quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Renúncias, Roberto Romano

Renúncias

Roberto Romano

13 Agosto 2015 | 03h 00
 
Quais reflexões surgiram na mente de Bento 16 quando decidia, na solidão dos apartamentos pontifícios, a sua renúncia? Ponderava as várias faces do seu governo, as dificuldades vencidas e as insuperáveis, em razão da idade? Pensou ele nos inúmeros obstáculos para chegar ao trono de São Pedro? Rememorou os instantes de crise desde que, assessor em teologia reconhecido pela competência entre padres do Vaticano II, seguiu pelos corredores dos palácios recolhendo títulos? Reviu a cena de sua consagração episcopal, depois cardinalícia por João Paulo 2? Evocou as vezes em que exigiu explicações dos teólogos progressistas, antes seus aliados, para atender a pastoral do papa reinante? Num átimo, repassou sua vida toda, desde a infância na Bavária, quando vestiu o uniforme da juventude hitlerista? Ninguém sabe.

O fato é que, inesperadamente, com latim castiço, ele surpreendeu os líderes da Igreja com sua renúncia. E o mundo ficou perplexo com eles. Foi matéria rica para a imprensa mundial durante dias, numa época em que as notícias da manhã são gastas e sem interesse no crepúsculo. Joseph Ratzinger entrou para a seleta companhia dos poderosos que abriram mão do poder, deixando a liderança de uma instituição antiga como o Ocidente.

A Igreja Católica é rica de ensinamentos espirituais que reúnem prismas os mais diversos. Os seus símbolos ultrapassam em dignidade as que se baseiam em signos lógicos, jurídicos, políticos, econômicos. A Igreja é um tecido simbólico intrincado. A nos inspirar em Tertuliano, ela é uma cauda de pavão com múltiplas cores, todas convergindo para o efeito maior, a vista sinótica do arco-íris. Nela, têm lugar todas as culturas e ideias. A única exigência é que a harmonia do todo seja respeitada pelos particulares. Administrar cada uma das formas da cultura e conduzi-las à concórdia sempre foi o desafio dos pastores. O catolicismo reúne os opostos e os conduz, na observação de E. Canetti, rumo ao Eterno. A sua hierarquia não se deixa dominar pela voragem do tempo que desgraça os Estados, a sociedade civil e os mercados. Jacques le Goff o diz bem num artigo eloquente: “Tempo da Igreja e tempo do mercador”. Este último deixa-se penetrar pela rapidez das trocas, vende e compra o tempo na forma dos juros. Mas a Igreja declara que o tempo a Deus pertence e adverte contra a divinização das moedas.

Muito se fala, no Brasil, sobre o dito de Lampedusa em O Leopardo: é preciso mudar tudo, para que tudo permaneça como está. Poucos recordam a desolada atitude do personagem principal do romance, o Príncipe de Salina, com sua plena consciência de que os poderosos têm hora e data para mandar e para desaparecer do cenário político e mundano.

Quando seu confessor o reprova, e à aristocracia, por não defender a Igreja, o nobre responde com clareza meridiana: “Não somos cegos, caro padre, somos apenas homens. Vivemos numa realidade transitória à qual tentamos nos adaptar como as algas se dobram em face das ondas marítimas”. À Igreja foi dada implicitamente a promessa da imortalidade, diz ele, modificando o dito evangélico de que as portas do inferno não prevalecerão sobre a pedra na qual Pedro vigiará os céus e a terra. Tu est Petrus et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam. Entre a imortalidade eclesiástica e a vida dos indivíduos e classes, brota o abismo. “Para nós, um paliativo que promete cem anos equivale à eternidade. Poderemos nos preocupar com os nossos filhos, talvez com os netinhos; mas além deles tudo o que podemos acariciar com estas mãos não nos obriga. Não posso me preocupar sobre quem serão os meus descendentes eventuais em 1960. Mas a Igreja, sim, deve se preocupar, porque ela é destinada a não morrer. No seu desespero está implícito o conforto. E o senhor acredita que, se ela pudesse salvar a si mesma com o nosso sacrifício, não o faria?

Sim, com certeza. E faria bem.”

As dimensões do tempo esmagam poderes e riquezas. A Igreja não é eterna, mas recebeu a promessa da imortalidade. Haverá um dia em que ela será chamada por Deus a prestar contas dos fiéis e de si mesma. Este será o dia do Juízo Final, quando o tempo sumirá no Eterno, com todas as vaidades do mundo. Não haverá mais tempo e espaço. Mas até o instante oportuno (Kayrós) ela, por não ser eterna, conhecerá a tentação do nada, do mal. Na marcha rumo à salvação, ela passará por todos os príncipes, Estados, sociedades, classes, cujo tempo é finito, pura degração do Eterno. Nada no tempo é estável, durável, sobretudo os homens e seu poder.

Com base em tais doutrinas, a dupla de escritores Alain Boureau e Corinne Péneau publicou em data recente um livro com vários ensaios mais do que oportuno no mundo político e no Brasil de hoje: O luto do poder, ensaios sobre a abdicação (Paris, Les Belles Lettres, 2013). O volume repassa a renúncia da rainha Cristina, do general De Gaulle, do literário Rei Lear, de Bento 16. Todos os autores da coletânea insistem na situação peculiar dos abdicantes: com seu gesto, eles se põem acima do poder que lhes foi delegado. Mas, assim, eles também se colocam entre os mais solitários dos seres humanos. Ao poder estatal é atribuída a permanência, desde que súditos e reis morram ou renunciem. O segredo da estabilidade reside justamente na substituição dos entes efêmeros que ocupam os postos de poder.

A leitura da coletânea pode ser útil para todos os políticos nacionais que, no governo e nas oposições, se preocupam com a solidez institucional. Esta, não raro, depende de muitas renúncias: dos que estão como hóspedes nos palácios ou de quem almeja neles se instalar temporariamente. Para bom entendedor, uma vírgula basta.

*Roberto Romano é professor da Unicamp, é autor de ‘Razão de Estado e Outros Estados da Razão’ (Perspectiva)