pressupõe por princípio que
 forçam os seus representantes a mentir, como, por exemplo, os teólogos,
 os políticos, as prostitutas, os diplomatas, os poetas, os jornalistas,
 os advogados, os artistas, os fabricantes de alimentos, os operadores 
da bolsa, os juízes, os médicos, os falsificadores, os gigolôs, os 
generais, os cozinheiros, os traficantes de vinho”. ( )
Mas nessas mentiras profissionais, diga-se, temos mentiras 
partilhadas, pois nelas o engano participa e assume a mentira. Esta 
última, no entanto, sendo um jogo que deve ser aprendido, aquelas 
mentiras pervadem todos os discursos, deixando por isto de serem algo 
que vai contra o coletivo. Em alguns casos temos aí algo lícito, ou 
ilícito, segundo o caso. Passemos ao caso da mentira como ato de 
violência e poder.
As mentiras mencionadas há pouco, são geralmente socialmente aceitas,
 são funcionais, convencionais. A mentira real se identifica com a 
injustiça. Ela é uma espécie de violência e ela só é justificada pela 
aceitação do violentado. Nela, as duas partes —mentiroso e enganado— 
sabem que estão mentindo um ao outro, mas ao dirigido não resta nenhuma 
saída que não seja a adesão. Quando existe mentira real? Quando a 
competência linguistica é assimétrica: mente-se à criança, ao doente, ao
 fraco, ao vulnerável, ao que depende de tutores. A mentira é 
possibilitada pela dominação religiosa, política, ideológica, 
profissional. A Razão de Estado se instala no mundo humano com a 
dominação assimétrica absolutista. É o caso de James I, que afirma ser o
 rei “accountable” apenas perante Deus. Aos súditos, ele ensina e manda 
sem que eles possam exigir prestações de contas. A luta contra a Razão 
de Estado formou o núcleo das revoluções democráticas na Inglaterra do 
século 17, na América e na França no século 18. Na democracia, a 
competência linguistica é simétrica e compartilhada. É por semelhante 
motivo que todos os reacionários do século 19, a começar com os 
romênticos conservadores, viram na democracia aquele regime onde todos 
falam, e todos falam em demasia, sem poder decidir.
Basta “alguma experiência da alma humana” diz Weinrich, para detectar
 os sinais da mentira. Aprender o jogo da mentira —e não por acaso o 
estadista da Razão de Estado é comparado ao jogador que frauda as 
regras— é aprender as possibilidades de manipulação e engôdo, que 
encobrem a fala, que por sua vez é o disfarce do pensamento. O que faz o
 regime da Razão de Estado contrário ao genero humano e à liberdade é o 
fato de que sua mentira é uma injustiça que não considera governantes e 
governados como iguais, uma redução, como diria Kant, do outro a puro 
meio da vontade governante. Não por acaso Montaigne define a mentira 
como “valentia diante de Deus e covardia diante dos homens”. É por tal 
motivo que o perlocutivo fornece uma chave para entender o ato da 
mentira política, dita Razão de Estado: a sua essência é a dominação do 
outro quando este não consegue recusar ou mesmo detectar o engano. O 
perlocutivo não é “mentir” ou “enganar” (porque disse X, menti ou 
enganei). A mentira permanece oculta, em especial na Razão de Estado, 
porque não deve ser percebida, caso contrário, ela perde seu efeito. 
Habermas imagina que numa sociedade ideal, ou seja, a democrática e 
ilustrada, impera o diálogo e a mentira é impossível. A simetria entre 
os cidadãos e os dirigentes mostra-se total. O único senão é que tal 
sociedade nunca existiu nem existirá, salvo talvez na Cidade de Deus. 
Mesmo assim é preciso atentar para a ruptura do diálogo celeste, trazida
 pelo primogênito da Luz. Sendo assim, temos a realidade absolutista da 
assimetria entre cidadãos e cidadãos, entre cidadania e príncipes. 
Existindo a assimetria, temos o poder dos competentes na fala e nos 
atos, os quais decidem sobre o que pode ser ouvido e compreendido pelos 
governados.
Não admira que os Estados formalmente definidos como democracias 
sejam frágeis nos dias posteriores ao Termidor. Não admira também que a 
confiança dos cidadãos na democracia diminua a olhos vistos. A astuciosa
 Razão de Estado, da qual adoecem estadistas, intelectuais e sobretudo 
burocratas, não pode fugir da corrosão homeopática da fé pública, sem a 
qual nenhum poder se sustenta em prazo longo. Como diz Nietzsche, citado
 bem a propósito por Victoria Camps, “os homens não fogem tanto de ser 
enganados, como de serem prejudicados pela mentira”. Não é por teres 
mentido para mim, arremata Nietzsche, “mas porque eu não mais acredite 
em ti, é isto o que me faz estremecer”.
Fé pública e verdade são os esteios que garantem todos os deveres, 
todas as leis, todos os contratos. É isto, afirma Amélia Valcárcel, ( ) 
que afasta a Razão de Estado para fora dos limites da moralidade. É por 
este motivo que Hegel estigmatizou a critica da razão, proposta por 
Kant, como algo desagregador para a sociedade civil e para o Estado. Sem
 dúvida, imagina Hegel ao perverter a noção de mentira na República de 
Platão, o sujeito individual não deve mentir, mas deve ser admitido que 
entidades não subjetivas podem trazer verdades que para ele, indivíduo 
abstrato, são mentiras. A instituição estatal é a verdade suprema dos 
indivíduos, ela tem o direito à mentira para o bem do coletivo. 
Moralmente se exige que uma pessoa não minta a outras, sendo 
repreensível se ela mente sobre assuntos de sua esfera profissional ou 
familiar. Sua mentira será punida se a mentira cometida afeta o Estado. 
Este, segundo Hegel, não precisa dizer a verdade, porque ele é a 
verdade. Instituições não mentem, indivíduos sim.
Termino essas notas sobre Razão de Estado com a lembrança de Pitt 
Rivers ( ) que afirma ser a mentira essencialmente uma categoria que 
mede a hierarquia. Mentir é uma relação que se faz cima para baixo. 
Trata-se de saber quem possui direito à verdade. Mentira é não dizer a 
verdade a quem possui direito a ela. A ordem que chega de cima não é 
mentira, mas palavra de poder pertinente em si mesma, modelo e guia do 
saber e da ação dos que a recebem. Quem precisa fazer com que sua 
informação suba pode mentir, mesmo inadvertidamente, se esconde ou 
tergiversa parte de sua informação ou se não purifica o conveniente para
 o seu nível. Os totalitarismos, finaliza Valcárcel, “nunca 
reivindicaram a si mesmos como prováveis, mas como verdadeiros”. O 
absolutismo fez o mesmo, com a terrível mentira que se encerra na Razão 
de Estado. Para dizer tudo com Zaratustra: “Em alguns lugares do mundo 
existem ainda povos e rebanhos, mas não entre nós (…) aqui só existem 
Estados. Estado? O que é isto ? Abri os ouvidos e lhes falarei da morte 
dos povos. O Estado é o mais frio dos monstros frios. Ele é frio mesmo 
quando mente; eis a mentira que sai de sua boca: ´Eu, o Estado, sou o 
povo’. Mentira. Os criadores formaram os povos e desenrolaram sobre suas
 cabeças uma fé e um amor; eles serviram a vida. Mas os destruidores 
puseram armadilhas para a multidão, é o que eles chamam Estado; eles 
puseram sobre suas cabeças uma espada e cem apetites. Se ainda existe um
 povo, ele nada compreende do Estado e o odeia como um pecado contra a 
moral e o direito. (…) Cada povo tem seu idioma do bem e do mal e o povo
 visinho não o entende. Mas o Estado sabe mentir em todas as linguas do 
bem e do mal e em tudo o que ele diz, mente e tudo o que possui, roubou.
 Tudo nele é falso; ele morde com dentes falsos, até suas entranhas são 
falsas. ( ) O Estado é o lugar onde todos estão intoxicados, bons e 
máus, onde todos se dissolvem (…) onde o lento suicidio de todos é 
chamado ´vida´. (…) Vede estes superfluos: eles adquirem riquezas e 
apenas se tornam mais pobres. Eles querem o poder (Macht) e, antes, a 
alavanca do poder, muito dinheiro —esses impotentes! Vede como eles 
sobem, estes macacos ágeis. Eles sobem uns sobre os outros e se fazem 
mutuamente cair na lama e no abismo. Todos querem ganhar o trono. Com 
frequência é a lama que está sobre o trono, e não raro o trono está 
plantado na lama. Todos loucos…seu idolo fede, este monstro frio; eles 
também fedem, os idólatras…”.
Nietzsche não foi um democrata, longe disso. Mas viu coisas não 
percebidas por muitos militantes que, por nada perceberem na Razão de 
Estado, coonestaram horrores na Alemanha, na Itália, na URSS, no Camboja
 e em muitas terras. É o que eu tinha para dizer sobre o tema. Obrigado.