quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

VIVA O ANO NOVO, COM CESAR OU SEM CESAR. CADA POVO TEM O CESAR QUE MERECE....

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Do Blog Pérolas Extra, Alvaro Caputo.

QUANDO ALGUÉM HONESTO CRITICA UMA PESSOA OU GRUPO, DIZ O NOME E O ENDEREÇO. E SUPORTA A REAÇÃO. SE ERROU, PEDE DESCULPAS PÚBLICAS. SE ACERTOU E MESMO ASSIM É PENALIZADO, VALEU A PENA PORQUE AS QUESTÕES FICARAM CLARAS. SE ACERTOU E MUDAM AS ATITUDES DOS CRITICADOS PARA MELHOR, EXCELENTE PARA A SOCIEDADE E O ESTADO.

QUEM APENAS UTILIZA A FÓRMULA QUE SE INICIA COM O "SE" ("TEM GENTE QUE DIZ ISTO OU AQUILO", "FALA-SE POR AÍ", "DIZEM QUE", "ELES QUEREM", SEM SUJEITO IDENTICADO) OPERA COM MÁ FÉ. E MÁ FÉ É O OPOSTO DA FÉ PÚBLICA. NESTE PONTO, CONCORDO INTEGRALMENTE COM HEIDEGGER, ALIÁS APOIADO NISTO POR NADA MENOS QUE GIORGY LUKÁCS, O MÁRTIR VOLUNTÁRIO DO STALINISMO... NÃO É RESPONSÁVEL OCULTAR O NOME OU PELO MENOS A QUALIFICAÇÃO DO SUJEITO CRITICADO. E QUEM NÃO RESPONDE PELO QUE DIZ, NÃO TEM AS QUALIFICAÇÕES MÍNIMAS PARA DIRIGIR A VIDA PÚBLICA.
THIS IS THIS, AND THAT IS THAT.
RR


Gigolô da ignorância alheia




Noblat no seu blog


Lula escolheu para fechar o ano a sua máscara preferida: a de vítima. Voltou a repetir no Recife, durante a inauguração, ontem, de um parque, que seus críticos torcem para a crise financeira "arrebentar o Brasil". Só assim ele perderia popularidade. - Tem gente torcendo para a crise arrebentar o Brasil. Tem gente dizendo: Ah, agora a crise vai pegar o Lula. Agora é que nós vamos ver. Queremos ver se ele vai continuar bom na pesquisa. Queremos ver porque agora ele vai se lascar. É assim que falam.

Os empresários torcem para que a crise arrebente o Brasil - e por extensão os seus negócios? Não são suicidas.Boa parte dos políticos de oposição é formada por empresários. A parte que não é quer sobreviver como todo mundo. Torce contra a crise e não a favor dela.A mídia torce pela crise? Ela já está sendo vítima dela. Caiu o volume de anúncios em todos os meios de comunicação. Alguns jornais começaram a demitir.Jornalista torce pela crise? Para quê? Para perder o emprego? Interessa aos governadores José Serra e Aécio Neves, ambos aspirantes à vaga de Lula, que a crise desacelere o crescimento do país que pretendem herdar? Para eles o ideal seria receber uma economia nos trinques. E governar em paz pelos próximos dois anos.

A condição de ex-retirante da seca ajudou Lula politicamente. A de ex-metalúrgico que perdeu um dedo na prensa, também. A de quem não estudou, mas mesmo assim chegou à presidência da República - essa nem se fala. Diante de uma dificuldade maior, Lula veste a máscara de vítima - e desfila com ela por aí.

Foi assim quando vários escândalos ameaçaram seu governo. Ele acusou as elites de desejarem derrubá-lo - mas por que? Elas jamais lucraram tanto antes. Se dependesse delas, Lula teria um terceiro e até um quarto mandato consecutivos. A crise pode atrapalhar o plano de Lula de fazer o seu sucessor. Pode até mesmo arranhar sua popularidade. É por causa disso que ele tenta jogar no colo dos adversários parte da responsabilidade pelos estragos que a crise venha a causar. Quer tirar vantagem da crise. Esse tipo de comportamento da parte dele tem dado certo até aqui. Entre nós, Lula é disparado o mais talentoso gigolô da ignorância alheia.

Correio Popular de Campinas, 31 de dezembro de 2008

Publicada em 31/12/2008


Para entender Carl Schmitt (5)

Roberto Romano

Os propagandistas da URSS usaram e abusaram de um recurso gráfico para apagar atos e pessoas incômodos. Fotos recebiam retoques, arrancando do cenário indivíduos e grupos não mais gratos ao regime. O procedimento é comum na história dos livros. Algo irrita o público, as autoridades civis e religiosas? Muito simples. Basta cortar trechos, amoldar frases, e a censura efetuou seu papel. Seitas acadêmicas, sobretudo as mais próximas da esquerda ou da direita, são pródigas no uso do método eficaz. É o que efetuam muitos seguidores de Heidegger, Carl Schmitt, e outros pensadores acusados de cumplicidade ou identidade com o nazismo. É possível discutir a veracidade de todas as acusações, mas os textos completos devem ser lidos, sem cortes piedosos ou espertos.

Segundo muitos comentadores, Schmitt seria inocente dos atos perpetrados por Hitler e asseclas. Os autores “esquecem” os louvores de Schmitt a Hitler, em especial no texto O Füher protege o direito. Dizer por exemplo que os “excessos bárbaros e o poder arbitrário” não seriam objeto de Schmitt, beira o hediondo. Mas para que tamanha retórica, se é possível ler o próprio jurista, em momentos nos quais a sorte dos judeus estava sendo jogada pelos nazistas, com aplauso de Schmitt?

Sigamos o hino de 1935 entoado, em publicação no Deutsche Juristen Zeitung, do qual Schmitt era editor. Ali se anuncia que em 15 de setembro o Reichstag criou leis sobre a bandeira, a cidadania, a proteção do sangue e da honra alemã. O Parlamento, diz Schmitt, ao editá-las assumiu a si mesmo como “o próprio povo alemão, conduzido pelo movimento nacional socialista e obediente ao Füher Adolf Hitler; as leis desse povo são desde séculos a primeira Constituição alemã da liberdade”. Até aquela data o povo só conhecera liberalidades (Libertäten) ou liberalismo (Liberalismus). A liberdade era “arma e slogan nas mãos de todos os inimigos e de todos os parasitas da Alemanha (...) porque as Constituições liberais são formas de mascaramentos típicos da dominação estrangeira”. Entende-se a crítica à Constituição alemã em Schmitt: ela não era a do Estado Novo, do movimento nazista e nem do povo. Com as leis racistas, “os conceitos de nossa Constituição se tornaram novamente alemães”. As constituições anteriores “não falavam do sangue e da honra alemã. A palavra ‘alemão’ só nelas surge para sublinhar que ‘todos os alemães’ são iguais perante a lei’”. Mas esta frase, afiança, “servia apenas para tratar em pé de igualdade os que não pertencem à mesma raça (Artungleiche) dos alemães, e para considerar como alemães todos os que eram iguais diante da lei”.

E se a lei que ordena a exclusão dos judeus não for assumida pelo povo? Neste caso, anuncia Schmitt, “o Füher evocou a possibilidade de um novo exame da questão”. Se “a solução legal” não der certo, “a decisão pode ser transferida para o Partido (...) o qual é declarado o vigia da santidade völkisch, o protetor da Constituição”. Hitler, “juiz supremo da nação”, imporia o movimento nacional socialista “como protetor de nossa Constituição”. Termina seu hino o jurista dizendo : os alemães devem cuidar para que “o nosso direito não se decomponha nas mãos do demônio sem coração que é a degenerescência (Entartung)”.

Existiu coisa pior na Alemanha da época? Sim. Vejamos o que diz Fr. Gebhardt em 1933, sobre a raça e o cristianismo: “Israel foi o povo escolhido (Volk), mas Deus o rejeitou e deu o Evangelho para um ‘povo’(Volk) que daria seu fruto (os alemães)”. E J. Hossenfelder, bispo de Brandemburgo: “Rejeitamos a missão judia na Alemanha enquanto os judeus possuírem o direito de cidadania e, então, o perigo do ocultamento da raça e do abastardamento continuarem” (Cf. E. Voegelin : Hitler e os Alemães, SP, É Realizações Ed., 2008, p. 218). Schmitt é antisemita de modo igual, e sua doutrina não passa de propaganda genocida. Usá-lo em nossos dias é retomar horrores que levaram ao Holocausto. Quem possua entranhas e cérebro, com certeza pensará muito antes de usar os seus textos para balizar qualquer ação pública no mundo e no Brasil.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

OUTRO ARTIGO, SAÍDO NA REVISTA DE ECONOMIA MACKENZIE, E IMPOSSÍVEL DE SER ENCONTRADO PELAS VIAS NORMAIS.


Reflexões sobre impostos e raison d´État.


Roberto Romano


“O artigo procura indicar alguns pressupostos comuns, na história moderna, da instituição estatal e eclesiástica, como base para a prática de controle e de extração de recursos econômicos através do conhecimento, o mais exato possível, do “corpo social”.


Com o fim da URSS e o consequente desequilíbrio do poder mundial, as várias formas dos mais importantes estados entraram em crise profunda. Os organismos internacionais —sobretudo os que definem as atividades econômicas— enfrentam a tese da soberania estatal reduzida ao mínimo. Este ideário, presente em vários sistemas do século 18 (contra o aparato religioso e despótico do Antigo Regime) radicalizou-se após os desastres do nazismo, do fascismo e do stalinismo no século 20. Filósofos dessa tradição liberal, sobretudo Karl Popper (1) e Ernst Cassiser,(2) tentaram evidenciar que o Estado em excesso estaria na base do totalitarismo. Semelhante planta venenosa não surgiu, no seu entender, de um instante para outro, mas deita raízes na história da cultura política européia. Popper e Cassirer indicam Platão como o semeador do governo que destrói a liberdade dos indivíduos e dos grupos.

Na retórica contrária ao estado, a tese que mais retorna é a dos impostos que seriam um obstáculo à produção e ao mercado, gerando pobreza material e servilismo político. Todos os governos conservadores (e alguns progressistas) foram eleitos prometendo drástica diminuição da carga tributária. Se não cumprem esta façanha, nenhum dos agrupamentos que os apoia assume a incoerência entre o dito e o feito. A questão dos impostos integra os aspectos que definiram a própria raison d´ état moderna. Impostos seriam a seiva que nutre o organismo estatal, o alimento de um ente monstruoso, a máquina de constrangimento coletivo.


Se a essência estatal assumiu no século 20 uma densidade inaudita na história política da humanidade —com as tentativas (3) totalitárias— é preciso também recordar que naquele século, no plano teórico, surge o dilema enunciado por Max Weber. Se a burocracia é o destino do mundo e a razão calculadora tomou posse da política e da economia, a política desaparece. O Estado transforma-se num maquinismo planificador que funciona como se fosse máquina, seguindo o paradigma hobbesiano. O desalento diante deste obstáculo, evidente em Weber, foi acolhido pelos seus ouvintes de vários modos. G. Luckacs viu na revolução proletária mundial, baseada na vontade das massas, o antídoto para o “poder dos escritórios”. No outro extremo da “ferradura ideológica” (4) Carl Schmitt indicou na vontade do chefe o caminho da salvação para o ato político. O caminho do Estado soviético e nazista foi complexo e cheio de desvios, bem mais do que no sonho daqueles teóricos. (5)

A burocracia recrudesceu, mesmo após as aventuras totalitárias e o breve interregno antes da Guerra Fria, quando foi instituida a ONU. Hoje o Estado máquina, posto como ameaça às liberdades, a começar com a econômica, é exorcizado nos EUA, federação que mantem, com a burocracia civil ligada à “comunidade de informações” extensa e indomada, poderosa força militar que o ajuda —e não raro, como no caso do Iraque, aumenta seus problemas— no controle de seus interesses mundiais.

A metáfora da máquina para pensar o estado é antiga como a filosofia ocidental. Desde Platão pelo menos, a idéia de que o universo físico e humano constituem instrumentos produzidos com arte e técnica, os quais devem ser dirigidos por sábios competentes, habita as mais importantes teorias políticas. Basta que se pense em Thomas Hobbes. Esta maneira de imaginar os entes políticos e sociais foi recusada de modo peremptório no pensamento conservador e reacionário do século 19 e inícios do século 20. Não por acaso Platão é visto como o marco inicial do totalitarismo pelas filosofias românticas e nas teses liberais e neo-liberais de nosso tempo. O estado máquina é um desafio importante da política: não por acaso Platão o ideou contra a democracia ateniense, lugar onde nasceu a nossa sensibilidade política. Confiantes na eficácia dessa polis dirigida pelos sábios (máquina de viver em comum é a melhor definição da República platônica), contra a instabilidade das assembléias cidadãs, os grandes nomes do pensamento político não tiveram dúvidas.O impulso do cálculo e do automatismo que aniquila a política em nome da eficácia atravessou os séculos e se ofereceu para Weber —quando este último caracterizou o estado e a sociedade burocraticos— na figura da fábrica onde todas as conexões são artificiais e mecânicas. A essência burocrática seria o resultado lógico dos séculos de razão mecânica.(6)

As metáforas do organismo, apresentadas contra o ideário mecânico pelos conservadores românticos e por seus herdeiros, quando aplicadas ao político modificam a lógica da razão mecânica e, por conseguinte, a razão de Estado. (7) É preciso cautela quando se adianta que a noção de racionalidade mecânica (como o fazem os polêmicos Cassirer e Popper) pode conduzir à raison d´État no sentido totalitário. Em primeiro lugar, considere-se o amalgama de figurações —orgânicas, mecânicas— que nutriram todos os pensamentos políticos do Ocidente. (8) Em segundo, porque mesmo em livros fundamentais na elaboração da racionalidade moderna, como a Enciclopédia arrazoada de artes e de ofícios, de Diderot e d´Alembert (obra coletiva que defende ao máximo a tese do mecanismo e que deu impulso máximo à razão mecânica) existe uma séria crítica à razão de Estado, com o uso da metáfora corporal para descrever aquela instituição.

Se consultamos o verbete “Raison d´Etat” da Encyclopédie (redigido por Jaucourt, mas revisado por Diderot), percebemos que a própria exposição daquela idéia já é crítica. “Alguns autores acreditaram que existem ocasiões nas quais os soberanos eram autorizados a fugir das leis severas da probidade, e que o bem do Estado que eles governam lhes permite agir de modo injusto diante de outros estados, e que a vantagem de seu povo justificaria a irregularidade de suas ações”. Assim, no introito do artigo as frases postas no condicional mostram a suspeita do autor na doutrina formulada desde a Renascença. Diderot e seus colaboradores sempre tiveram relações muito difíceis, para não dizer claramente conflituosas, com Frederico o grande da Prússia e Catarina 2, os supostos “monarcas esclarecidos”. (9)

As injustiças, continua o verbete, “autorizadas pela raison d´état, consistem em invadir o território de um visinho cujas disposições são suspeitas, apossar-se de sua pessoa, privá-la das vantagens a que tem direito sem motivo confessado ou sem declaração de guerra”. A descrição dos atos subsumidos sobre a razão de Estado, como vemos, do século 18 ao nosso, é constante. A retórica empregada na justificação da raison d´État é a mesma. Adianta o texto: “Os que sustentam uma idéia tão estranha (eu sublinho, RR), a fundamentam no principio de que os soberanos devem procurar tudo o que pode fazer feliz e tranquilos os povos que lhes são submetidos, e têm o direito de usar todos os meios que levam ao fim salutar”. Temos aí, resumida, de modo claro e distinto, a essência do cálculo estatal.

Mas seguem-se as propostas de remédio para o problema: “por mais especioso que seja o motivo (a felicidade e a segurança tranqüila dos povos, RR) é muito importante para a felicidade do mundo (eu sublinho, RR), encerrá-lo en justas barreiras: é certo que um soberano deve procurar tudo o que tende ao conforto da sociedade por ele governada; mas não pode ser à custa dos outros povos. As nações, assim como os particulares, têm direitos recíprocos. Sem isto, todos os soberanos, tendo os mesmos direitos, estariam num estado de desconfiança e de guerra contínua”. Conclusão do verbete: “os representantes dos povos, não mais do que os indivíduos na sociedade, não podem isentar a si mesmos das leis da honra e da probidade. Seria abrir as portas para a desordem universal estabelecer a máxima que destruiria os vínculos entre as nações, e que exporia as mais fracas às opressões das mais fortes. Tais injustiças não podem ser permitidas, qualquer que seja o nome que se use para disfarçá-las”.

A lição hobbesiana é conhecida pelo autor da Encyclopédie, mas não aceita por ele. Sim, existe uma guerra permanente entre os estados,mas é preciso pensar na ordem (a verdadeira racionalidade) e na paz cósmica. Se consultarmos a definição de estado, na mesma obra, vemos que o autor colheu, com muita precisão na idéia do ser político, algo assumido apenas em um prisma pelos defensores da razão de Estado. Segundo estes últimos, a plena astúcia e força, usadas sem regra nem lei pelos soberanos, justifica-se pela segurança e felicidade dos súditos. Mas o ser político, pensa o enciclopedista, não é feito tendo em vista apenas aqueles pontos: estado, escreve ele, “designa uma sociedade de homens vivento juntos sob um governo qualquer, felizes ou infelizes (eu sublinho, RR). Se um povo é infeliz nos limites de suas terras, não é pela conquista ou invasão de outros que ele alcança a sua beatitude. E o estado onde as pessoas são infelizes também é um ente perfeito.

Logo após essa declaração política fundamental, lemos no verbete a definição do estado como um organismo. Importa citar este passo porque, como sabemos, a Encyclopédie é um monumento do pensamento mecânico, sendo o lugar por excelência do culto a Francis Bacon e a Isaac Newton (mais do que nos escritos de Voltaire).

“Pode-se considerar o estado como uma pessoa moral, cuja cabeça é o soberano e os particulares são os membros. Como resultado atribui-se a esta pessoas certas ações que lhes são próprias, certos direitos distintos dos que são usufruídos pelos pelos cidadãos individuais e que estes últimos não podem se arrogar. Esta união de muitas pessoas num só corpo, produzida pelo concurso das vontades e das forças de cada particular, distingue o estado da multidão, pois esta é apenas um ajuntamento de muitas pessoas, na qual cada uma delas tem uma vontade particular. Enquanto isto, o estado é uma sociedade animada por uma só alma, a qual dirige todos os movimentos de modo constante, no relativo à utilidade comum. Eis o estado feliz por excelência. Seria preciso para formar este estado, que a multidão dos homens fosse unida de um modo tão particular, que a conservação de uns dependesse da conservação dos outros, para que eles estivessem na necessidade de se entre-socorrer. E que por esta união de forças e de interesses, eles pudessem afastar os insultos dos quais cada um, em particular, não poderia se defender, obrigando ao dever os que dele querem se afastar, e obter assim o bem comum.”.

Com essa imagem arcaica do corpo político, figura por excelência das idealizações organicistas que definirão o romantismo futuro, o escritor do verbete (trata-se de Jaucourt) recolhe o tema por excelência da raison d´état, a idéia de que o soberano precisa conhecer bem o corpo político em cada uma de suas partes e no seu todo, para bem governar. A causa desta necessidade também é dita por Jaucourt: “ocorre no corpo político como no corpo humano, nele pode-se distinguir um estado sadio e bem constituído e um estado onde reina a doença. Seus males vêm do abuso do poder pelo soberano, ou da má constituição do estado. É preciso buscar a causa nos defeitos nos vícios dos que governam ou nos vícios do governo”.

Não é o lugar, aqui, de seguir a suposta corporeidade do estado, com as suas doenças. Desde os escritos hipocráticos, dos quais herdamos conceitos estratégicos da política (a idéia de regime, de constituição, etc) até os grandes textos platônicos, aristotélicos, estoicos, epicuristas, passando pelo Renascimento e atingindo o idealismo e materialismo dos séculos 19 e 20, a metáfora da doença é das mais constantes para designar as dificuldades no ordenamento do estado e da sociedade civil. (10)

A idéia mesma da raison d´état surge a partir da necessidade, para o dirigente, de ter acesso imediato a cada um dos focos possíveis da “doença” estatal.

O padre Athanasius Kircher, jesuita dedicado ao conjunto das ciências úteis à Igreja e ao estado, sintetiza de modo perfeito a tentativa de tudo conhecer, pelo governante, unindo propostas técnicas imaginárias de controle dos governados por meio de instrumentos opticos e auditivos. Por exemplo, na conhecida figura abaixo:











É preciso ouvir, se o principe está no seu gabinete, o que os governados dizem de modo a captar, antes que rebeliões ocorram, o estado dos negócios e a disposição espiritual do corpo político. Note-se que a escuta é um dos elementos mais antigos da prática médica, sendo exposto no Corpus hippocraticum com muita acuidade. Dois lados na mesma representação: no plano da optica, o dirigido deve ser o mais transparente ao governante e este, com a prática do segredo, deve ser o mais invisível ao dirigido. (11)

Se existe um corpo doente, o “médico” governante deve se prevenir e não deixar-se enganar pelo mal universalizado. Como diz um comentarista do Cardeal Mazzarino, para boa parte do pensamento político moderno, herdeiro do maquiavelismo, a assimetria entre os dirigidos e os dirigentes deve partir da pretensa imersão dos primeiros no campo doentio e da pretensa saúde dos segundos. “A presença do mal é como um foco subterrâneo e profundo (…). O homem é corrompido mas desta certeza parte não a recusa da ação, mas a própria ação porque o político, como a raposa, inaugura o seu difícil jogo com a sociedade que ele teme. O corpo está adoecido. Esta doença tem fases alternadas , umas escondidas e outras apenas aparentes, umas graves e de absoluta evidência. É preciso que o político esteja sadio, ele precisa tudo fazer para não se contagiar (…) para fazer da doença dos outros a sua própria saúde. E o político tudo fará para não sucumbir”. (12)

Além de todos os recursos técnicos surgidos no Renascimento, como a criptografia, os meios opticos e auditivos, a necessidade de controle do corpo social pelos dirigentes utilizou instrumentos que atingiram o fundo mesmo da alma social. Pode-se dizer que as “pesquisas de opinião” já se combinaram, desde pelo menos a Contra-reforma, para captar as disposições anímicas dos dirigidos e as suas riquezas materiais. Em ambos os casos, a busca dos dados estatísticos e a computação serviram para acrescentar o conhecimento, pelo governante, das supostas “doenças” sociais, e das providências para reforçar o caixa dos governos. O controle das idéias e das riquezas foi uma tarefa conduzida em séculos de experimentos de governo pela razão de estado.

Como em quase todos os setores do estado ocidental, os paradigmas iniciais de pesquisa e de controle foram oferecidos pela Igreja Católica. Esta última, após a Reforma protestante, enfrentou uma crise profunda na governabilidade dos fiéis. Como saber, com certeza, se um católico nominal seguia de fato as determinações hierárquicas? Como prevenir o corpus mysticum das “doenças” como o protestantismo, o livre pensamento, o ateísmo? Todas estas perguntas ligam-se à uma outra, bem mais fundamental: como prevenir a “doença” da secularização absoluta do mundo, a começar com a do poder político? Esta passagem do mando sacral ao secularismo, também é assunto extenso e com enorme bibliografia. Dentre os inúmeros estudos sobre o tema, o de Ernst Kantorowicks é dos mais sugestivos.

Esse autor mostra, com maior ou menor acuidado e documentação, que alguns pontos nodais das representações religiosas foram “traduzidas” ao mundo político. Em primeiro lugar, a própria idéia do estado como um corpo, à semelhança do corpo eclesiástico (segundo a figura adiantada por Paulo Apóstolo em I Corintios, 12:12). Mas outras translações imagéticas são mais curiosas. Sabe-se o quanto as tensões entre Igreja e Estado nacional que nascia foram norteadas pelo combate ao redor dos recursos economicos carreados para a instituição eclesiástica (dizimos, doações de bens materiais dos fiéis, etc) e desejados pelos reinos, sobretudo na Inglaterra e na França. (13)

Nessa luta entre a Igreja e os estados nacionais, os juristas dos segundos se apropriaram de noções antes reservadas apenas para o campo religioso, como a de um corpus Reipublicae mysticum, Cito o próprio Kantorowicks: “Christus e fiscus tornaram-se comparáveis face à inalienabilidade e prescrição. A base jurídica desta ´equiparação´ foi encontrada em muitas passagens do Direito romano, por exemplo no Código de Justiniano onde os pertences dos templa, as igrejas, eram considerados em pé de igualdade com coisas que pertenciam ao sacrum dominium do imperador. De acordo com este ponto, os juristas falaram em sacratissimus fiscus ou fiscus sanctissimus, uma frase que tem um curioso som apenas para os ouvidos modernos”. Como o Cristo, o fisco pode ser dito onipresente no tempo e no espaço, sendo a fonte de vida do corpo inteiro do estado. Ele é mesmo similar, em vários autores (citados por Kantorowicks) ao estômago no “corpo” estatal. A imagem, como é sabido, vem da fábula de Menenius Agrippa, exaustivamente utilizada pelo pensamento aristocrático contra a reivindicações da burguesia e dos setores mais “negativamente privilegiados” da história política da Europa. (14)

Se o fisco é sacratíssimo, e se ele é imortal e onipresente, resta no entanto, que ele precisa ser retomado a cada novo dia, com os procedimentos litúrgicos apropriados. Mas se é a fonte de onde emana a vida do estado, onde busca o fisco o sua próprio alimento? Nas riquezas do reino e da igreja, alojadas em última instancia nos bens dos homens. A Igreja católica não conhecia aqueles bens, pois desconhecia inclusive o modus vivendi dos seus fiéis. Desastres que ameaçaram o seu império, como a venda de indulgências no século 16, foram em boa parte devidos a este desconhecimento das fontes de onde emanavam as riquezas. As rimas do monge Tetzel, “Sobald das Geld im Kasten Klingt/Die seele aus dem Fegfeuer springt" (Quando a moeda no cofre ressoar/A alma do purgatório vai saltar), não foram nenhuma solução para o problema dos fundos que deveriam manter a igreja. A crítica de Lutero atingiu em cheio, não apenas a simonia, mas também a ignorância do organismo católico sobre as suas próprias bases sociais.

Problema semelhante enfrentou o estado, quando precisou buscar, além das expropriações dos bens eclesiásticos, as fontes da riqueza para taxá-las. Desconfiança enorme acolheu as primeiras investidas dos governos para conhecer o potencial dos reinos no campo dos impostos.

Técnicas muito próximas entre só foram empregadas pela Igreja e pelos estados para conhecer o mundo civil e suas riquezas. Indicarei a seguir, rapidamente, os dois caminhos daquelas instituições para tornar visíveis os “corpos” das sociedades.

No caso da Igreja Católica, a Reforma e a secularização do mundo político impulsinou, após o concílio de Trento, uma pesquisa constante das bases materiais e espirituais do mundo social. Enquanto a confissão protestante insiste na invisibilidade da consciência do crente, essencial para a liberdade do cristão (15) o catolicismo tridentino exasperou a visibilidade da comunhão religiosa e política de seu mando. Assim, para o cardeal Bellarmino, a Igreja seria “tão visível quanto a república de Veneza”. Isto em tese, mas como atingir a consciência dos fiéis, evitando que eles se escondessem dos padres e bispos (“adocendo de protestantismo, ateísmo, secularismo) e escondessem seus recursos no pagamento dos dizimos e de outros emolumentos sacrais?

O Concilio de Trento (1543-1563) obriga os padres a conhecer melhor as suas ovelhas, traçando o mapa da paróquia onde militam. São os famosos “registros do estado das almas” idealizados por Carlos Borromeu, promovido aos altares pela Igreja. (16) . O escrito fundamental de Borromeu neste âmbito é o Liber status animarum, onde se encontra, por assim dizer, o “programa” para a coleta dos dados sobre o corpo social, dados que deveriam ser remetidos todos os anos ao bispo, o qual os enviaria aos governantes da Igreja.

Após a Reforma e com as “doenças” do ateísmo e do ceticismo, a Igreja empreende, então, “olhar” o que se esconde no corpo da sociedade que supostamente lhe está submetida. Como o santuário da consciência, também supostamente, não pode ser invadido de maneira direta, o Liber status animarum é uma estratégica para fotografar o indivíduo por intermédio de suas relações com os demais, a começar no plano da família.

Vejamos a seguir como Carlos Borromeu ideou o fosmulários para a coleta dos dados. Na figura abaixo, a lógica inteira da pesquisa é imediatamente acessível: (In. Dagognet, F. Philosophie de l´image, página 202.) . E então, a ficha utilizada até o século 20 (François Dagognet: Philosophie de l´Image, página 204) .

Quais são as marcas principais dos formulários acima? Em primeiro lugar, eles, conforme indica F. Dagognet, proporcionam um contabilidade meticulosa das condutas humanas. Em segundo, fornecem meios abreviativos que permitem um reagrupamento fácil das informações: uma simples cruz significa que o paroquiano foi crismado, por exemplo, um 0 que ele não o foi. “Como nota o melhor conhecedor e historiador, Georges Couton, (….) ´a ficha mecanográfica está pronta, falta inventar a perfuração. O tempo dos gráficos, das estatísticas, dos computadores, poderia começar´. (17) Em terceiro lugar, fornecem os formulários respondidos dados sobre a família, a profissão, a rua, as casas, etc. Em quarto lugar, a notação, na margem do livro, das situações mais notáveis: as pessoas escandalosas, os blasfemos, os adúlteros, os que vivem em concubinato, pessoas em noivado mas que já habitam a mesma casa, os usurários públicos, os maridos separados de suas mulheres, etc. A grande cautela é assinalada no próprio “manual de instrução” dos formulários : “tomar cuidado para nada escrever que possa de algum modo prejudicar a reputação das pessoas, e mais ainda de algo que possa de algum modo desvelar os conhecimentos adquiridos na confissão”

Assim se desenha um verdadeiro mapa do social, identificando os lugares onde se instalam os libertinos, os luteranos, ao lado dos “vendedores de sortilégios, os artistas de teatro, as senhoras de pequena virtude, os traficantes”. Trata-se, nestes inquéritos, de um momento da burocratização quase militar (e os jesuístas estão na ordem do dia…) da Igreja Católica, em pé de guerra contra o mundo moderno, reformado ou secularizado.

Claro que muitos padres consideraram esta obrigação de mapear suas ovelhas como algo inútil, papelório excessivo. Mas é com base em cada um dos formulários que as autoridades católicas fazem uma contabilidade dos bens materiais e espirituais ao seu dispor. De um lado, os formulários fazem um balanço dos atos religiosos (batismo, crisma, casamento, exéquias), indicando a sua frequência em alguns lugares e a sua ausência em outros. Se o “sinal vermelho” aparecia, a pregação e os cuidados pastorais priorizavam o espaço onde os luteranos, os ateus, e demais concorrentes da Igreja obtinham êxitos. Mas os dados sobre o religioso se cruzam, no mesmo Livro do estado das almas, com outros, dando conta dos nascimentos, casamentos, mortes. Estes dados permitem seguir os elementos que entram na ordem de cada ato social, como a herança, os dotes, as brigas ao redor da passagem da riqueza. Esta tarefa era facilitada para os padres, porque eles tinham o controle das minutas do estado civil. Luis XIV chegou a ordenar (o Código Luis) regras estritas para o preenchimento dos registros em vários exemplares.

A Igreja católica, com esse aparato técnico e computacional, adiantou-se ao estado, definindo a raison de l´église antes da moderna raison d´état. Num só instante ela ficava sabendo as zonas de sombra onde seu domínio era contestado ou difícil, e os lugares onde ela reinava inconteste. Também ficava sabendo muitas coisas sobre os recursos materiais dos fiéis, o que lhe permitia estimar de modo menos desastrado do que antes da Reforma, o que poderia ser deles extraído, sem o escândalo da simonia denunciada por Lutero e pelos libertinos.


As lutas entre os poderes religiosos e os civís, para estabelecer com predominância o seu domínio no mesmo espaço social e político, exigiram das duas instituições, a Igreja católica e os estados absolutistas, aumentar o conhecimento de seus recursos para exercer a sua manutenção material, via taxas, emolumentos, dizimos, etc. Vimos como a Igreja definiu o seu caminho para tornar transparentes os fiéis à uma hierarquia que os “pastoreia” segundo regras de controle morais, políticos, ideológicos. O caso dos estados e do fisco segue uma dialética muito similar.

Se no caso eclesiástico seguimos o texto de Carlos Borromeu, com a análise de François Dagognet, agora acompanho o trabalho de Dominique Reynié “O olhar soberano, estatística social e razão de Estado do século XVI ao XVIII”.

Os momentos decisivos do estado moderno, a sua inauguração enquanto poder secular e sem a tutela religiosa, se inicia com a necessidade urgente de saber sobre o que e sobre quem reinava o principe. As primeiras “receitas” de transparência, neste sentido, foram fornecidas por escritores que, mesmo sem pertencer mais à Igreja católica, percebiam a carência de conhecimentos sobre o “corpo” social, da parte dos soberanos. É o caso de Nicolas de Montand, que prega uma espécie de desvelamento do social, seguindo um imaginário optico, mas com muita proximidade ao Liber status animarum. Assim, diz ele, baseado na fórmula de Bodin (a casa do tribuno Drusus, edificada para que todos pudessem vê-lo em seu interior ou exterior, por este motivo Drusus foi proclamado sanctus et integer) (19) é com base na visibilidade do governante que se pode alcançar a visibilidade dos governados. O primeiro é como “um cristal que tem a propriedade de penetrar todos os cantos e limites do Reino. Sua claridade atravessa as trevasm arruinam a obscuridade, e mostra os homens viciosos, inimigos de Deus, blasfemos, epicuristas, sardanapalos, ateus, sodomitas, assassinos e ladrões, massacradores, enganadores, e pallhaços de corte”. (20)

Na busca dessa transparência, dá-se também a procura dos indivíduos que vivem de modo não ortodoxo. Mas para chegar até eles, é preciso saber onde habitam os súditos do reino no seu todo, e quem são eles. Mas, adianta Reynié, “dizer a população do reino, dar a superfície do território não são coisas fáceis”. Reynié deixa implícito, mas os estados modernos, saídos a forceps do feudalismo e do controle eclesiástico, tinham fronteiras indefinidas, não raro sofriam o efeito “sanfona”, ora expandiam-se num sentido, ora noutro, ora retraiam-se num lugar, ora noutro. Mesmo nos territórios mais seguros para o governante, os números eram errados ou fantasiosos.

E a pesquisa demográfica assume, a partir desse ponto, lugar estratégico, empurrada sobretudo por um projeto fiscal. Nas Crônicas da França, escritas por Pierre Desrey e publicadas em 1515, pode-se notar a suposta existência, na França, de 1. 700. 000 torres de sino, o que determinaria a população do país em algo por volta de 600 milhões de habitantes. Este dado fantástico e fantasmagórico, foi repetido ao longo dos séculos XIV, XV, XVI. Outros escritores falaram em números ao redor de 112 milhões, etc.

Com esse “conhecimento”, impossível o controle efetivo do território e da população. “Uma verdadeira política fiscal tornava-se impossível. Os impostos, não podendo ser aplicados com o conhecimento das coisas, ameaçava ser gravemente injusto, ou com um rendimento muito inferior ao esperado. Os dois defeitos podiam cruelmente coexistir”. (21). A busca de um crescimento na arrecadação dos impostos e na modernização fiscal provocou o incentivo da estatística. Este movimento tem um marco relevante na publicação do livro de Jacques Coeur, Cálculo ou enumeração do valor dos ganhos do reino de França; relatórios e instruções para administrar o estado e a casa do rei e todo o reino. Título longo, próprio á época, mas preciso. Com semelhante procedimento, as incertezas orçamentárias começavam a receber alguma luz.

Com as guerras religiosas e as devidas à concorrência dos estados pelo domínio territorial, os avanços da arte bélica que incluiam novas tecnologias custosas, os governantes viram-se na necessidade urgente de aumentar seus recursos. Já Filipe o belo buscou, por volta de 1302, aumentar as disponibilidades monetárias do seu país. A taxação do clero, por ele, produziu graves rupturas com a Igreja, gerando mesmo a Bula Unam Sanctam, onde o papa proclamou-se superior ao mando secular em matérias religiosas e políticas. Mas Filipe foi além, pois confiscou bens dos judeus (1306), suprimiu a Ordem dos Templários e ficou com os seus bens, tentou taxar o comércio de modo mais rigoroso, e chegou a taxar os senhores feudais. Instituiu-se no intervalo o pagamento de somas ao governo para que indivíduos fugissem do serviço militar, a venda do acesso à nobreza.

Um traço muito curioso e ainda hoje atual, é que quase todas as medidas acima, impostas por Filipe, foram proclamadas provisórias, e o rei prometeu não mantê-las….Contra aquelas atitudes, a Assembléia dos três estados se esforça por entravar, comenta Reynié, o ardor fiscalista dos soberanos. Nada conseguem, “os impostos provisórios tornam-se permanentes”…Do século 15 ao 17, os impostos crescerão e se multiplicarão.

Esse desenvolvimento, ainda segundo Reynié, é favorecido pela reorganização administrativa. Com o uso generalizado dos números arábicos, no século XV, surge a oportunidade do cálculo rápido e mais fácil. A partir de 1539, o registro dos atos torna-se obrigatório. Anota-se os batismos, com sua hora e seu tempo. Com Henrique III, os registros se abrem para as mortes e casamentos. O poder dispões agora, diz Reynié, de imensos livros que trazem o nome, a idade, a qualidade e o número dos súditos. “A preocupação estatística atinge todos os países, ocupa os espíritos avisados”. O espírito dos registros, se não se confunde com o do Liber status animarum (a Igreja católica tem a função de guardar os registros no reino, até o final do Antigo Regime) compartilha a mesma atitude de desvelar quem são os dirigidos e quais as suas riquezas potenciais ou efetivas.

Como final desse artigo, quero recordar que a história dos séculos 18, 19 e 20 registrou a exacerbação, pelos estados nacionais, do conhecimento o mais exato de suas respectivas sociedades, e das outras as quais eles desejavam vencer na luta política, econômica, ideológica, religiosa. O acréscimo de força atribuído à razão de estado não deixou um instante de se exercer em escala geométrica. Um autor oposto à democracia moderna, que está na fonte das piores ditaduras dos séculos 19 e 20, entretanto, foi o que melhor mostrou o “progresso” da máquina estatal no sentido de assegurar para os seus administradores a plena transparência dos coletivos humanos, dela se aproveitando para a mais bruta repressão coletiva.

Juan Donoso Cortés, no Discurso sobre la dictadura (1849), diz que mais desce o nível da fé em Deus na sociedade, e mais o poder precisa emprestar a onisciência divina, além da onipotência. Chega um dia em que o governo diz: “temos um milhão de braços, mas não bastam. Precisamos mais, precisamos de um milhão de olhos. E tiveram a polícia e com ela um milhão de olhos. Apesar disto (...) o termômetro político e a repressão política deviam subir, porque, apesar de tudo, o termômetro religioso baixava, e subiram. Não bastou aos governos um milhão de braços, não lhes bastou um milhão de olhos. Eles quiseram um milhão de ouvidos, e os tiveram com a centralização administrativa, pela qual vieram parar no governo todas as reclamações e todas as queixas. (...). Mas os governos disseram: não me bastam, para reprimir, um milhão de braços; não me bastam, para reprimir, um milhão de olhos; não me bastam, para reprimir, um milhão de ouvidos; precisamos mais, precisamos ter o privilégio de nos encontrar ao mesmo tempo em todas as partes. E tiveram isto, pois se inventou o telégrafo”. (22) Chegamos hoje à internet, aos meios eletrônicos de busca e controle, além da espionagem dos próprios cidadãos, com uma eficácia que recorda os procedimentos descritos na imaginação que gerou o romance 1984. O fisco como razão de estado impulsiona a perda quase absoluta do espaço individual pela ações comandadas (seja em clima de guerra a países, seja na luta contra o terrorismo) pelos governos poderosos, em detrimento das liberdades e dos direitos humanos.

Trata-se de um labirinto que, vimos, tem início na própria gênese do estado e da igreja modernos. O que apenas tornará mais sombrias as perspectivas do século 21 e seguintes, caso não se consiga diminuir o desejo de tudo ver, ouvir, tocar e reprimir das chamadas autoridades públicas, para as quais o ato de arrecadar impostos e taxas tornou-se mais do que uma segunda natureza.





Notas


(1) Popper, KR: The Open Society and Its Enemies. Princeton University Press (2 v.9.

2) Cassirer, Ernst: The Myth of the State. New Heaven/London, Yale University Press, 1946.

3) Considero que o totalitarismo, em vez de ser uma realidade social e política, não ultrapassou o limite de um projeto de poder. Não houve nunca, na Alemanha, na Itália, na URSS, plena coincidência entre sociedade e estado. As fraturas do interior dos partidos dirigentes, as lutas pelo poder governamental, as resistências religiosas e políticas no interior daqueles países, tudo indica que o programa totalitário, apesar das amostras tremendas que exibiu, não chegou à identidade entre as consciências civís e os donos da máquina partidária. Procuro analisar com mais detalhes este ponto, que me afasta das análises sobre o totalitarismo surgidas nos anos 70 e 80 do século passado em trabalhos publicados sobre o assunto. Cf. sobretudo Roberto Romano, Conservadorismo romântico, origem do totalitarismo (SP, Ed. Unesp, 1997, 2 ed.) e “O conceito de totalitarismo na América-latina: algumas considerações”, in Dayrell, Elaine Garcindo (Ed.) : América Latina contemporânea: desafios e perspectivas. São Paulo, Edusp/Expressão e Cultura, 1996, pp. 307 e ss. Para uma análise próxima à minha, cf. sobretudo Eliana Dutra: O ardil totalitário. Imaginário político no Brasil doa anos 30. BH, UFRJ/UFMG Ed., 1997.

4) Termo criado por Jean-Pierre Faye, Cf. Théorie du récit, Introduction aux langages totalitaires. Paris, Hermann, 1972. Faye mostra que há uma criculação terminológica e nocional no mundo ideológico. Não raro, um conceito com origem na “esquerda” passa a ser usado na “direita” e vice-versa. O fenômeno é muito importante para se analisar as supostas “quebras” de programas de partidos situados nos vários setores da vida política. Antes de aceder ao mando, não raro, o sentido das palavras de ordem já foi modificado tendo em vista a adequação ao campo tido como adversário. São bases que preparam alianças surpreendentes, como a que ocorreu entre a URSS e a Alemanha nazista no pretenso pacto de não-agressão entre a Union soviética et Alemanha nazista em 23 de agosto de 1939.

5)McCormick, John P.: Carl Schmitt's Critique of Liberalism Against Politics as Technology , Cambridge University Press Due/Published September 1999.

6) “Do ponto de vista da sociologia, o estado moderno é uma ´empresa´com o mesmo título de uma fábrica. Nisto consiste precisamente seu traço histórico específico. E também deste modo se acha condicionada de maneira homogêna a relação do mando (Herrschafttsverhältnis) no interior da empresa”. Cf. Wirtschaft und Gesellschaft. Fünfte Revidiert Auflage, Túbingen , J.C.B. Mohr, 1972, p. 825. A separação ( Trennung)entre os meios de administração e o seu operador, tanto na empresa quanto no estado, define a burocracia que opera sine ira et studio, maquinal e hierarquicamente. Este fenômeno, Weber também o nota na Igreja Católica, a qual, com o dogma da infalibilidade do Papa (1870) teria, na verdade, dado início efetivo à expropriação radical dos meios de salvação, que não mais estaria no poder dos bispos e se concentrariam na grande “empresa” da Curia romana. Importa que o carisma passa a ser da própria instituição religiosa. No estado, o maquinismo segue a lógica do cálculo, sem que a sua marcha possa receber modificações políticas. É deste desencanto que Weber partilha e legou aos seus herdeiros de “esquerda” ou “direita”, como Lukacs ou Schmitt. Este último, com enorme importância em autores estratégicos do chamado “neo” liberalismo, como F. Hayeck.

7)A bibliografia sobre este ponto é imensa. Cf. sobretudo Georges Gusdorf, Fondements du savoir romantique, Paris, Payot, 1982. Também Starobinski, Jean: Action et réaction, Vie et aventures d´un couple. Paris, Seuil, 1999. Mas desde longa data o tema vem sendo analisado pela literatura especializada. Cf. o livro até hoje fundamental de Coker, F.W. : Organismic Theories of the State. Nineteenth Century Interpretation of the State as Organism or as Person. NY, Columbia University, 1910. Publiquei alguns escritos sobre o assunto. Entre eles, Conservadorismo romântico, origem do totalitarismo (SP, Ed. Unesp, 2 ed. 1997) e Corpo e Cristal, Marx romântico (RJ, Guanabara Koogan, 1984, esgotado). Deste último livro, cf. sobretudo “A fantasmagoria orgânica”.

8)“Uma vez que ambos, mecanismo e organicismo (…) exigem incluir tudo em seu escopo, nenhum dos dois pode deter-se enquanto não dissolver o arquétipo do outro. Em consequência, como o mecanicista extremo declara que os organismos são máquinas de ordem máxima, também o organicista extremado, no seu contra-ataque filosófico, mantém que as coisas físicas e seus processos são apenas formas muito rudimentares de organismo”. M.H. Abrams: The Mirror and the Lamp. Romantic theory and critical tradition. London, Oxford university press, 1971, p. 186.
9) Cf. Denis Diderot . “Notes écrites de la main d´un souverain a la marge de Tacite ou Principes politiques des souverains”. “Il n ´y a point de scéleratesse à laquelle cette politique (a razão de Estado) ne conduisit”. In Diderot, Oeuvres, T.III, Politique (L. Versini Ed., Paris, Robert Laffont, 1995, p. 173. O ataque de Diderot contra Frederico é direto nesta passagem. Aquele soberano, na Histoire de mon temps, obra em que se aplica a justificar sua prática na direção do estado, distingue entre a moral comum, válida para todos os particulares e o dever moral do príncipe de viver para o bem de seu povo e desobedecer, se preciso, os mandamentos da moral pessoal. Sobre este passo, ainda é cheio de atualidade o comentário de F. Meinecke em seu clásscico sobre a razão de Estado. Uso a tradução francesa de M. Chevalier: L´Idée de la raison d´´Etat dans l ´histoire des temps modernes. Paris, Droz, 1973, p. 337.

10) Uma pequena contribuição para todo este debate, apresentei em em “A fantasmagoria orgânica” em Corpo e Cristal. Marx romântico. RJ, Guanabara Koogan, 1985.

11) Discuto este ponto em “A transparência democrática” inserido na minha coletânea O Caldeirão de Medéia. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2001.

12) Giovanni Macchia, in Breviario dei Politici (atribuido ao Cardeal Mazzarino). Milano, Rizzoli, 1981, p. XVI.

13) A Bula Clericis laicos de 1296 foi escrita para proibir a taxação do clero pelos reis, causando uma luta intensa entre a Curia Romana e Eduardo I da Inglaterra, que precisava de recursos para os serviços do Estado. Pode-se dizer que esta luta trouxe, in nuce, os problemas que terminaram na Reforma inglêsa, com Henrique VIII. Já a Bula Unam Sanctam (1302) que define o poder “superior” do Papa em todos os assuntos, espirituais e políticos, atngiu, além de Eduardo I, também Filipe IV da França, o qual proibiu a exportação de recursos advindos das isenções do clero para Roma. Como resultado primeiro deste conflito, o rei frances chegou a prender o Papa em seu castelo por alguns dias. Deste modo, a busca dos recursos, da parte dos dois poderes políticos europeus, os Estados nacionais nascentes e a Igreja, levou à sua ruptura intermitente. Mas ambos precisavam saber onde estavam os mencionados recursos, e como deles tomar posse. Daí, a crescente política de se pesquisar, com ajuda dos saberes científicos, o “corpo doente” da sociedade. Cf. Bettenson, H. : Documents of the Christian Church. London, Oxford University Press, 1947, pp. 159 e ss.

14) Em Coriolano, Shakespeare explora ao maximo as bases e as consequências da metáfora de Menenius Agrippa, mostrando a tragédia da aristocracia diante do estado que dispensa os heroísmos pessoais e, no mesmo tempo, controla as turbas populares.

15) Analisei estes pontos no prefácio que redigi ao texto magistral de Lutero. Cf. Da liberdade do cristão, Martinho Lutero (São Paulo, Unesp Ed., 1998.). Também discuti longamente o problema em Brasil: Igreja contra Estado (São Paulo, Kayrós Ed. 1979).


16) A mais correta análise deste ponto é feita por François Dagognet, no capítulo sobre a sociografia de seu livro Philosophie de l´image (Paris, Vrin, 1984), a partir da página 200. Tudo o que avanço, a partir de agora, sobre este passo, encontra-se naquele texto citado.

17) Dagognet, op. cit. p. 202. “The baptism, the Christian name in the baptismal register ("the book of life"), the praying in the oral and reading traditions, focus the deep cultural-transmitting elements in the pastoral source materials. On that basis the rest of the sources relies concerning the other sacraments (the Confirmation/Chrism, Confession, Communion, Marriage and Extreme unction) as well as concerning the pastoral Parish records. These Parish records have different names in different traditions, but they are organized in the same way in genealogical family patterns. Thus the Catholic "Liber Status Animarum" correspond to the Protestant "Soul Registers", and to the famous Swedish/Finnish Parish examination records (husförhörslängder). These records compress the richest information of all those registers. In them you can follow a person or a family during all kind of changes over time in the family, social and migration patterns”. Cf o estudo de E. Johansson : “Baptizing them, teaching them. A key to the pastoral codes and the roots of the European population records” in
Umeå University : The Research Archive (http://194.198.128.222/svar/eu/dig/adi/pers/joeg.htm).

(18) In Lazzeri, Christian e Dominique Reynié : La raison d´état : politique et rationalité. Paris, PUF, 1992, pp. 43 e ss.

(19) Les six livres de la république, VI, citado por Reynié, p. 44).

(20) N. Montand, Le miroir des François, cit. por Reynié, p. 44).

(21) Reynié, op. cit. p. 46.

(22) in Obras Completas de Donoso Cortés, Madrid, BAC, 1970, v. 2, p. 318.


NUNCA ANTESSSS NESSSSTE PAÍSSSS....

BRASÍLIA (Reuters) - O setor público consolidado brasileiro registrou superávit primário de R$ 1,944 bilhão em novembro, número 71,5% menor que os R$ 6,817 bilhões verificados em igual período do ano passado, informou o Banco Central nesta terça-feira.

Apesar do superávit, as despesas com juros somaram R$ 10,861 bilhões em novembro, o que gerou um déficit nominal nas contas públicas de R$ 8,917 bilhões no período.

Um texto que julgo interessante para a reflexão. Ele integra o livro de mesmo nome.

O CALDEIRÃO DE MEDÉIA*

O problema da soberania popular, da soberania estatal e das ciências, hoje.

Roberto Romano**


"As ciências constituem um fraco poder, porque elas não são reconhecíveis em qualquer homem de modo eminente, salvo num pequeno número, e, nestes últimos, sobre poucas coisas. A ciência é de uma tal natureza, que ninguém pode dar-se conta de sua existência, sem a possuir numa larga medida".(1) É assim que o grande teórico do Estado moderno, Thomas Hobbes, indica o dilema do saber científico e da política. Para que o povo aceitasse o conselho dos cientistas, seria preciso que ele mesmo fosse dono de saberes. Ora, o vulgo não é capaz disto. E o número dos sapientes é diminuto. E mesmo no campo erudito, os verdadeiros sábios se especializam, conhecendo corretamente poucas coisas. O grande número de populares ignorantes, de um lado, e a pequena quantidade dos cientistas de outro, impedem pensar que o mando seja mantido pelo conhecimento. Contrário à democracia, Hobbes busca em outros planos a força do Estado também recusando o axioma platônico do rei filósofo, ou do filósofo rei.

Mas o descarte das ciências e dos cientistas enquanto fontes de poder legítimo, em Hobbes, também passa pela crítica da idéia que autoridades e povo fazem do conhecimento. Quem é visto como verdadeiro conhecedor pela massa? Não o cientista, mas o que amplia o saber: "As artes de utilidade pública", segue o Leviatã, "como as fortificações, a fabricação de engenhos e instrumentos de guerra, constituem um poder, porque contribuem para a defesa e para a vitória. Embora sua mãe verdadeira seja a ciência, mais precisamente as matemáticas, como elas nasceram pelas mãos do artífice, são consideradas como dele saídas, passando a parteira por mãe aos olhos do vulgo".

A metáfora do parto, utilizada por Hobbes retoma a linha socrática do saber ocidental. O programa platônico, afastado num aspecto, retorna ao pensamento hobbesiano por outra via. O aristocratismo da República continua no pensador inglês. A multidão jamais constitui uma fonte de saber. Muito pelo contrário. O povo nunca deve ser ouvido nos assuntos científicos, porque se prende às aparências, não atinge a essência das coisas racionais. A medicina é arte difícil. A política socrática propõe-se enquanto medicina da polis. Sócrates, num outro diálogo platônico, mostra o que pensa do povo, ao propor o seguinte exercício: se grande número de crianças é posto diante do cozinheiro e do médico, ambos lhes dirigindo um discurso, qual dos dois será o escolhido como guia? O cuca dirá aos pequenos: "Eu preparo doces variados, enquanto ele, o médico, lhes força a fazer regime". O médico afirma: "Eu faço isto para o seu bem". O cuca será eleito.(2)

Na democracia, o povo/criança mal educada, pensa que sua vontade não pode encontrar nenhum obstáculo. Nela, o excessivo arbítrio dos indivíduos conduz à catástrofe do Estado, gerando o mando tirânico, o exato oposto da democracia. Estas páginas da República, o livro fundador da teoria do Estado no Ocidente, ecoam em Hobbes. Neste último, o povo deixa de ser "criança", e se torna, no De Cive, perigosa e estulta massa sempre prestes a subverter a república, porque seduzida pelos sofistas. Os demagogos seriam como a bruxa Medéia, a qual enganou as filhas de Peleu, rei da Tessália: "estas mal avisadas, querendo rejuvenescer o pai decrépito, o deceparam, o cozinharam esperando vê-lo inutilmente, renascer". O povo comum, continua Hobbes, "não é menos louco do que estas pobres filhas de Peleu, quando, desejando reformar o governo do Estado, persuadido por algum ambicioso(...), após dilacerar a república, a consome mais do que a reforma, por um fogo inextinguível".(3) Note-se as metáforas usadas por Hobbes. Elas foram extraídas de Platão, com modificações. No grego, o demagogo é cozinheiro que estraga o regime (o termo tem esta origem) político. Em Hobbes, o sentido da imagem é o mesmo. O estatuto do povo é sempre o de ignorância sobre a ciência e a política.

No século 18, duas atitudes foram tomadas pelos teóricos do Estado e da ciência. A primeira, avançada por Imanuel Kant, propõe a cidadania no plano moral, mas sem conceder ao povo o direito de ampliar sua iniciativa no governo da república das letras e da política. É célebre o dito kantiano sobre o nexo entre o vulgo, os cientistas, os demagogos (tanto os opostos quanto os defensores do governo): "o povo vai ao sábio, como se procurasse um mágico (...) entendido em coisas sobrenaturais. Porque o ignorante tem uma opinião excessiva do sábio, de quem espera algo. É fácil prever que se alguém tivesse a esperteza de se apresentar como taumaturgo, ganharia a preferência popular". Segue-se a frase brutal de Kant: "O povo quer ser dirigido, isto é, (na linguagem dos demagogos), ser enganado. Mas ele não quer ser dirigido pelos cientistas universitários (pois sua sabedoria é muito elevada para ele), mas pelos agentes do controle, pelos técnicos do governo, pelos funcionários da justiça, pelos médicos, pelos padres".(4)

Apesar de tudo o que separa Kant de Hobbes, nesse ponto ambos aprovam o socratismo: o povo só atinge a opinião na política e na ciência, a famosa "doxa". Ele quer resultados técnicos, sem penetrar nas aporias da pesquisa, a não menos famosa "epistême". Estamos, nesta senda, a um passo da violenta diatribe hegeliana contra a soberania popular, e do conseqüente desprezo votado ao povo no que diz respeito à ciência.(5) O homem do povo não precisa de razão científica ou tecnológica para ser livre. "Kant conclui que a liberdade moral não depende do saber e das luzes no sentido clássico do termo (...) a racionalidade (moral) pode se exercer sob forma imediata, sem inteligência e sem objeto: para ser livre e virtuoso, não é preciso ser cientista".(6)

A outra atitude foi assumida por Denis Diderot e Condorcet. O pai da Enciclopédia desejou ampliar os conhecimentos técnicos e científicos do povo. Seu "Plano de Universidade para a Rússia", escrito a pedido de Catarina II, insiste na idéia de que uma "universidade é uma escola cuja porta está aberta indistintamente para todos os filhos de uma nação, e onde mestres pagos pelo Estado os iniciam no conhecimento elementar de todas as ciências".(7) Seguidor de Francis Bacon, Diderot considera indispensável, para atingir o Estado onde a liberdade estivesse assegurada, um saber científico e técnico espalhado na massa do povo. Condorcet levou ao máximo a tese da educação do povo, para que este exerça corretamente a sua soberania. O cidadão, diz ele, deve "se perguntar se não é vítima de um escrutínio deformado ou cheio de truques. Todo votante deve saber que mesmo as opiniões majoritariamente verdadeiras podem ser, por efeito de procedimentos viciados, combinadas num resultado globalmente errôneo." Deste modo, não existe democracia real sem povo instruído, a começar pelo cálculo geométrico, terminando nas técnicas e nas artes.(8)

Para que nosso tema apresente uma latitude maior, passemos à questão da soberania popular em Rousseau e nos seus discípulos imediatos. Estes foram apontados como irracionais, dada a recusa rousseoista das técnicas e das ciências. A fenda aberta por Rousseau, entre natureza e artifício, empurrou a doutrina da soberania popular para os antípodas da razão de Estado, e da razão simplesmente. Rousseau e seguidores, após o triunfo provisório do terror, foram vistos como primitivos e inimigos da ciência. Mais importante do que esta vexata questio, até hoje matéria de muitas disputas acadêmicas, foi a doutrina sobre a soberania popular negada pelos contra-revolucionários. Descartando, contra Rousseau, a soberania do povo, os conservadores termidorianos afastaram ainda mais a massa e os cientistas. Mas recomecemos, seguindo etapas.

No terceiro ano da Revolução Francesa, foi escrito um discurso cuja tônica era a desconfiança no governo representativo. "A soberania é uma, indivisível e inalienável, e vós a dividís repartindo-a, e a perdeis, transmitindo-a. Os ilustres homens a quem chamastes para fazer uma nova Constituição não têm outros direitos do que vos submeter as suas idéias. Numa palavra, o poder dos representantes é como um raio de sol refletido num espelho. Vós sois esta luz, a qual eu comparo ao astro diurno, e os deputados são o cristal que reflete o poder que neles depositastes e que só iluminarão a terra graças ao fogo que de vós emana".

Continua nosso orador: "A autoridade do povo, reunida numa ou em várias mãos, eis o nascimento da aristocracia, eis os perigos da outorga de uma potência. Se os deputados podem prescindir de vós para fazer leis e a sua sanção lhes parece inútil, neste instante nascem os déspotas e vos tornais escravos... Como um mandatário público pode imaginar que o mero título de representante da soberania pode possuir o próprio direito da soberania? Como eles podem acreditar que a opinião da soberania que a eles é confiada por vós pode conter em si o direito de decisão absoluta? As piores desgraças vos esperam se não for resolvido este problema. Estais perdidos se eles vos impõem leis que não aprovastes".

O autor das frases acima é o Marquês de Sade. O texto se intitula "Idéias sobre o modo de sanção das leis". Recordemos a causa dessas palavras. Estamos em 1792. Fracassou a primeira Assembléia Legislativa. Surge a Convenção, supostamente eleita por sufrágio universal. Supostamente, porque dos votos estavam excluídos os monarquistas, de um lado, e a massa dos sem propriedade, de outro. Aos representantes, expressando certa minoria, foi concedido o papel de encarnar a Nação soberana seguindo nisto as doutrinas de Sieyes. Seus poderes, teoricamente, não tinham limites. Nenhuma força interna adversa poderia persistir. A primeira potência sob ameaça era a Comuna de Paris. Esta última, nas palavras de Soboul, "municipalidade insurrecional, estava ameaçada de desaparecimento ante a representação nacional". Esta vontade de aniquilar a cidade mais importante no processo revolucionário, até aquele momento, foi expressa por Lasource, um representante do interior: "É preciso que Paris seja reduzida em 83 por cento de sua influência, como cada um dos demais departamentos". (Cit. por Soboul).

Na Comuna de Paris brotavam, a cada instante, novas massas dos sans cullottes, reivindicando uma economia contra os dogmas da propriedade, guardados mesmo por jacobinos. Os Girondinos, para atenuar o poder de fogo da Comuna, apelavam para uma "federação", na qual o particularismo reinaria, através das administrações locais. Os Montanheses, deputados de Paris, seguiam relutantemente as forças populares da grande urbe.

Entre os dois "partidos", havia o centro, reunindo oportunistas que "temiam o povo, no fundo; a violência arbitrária e sanguinária lhes repugnava e, para eles também, a liberdade econômica tinha o valor de um dogma" (G. Lefebvre). Durante algum tempo, os Girondinos pareceram senhores da Convenção, baseados na desconfiança dos interioranos contra a Comuna e os sans culottes parisienses, o medo de massacres, a raiva contra as palavras de ordem nocivas à propriedade. Roland, representando esta facção burguesa, tudo fez para destruir a Comuna a qual, ao ser dissolvida, em novembro, havia perdido seus poderes excepcionais e suprimido seu Comitê de Vigilância. Roland, economista e ministro de plantão, na época, denunciava a "prodigalidade da Comuna, que mantinha o pão a 3 soldos, à custa dos contribuintes". Mesmo Saint-Just, radical em outros prismas, "como economista ortodoxo" no debate sobre o comércio dos cereais, "mostrou que o único remédio para a carestia era reprimir a inflação" (Lefebvre).

Voltemos às advertências de Sade. Os atos políticos lembrados, mostram que o discípulo de Rousseau soube, de modo certeiro, identificar a virada que se anunciava na Convenção. Mudança que surgiria, com toda plenitude, no Termidor, após a derrota da Comuna e de outras políticas cuja premissa era a soberania popular direta. Notemos a torção realizada por Sieyès, na própria idéia de soberania: esta, de "popular", passou a ser "nacional". O deslizamento precisa ser acompanhado nos textos de Rousseau e de Sieyès. Lembremos alguns traços conhecidos das duas teorias tão próximas e tão distantes.

Para Rousseau, a soberania é inalienável. Se há "pacto" para existir "governo" (gouvernement) o povo "perd sa qualité de peuple". Só o povo é legislador, mesmo que ele precise ser instruído por um sábio, porque nem sempre ele pode ver o bem que ele sempre deseja. Mas o sábio só propõe leis: "le peuple même ne peut, quand il le voudrait, se dépouiller de ce droit incommunicable". O que é o governo, sobretudo para os homens que o asseguram? "Um emprego no qual, enquanto simples funcionários (officiers) do Soberano, eles exercem em seu nome o poder de que são depositários, e que ele pode limitar, modificar ou retomar quando bem lhe aprouver, sendo a alienação de um tal direito incompatível com a natureza do corpo social e contrário ao fim da associação". Instituindo o Governo, o Soberano povo converte a Soberania "em Democracia". Cidadãos tornam-se magistrados, funcionários do Soberano. Reunido em Assembléia, o Soberano mostra-se onipotente, o poder executivo fica suspenso.

Toda Constituição é provisória, os "empregos" governamentais são revocáveis. Sempre que o administrador assume uma autoridade independente do soberano, ele viola o "traité social", dissolvendo o próprio Estado, constituindo um "novo Estado" só composto pelos próprios executivos, excluindo os cidadãos. Estes, a partir deste momento, retornam à liberdade natural, e não são obrigados, embora sejam constrangidos, a obedecer. "O soberano só pode ser representado por ele mesmo". Deste modo, deputados eleitos não podem ser "representantes" mas "comissários", ou "delegados". O que o Povo "en personne" não faz, não é lei. Povo "representado" não é povo, nem livre.

Sieyès, ao contrário, pensa os deputados como representantes, possuindo um mandato geral. Mesmo concedendo que este mandato está "ao dispor" de quem o concedeu — o povo — sendo revocável e limitado, Sieyès elogia o regime representativo. Tudo, diz ele, no estado social, é matéria de representação, e os homens aumentam sua liberdade quando concordam em serem representados tantas vezes quantas seja possível. O argumento é que, embora tenhamos uma só autoridade política — o próprio corpo social — existem diferentes órgãos daquela autoridade, baseados em diferentes comissões dadas pela sociedade. Trata-se de um "concurso de poderes". No Contrato Social encontramos a nota célebre de Rousseau sobre o direito de propriedade e a péssima administração: "sob os maus governos", a "igualdade é somente aparente e ilusória; serve só para manter o pobre na miséria e o rico na usurpação. Na realidade as leis são sempre úteis aos que possuem e prejudiciais aos que nada têm, donde se segue que o estado social só é vantajoso aos homens quando todos eles têm alguma coisa e nenhum tem demais".

A tese acima passou, na pena de muitos comentaristas, como um paradoxo de Rousseau. Mas o nexo entre apropriação legal e excludente, entre propriedade e tipo de governo, foi estratégico nas ações e doutrinas dos que escreveram sobre a vida política antes e durante a Revolução. Para ficar com o exemplo de Sieyès: nas suas "Observações sumárias sobre os bens eclesiásticos" (1789), ele afirma que os corpos morais (clero, cidades etc.) têm direitos sagrados no que tange à propriedade, bem como os indivíduos.

Em Rousseau, a propriedade só pode ser uma concessão do soberano, constituído no pacto social. O soberano, caso os particulares ricos sejam infiéis ao público, tem o direito de lhes retirar o direito sobre bens. O corpo político decide que haverá propriedade. Em sua edição do Contrato, M. Halbwachs chega a dizer que, em plena lógica do sistema rousseoísta, o soberano "poderia admitir que todos os bens permanecerão comuns e que, tal como estado de natureza, os frutos da terra são para todos, mas a terra não é para ninguém, ou, ainda, que a terra só pertence ao soberano". Rousseau indica o liame entre soberania popular, subordinação do governo a ela, limitações da propriedade e governos que a desviam, dando como resultado a desigualdade econômica e social. O pensador gerou a distinção, no pensamento jurídico e político, entre "soberano" e "governo".

Robert Derathé registra o fato de que essa distinção, com fortes conseqüências na feitura das leis, não existe na maioria dos países que hoje se julgam democráticos. Neles, "é raro que uma lei possa ser votada sem o assentimento do governo". Mantendo-se a desconfiança de Rousseau diante dos maus governos, autônomos face ao povo, podemos ter uma noção das imensas dificuldades, para os seus seguidores, na Convenção, quando eles precisaram administrar, ao mesmo tempo, a sacrossanta propriedade e os sans culottes parisienses, na Comuna. Indecisos entre a burguesia e as massas, os jacobinos terminaram num zigzag que os conduziu à guilhotina.

Tomemos Robespierre. Nos primeiros tempos da Revolução, ele sustentou a idéia, pouco ortodoxa em termos rousseoístas, da soberania dos deputados. Apenas depois de 1791, quando se convenceu de que a Assembléia Nacional não tinha força para vencer os inimigos da França, insistiu sobre a soberania popular. Mesmo assim, no discurso proferido em 24 de abril de 1793, sobre a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Robespierre, falando sobre a propriedade afirma: "Ao definir a liberdade como o primeiro dos bens humanos, o mais sagrado entre os direitos naturais, dissestes com razão que ela tinha como limite os direitos alheios. E por que não haveis aplicado tal princípio à propriedade, uma instituição social?". Entre as medidas avançadas por ele, esquecidas pelos convencionais, está "o princípio do imposto progressivo". Na "Declaração" escrita por Robespierre, lemos: "o direito de propriedade é limitado, como todos os demais, pela obrigação de respeitar os direitos dos outros". Para garantir este ponto, o artigo 16, do mesmo texto, termina afirmando que "o povo, quando lhe agrada, pode mudar o seu governo e os seus mandatários". No artigo 26 temos a doutrina sobre governo: "As funções públicas não podem ser consideradas como sinais de superioridade, nem como recompensa, mas como deveres públicos. Os delitos dos mandatários do povo devem ser severa e agilmente punidos. Ninguém possui o direito de se pretender mais 'inviolável' do que os outros cidadãos. O povo tem o direito de conhecer todos os atos dos seus mandatários; estes devem prestar contas fiéis da sua gestão e sujeitar ao seu juízo com respeito".

No discurso "Sobre a Constituição", pronunciado em 10 de maio de 1793, Robespierre coloca a aporia ainda hoje irresolvida nos Estados republicanos que se julgam democráticos: "Dar ao governo a força necessária para que os cidadãos respeitem sempre os direitos dos cidadãos; e fazer isto de um modo tal que o governo nunca possa violar estes mesmos direitos". O governo, continua, "é instituído para fazer a vontade geral respeitada. Mas os governantes possuem uma vontade particular: e toda vontade particular tenta dominar a outra". Qualquer constituição deve, segundo Robespierre, "defender a liberdade pública e individual contra o próprio governo". De modo rousseoísta, ele ataca: "o povo é bom e seus delegados são corruptíveis: é na virtude e na soberania do povo que precisamos buscar uma barreira contra os vícios e o despotismo do governo... A corrupção dos governos tem sua fonte no excesso do seu poder e na sua independência nos confrontos com o povo soberano". Robespierre invectiva a "velha mania dos governos de querer muito governar".

Apesar dessas proclamações, o político termina afirmando que "no governo representativo não existem leis constitutivas tão importantes quanto as que garantem a regularidade das eleições". E a solidez de uma Constituição se baseia "na bondade dos costumes, no conhecimento e no sentido profundo dos sagrados direitos do homem". Empurrado pelas massas e cercado pelos contra-revolucionários de todos os matizes, dentro e fora da Convenção, o setor jacobino encara, finalmente, o problema do governo comum e suas diferenças com o governo revolucionário. O primeiro conserva a República, o segundo funda a mesma. O governo revolucionário extrai sua legitimidade da "mais santa dentre as leis, a salvação do povo" e da necessidade. Governo revolucionário não significa "anarquia nem desordem. O seu fim é, pelo contrário, reprimir as duas coisas, para conduzir ao domínio das leis (...) quanto maior o seu poder, quanto mais sua ação é livre e rápida, tanto mais é necessária a boa fé para dirigi-lo". (Relatório apresentado em 25 de dezembro de 1793 à Convenção, em nome do Comitê de Salvação Pública). A mudança de "soberania popular" para "ditadura" é clara. A última salva o povo.

Mas, e se os ditadores usufruírem o poder para si apenas? A resposta de Robespierre desalenta: o ditador deve ser virtuoso. Já Diderot advertira o perigo do tirano amável e querido pelo povo. No mínimo, seus sucessores, ou ajudantes, eternizariam a escravidão voluntária das massas. Através de muitos meandros, finalmente, deu-se, na Convenção jacobina, o que temia Rousseau: o governo, para "instituir" a boa República, tornou-se "superior" à população. Este ensaio de autonomia dos "funcionários do universal", frutificou de muitos modos. Madame de Stael ressalta, nas Considerações sobre a Revolução Francesa, que após o Termidor, com o advento do governo militar e burocrático de Napoleão, foram mantidos vários prismas formais das Constituições revolucionárias, sobretudo os que forneceram ao Corso instrumentos para eliminar do campo político os seus adversários. Os sans culotte, nas Assembléias Populares, insistiam na idéia e na prática da soberania do povo e na revocabilidade tanto dos deputados (chamados por eles "mandatários") quanto dos funcionários públicos. Em 1º de setembro de 1792, a seção "Poissonière" declara: "considerando que o povo soberano tem o direito de prescrever aos seus mandatários a via a ser seguida para agir conforme a sua vontade", os deputados deveriam ser discutidos, aprovados ou reprovados pelas Assembléias primárias. A Assembléia Geral do "Marché-des-Innocents" decidiu, em 25 de agosto de 1792," que os deputados serão revocáveis por vontade de seu Departamento", bem como "todos os funcionários públicos".

Todas essas noções deixam de ser veiculadas e propostas, com a constituição do governo revolucionário e com a ditadura do Comitê de Salvação Pública, o qual "revocou" estas práticas de soberania popular.(9) Os ditadores, na empresa do Estado, "despediram o povo", como este podia despedi-los antes do governo "instituinte". Como disse, este ato de expulsar o povo da cena decisória, serviu para os que derrubaram Robespierre, e assim por diante, de golpe em golpe, passando pelo grande Napoleão, e pelo pequeno, até a época da Comuna de Paris, com o governo Thiers, fruto lídimo e máximo da contra-revolução Termidoriana.

Alain Badiou, em texto grave de conseqüências, escreveu recentemente sobre o conceito de "termidoriano".(10) Neste estudo, o autor discute certas idéias recebidas na historiografia habitual, incluindo a marxista de Soboul e outros, para quem o 9 Thermidor consistiu no "fim do Terror". Isto, argumenta Badiou, não é verdade. "A Convenção Termidoriana foi, ela mesma, fundada num massacre terrorista. Robespierre, Saint-Just, Couthon, foram executados no 10 Termidor, com dezenove outros, sem nenhum julgamento. Em 11 Termidor, a quantidade é de 71 mortos, a mais elevada de toda a revolução".

Ou seja: o procedimento do Terror não se confinou nas mãos dos jacobinos. Ele foi usado pela contra-revolução durante os anos 94 e 95. É preciso recordar a idéia de que a ditadura jacobina deveria estar em "boas mãos" virtuosas. Esta base subjetiva, comenta Badiou, expõe a precariedade desta política. Os Termidorianos, justamente, usaram o poder ditatorial à imagem da constituição do Ano 3. Nela, a Virtude foi substituída pelo "mecanismo estatal da autoridade dos proprietários, o que significou instalar a corrupção no coração do Estado". Não se faz nenhum segredo, naquele texto, da ruptura entre povo e dirigentes do Estado. No artigo 366, diz-se com clareza solar: "Toda tropa não armada deve ser dissolvida". As petições, segundo o artigo 364, devem ser estritamente individuais. "Nenhuma associação pode apresentar petições coletivas, a não ser as autoridades constituídas, e apenas para objetivos próprios às suas atribuições". E, finalmente no artigo 361: "Nenhuma assembléia de cidadãos pode se qualificar como sociedade popular". Com o Termidor, muda o alvo dos governantes terroristas. Ele, agora, são os que afirmam o caráter popular da soberania. A fonte do Terror é o Estado, baseado no censo dos proprietários. Não tem razão, pois, a historiografia que fala no "fracasso" jacobino e na irrupção da "verdadeira" essência burguesa, com a totalidade do processo revolucionário.

Não houve "fracasso", mas o "fim" de uma política, a jacobina. Citando Saint-Just: " o que desejam os que não querem nem virtude nem terror?". Os termidorianos, avança Badiou, não querem um Estado baseado na virtude, mas querem o terror estatal. A virtude foi substituída pelo interesse. Qual interesse? O dos proprietários e do mercado. Citando o termidoriano Boyssi d'Anglas, em discurso de 5 Messidor, ano 3: "Devemos ser governados pelos melhores (...) ora, com poucas exceções, só podemos encontrar semelhantes homens entre os que, possuindo uma propriedade, são apegados ao país que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva".

Enquanto a "virtude" era uma determinação subjetiva, "os melhores", dos termidorianos são uma figura objetiva da propriedade "condicionada absolutamente".(11) Para o termidoriano, o país não é, como para o jacobino, o lugar possível das virtudes. Ele é o receptáculo da propriedade. A lei, para o termidoriano, não é máxima derivada do nexo entre princípios e situação. Ela é apenas o que protege a propriedade. A insurreição, para o termidoriano, não é dever sagrado. A sua reivindicação principal é a tranqüilidade. Badiou traz a noção de "termidoriano" para nossos dias. "Meditar sobre a corrupção", diz ele, "não é hoje uma tarefa inútil". Um termidoriano, por definição política, é um corrompido. Ele é um "aproveitador da precariedade das convicções políticas. Mas em política só existem convicções (e vontades). "E historicamente, como indica corretamente Badiou, "os termidorianos são, o dossier é claro, corrompidos no sentido corrente. E não é por nada que eles vieram depois do Incorruptível. Citemos o dinheiro inglês, que eles receberam com abundância, o saque dos bens nacionais, o açambarcamento dos grãos. Citemos a pilhagem militar (Termidor também é a passagem da guerra republicana, defensiva e baseada em princípios, à guerra de conquista e rapina) e o mercado de fornecimento aos exércitos".

Ademais, Badiou lembra o conúbio termidoriano com os donos de escravos e das colonias. Ou seja, para todo termidoriano, "histórico ou de hoje, a categoria da Virtude é declarada sem força política". Para ter eficácia, é preciso que a política seja interesse do mercado. É isto o que Badiou chama o "fim" de uma política, com o velho oportunismo, incluindo pessoas "de esquerda" que vendem a alma por um cargo, no primeiro ou último escalão. "Um termidoriano é constitutivamente (como sujeito) alguém à procura de um lugar". O mais terrível, arremata Badiou, é que os "termidorianos históricos não foram aristocratas exteriores, restauradores, ou mesmo girondinos. Eles eram gente da maioria robespierrista da Convenção".

Os defensores da soberania popular são "irracionais", segundo os termidorianos. Boyssy d'Anglas, o mesmo que falava dos proprietários como os "melhores governantes", forneceu o exemplo em seu discurso: "Se forem dados a homens sem propriedade os direitos políticos, sem reserva, e se eles sentarem nos bancos legislativos, eles excitarão ou deixarão excitar agitações sem temer os efeitos; eles estabelecerão ou deixarão estabelecer taxas funestas ao comércio e à agricultura, porque não terão sentido, nem temido, nem previsto, as terríveis conseqüências, e eles nos precipitarão enfim nas convulsões violentas das quais estamos apenas saindo".(12)

Assim, mantendo a máquina estatal e afastando a soberania popular, os termidorianos, até e depois da Comuna, utilizaram a repressão, o terror, para garantir os proprietários e os "empregos governamentais" para os intelectos acadêmicos, ou suficientemente letrados para servir como escribas e racionalizadores do social. Após certo tempo, os "engenheiros da sociedade" foram submetidos aos "economistas", nova casta de infalíveis servidores do Estado e dos governos, grandes protetores da santíssima propriedade.

Com o Estado napoleônico, fruto do Termidor antidemocrático, refluiu definitivamente a tese da instrução do verdadeiro soberano, o povo, para que ele pudesse exercer suas prerrogativas. A partir daí, foram separados por um abismo os ideais democráticos e o saber. A maior parte das propostas de governo e de conhecimento científico apartaram o povo e os intelectuais. Para Augusto Comte, estratégico se quisermos entender o Estado, a ciência e a tecnologia em nosso país, a liderança política pertence aos cientistas e aos industriais. Ao povo destinam conhecimentos elementares.

Comte recusou a soberania baseada na opinião. A democracia, pensava ele, é um governo que apenas substitui o dogma da infalibilidade papal por outro, o da infalibilidade popular. Tais doutrinas desmembrariam "o corpo político, colocando o poder nas classes menos civilizadas". A forma democrática seria a "fonte das revoluções". "Nem a opinião dos reis, nem a opinião dos povos podem satisfazer a necessidade fundamental de organização que caracteriza os tempos atuais".(13) Mesmo avesso à soberania "das classes menos civilizadas", Comte propôs uma "Biblioteca do Proletário" cujo conteúdo até hoje seria considerado "utópico" por muitos que reduzem a educação das massas ao manejo técnico. Entre as obras a serem lidas pelos proletários, temos a Aritmética de Condorcet, a Álgebra e a Geometria de Clairaut, O Curso de Análise de Navier, as Reflexões sobre o Cálculo Infinitesimal de Carnot, A Teoria das Funções de Lagrange, etc.(14) Uma lista assim, em nossos dias, se atualizada, seria rara mesmo nos primeiros anos da graduação universitária.

Os positivistas brasileiros formularam o desejo de ampla educação técnica das massas, sob controle dos sociólogos. Lembremos o projeto de educação proletária, submetido ao Governo Provisório por Teixeira Mendes, através de Benjamin Constant (25.12.1889). "O aperfeiçoamento do homem, mesmo no ponto de vista exclusivamente material, é mais importante do que o melhoramento dos aparelhos industriais, por que (...) não houve nunca instrumento bom para o operário ruim. O desenvolvimento da indústria moderna vai exigindo do proletário cada vez maior instrução para bem manejar as máquinas. E, por outro lado, a vida republicana exigindo que cada cidadão cumpra espontaneamente o seu dever, vai impondo a cada um maior grau de moralidade e instrução para a prática e o conhecimento do mesmo dever. E como conseguir tudo isso enquanto o filho do proletário, isto é, a massa da nação futura viver na miséria e ao abandono de todos os recursos?".(15)

Apesar dessas noções comoventes, o programa positivista recusa a democracia eletiva, prega a ditadura dos intelectuais competentes, unidos aos empresários e banqueiros. Há em Comte uma tese que julgaríamos nova, caso a víssemos estampada nos jornais. Cito o teórico: "Em cada república particular o governo propriamente dito, isto é, o supremo poder temporal, pertencerá naturalmente aos três principais banqueiros, respectivamente dedicados de preferência às operações comerciais, manufatureiras, e agrícolas".(16)

Algo no programa positivista sobre o Estado é estratégico para a ciência e a técnica. Trata-se da eminência do Executivo contra os demais poderes. No positivismo, semelhante ditadura foi nuclear, herança mantida e ampliada ao longo de nossa história republicana. A versão menos rigorosa desta ditadura encontra-se nas fórmulas de Pierre Laffite, defendidas por Benjamin Constant: a "preponderância do Governo sobre as Assembléias, preponderância que se caracteriza sobretudo pela iniciativa; e, em segundo lugar, pela concentração numa única pessoa, dessa ação diretora governamental".(17) Esta noção se transformou em prática no Exército, onde o programa positivista encontrou larga audiência. A colaboração da Escola Politécnica no impulso aos batalhões de engenharia, e a aplicação direta de saberes por militares na defesa nacional deve-se a esta atitude centralizadora, baseada em conhecimentos científicos e técnicos.

Nada a estranhar se os engenheiros militares, com seus pares civis positivistas, êmulos de Luiz Pereira Barreto, tenham formado a espinha dorsal dos planos científicos e políticos, durante muitos governos republicanos, mesmo na ditadura Vargas, a qual abriu os primeiros espaços para uma experiência em grande escala de produção científica e técnica com bases nacionais. Como disse o Sr. Fernando Henrique Cardoso, os oficiais militares "constituiam um grupo educado que passava boa parte de sua formação nas cidades e que se define profissionalmente por sua relação com o Poder (...) sacerdotes de um culto que lhes era familiar, o do Estado".(18) Na consciência militar brasileira, temos as metas de concentrar a ciência e a técnica, conseguir a tutela do poder civil, impor a eminência do executivo, engendrando intelectuais que se definem pelo culto ao Estado e pelas iniciativas nestes planos.

Semelhante exame de várias doutrinas sobre a ciência e o Estado, sobre a opinião pública e os cientistas, leva aos seguintes itens:

1) Desde Hobbes, a ciência e a técnica são matérias do Estado. O povo deve obedecer e não tem forças para captar a ciência, e as suas diferenças face à mera aplicação utilitária, imediata.

2) Numa via, a kantiana, depois a hegeliana, o povo é ignorante em termos científicos, e não pode se arvorar em patrono do conhecimento. Este é propriedade do Estado, como a ciência, e não de uma suposta soberania popular.

3) O setor das Luzes mais democratizante, através da Enciclopédia e de Condorcet, lutou por uma formação ampla do povo, para que ele pudesse governar e decidir sobre todas as questões de seu interesse, dentre as quais a ciência e a técnica, ocupando lugar eminente. Em Rousseau e nos seus discípulos, foi acentuada a soberania popular, mas longe das ciências e das técnicas. Deste modo, soberania do povo e misologia foram identificados pelos conservadores, que indicaram no Terror o reino da ignorância popular, quando de fato trata-se de outros pontos diversos ao do saber. O fulcro real, efetivamente, era o controle social da propriedade.

4) Com o Termidor, ergueu-se a tutela dos intelectuais sobre o povo, e uma proteção especial do Estado, no tocante ao ensino e à pesquisa científica.

5) Afastada a soberania popular, o Estado tornou-se o sujeito, especialmente no Executivo, das ciências e das técnicas. Assim, ele foi posto acima da sociedade e das formas de pesquisa científica.

6) A mediação entre sociedade e universidade ou laboratórios de pesquisa deu-se por intermédio do Estado, especialmente do Executivo, uma vez que os Parlamentos e o Judiciário foram excluídos da iniciativa, na formulação das políticas científicas e tecnológicas.

7) Esta situação tem origens remotas, como vimos, mas indica uma curva lógica de Hobbes até os nossos dias. Ou os pensadores defendem a soberania do Estado (como Hobbes, enquanto paradigma), e nesse caso os cientistas e seus trabalhos são atributos estatais, ou eles defendem a soberania popular, sendo então os cientistas autônomos diante do Estado, apesar de receberem dele a remuneração, e ligam-se às nações e ao povo soberano (o paradigma aqui é a Enciclopédia francesa). O positivismo tentou unir formação técnica das massas, com a negação de sua soberania. Assim, reforçou a ditadura de um só homem, posto no ápice do poder Executivo, tendo a força da iniciativa em tudo o que se refere aos negócios públicos, especialmente no plano educacional e científico.(19)

A "mundialização" afetou a "iniciativa" do Executivo, no mesmo passo em que colocou em cheque os demais poderes do Estado, os Parlamentos e o Judiciário. Seja qual for o sentido desta palavra, é claro pelo menos que os atores sociais clássicos tendem a considerá-la sob vários prismas. Os políticos a enxergam como algo que supera o Estado nacional. Os sindicalistas nela encontram uma nova oposição entre capital e trabalho, induzida pela crescente importância do setor financeiro no capitalismo. Os intelectuais, em especial os economistas, nela encontram um novo crivo entre trabalho qualificado e trabalho não qualificado.(20)

Com a globalização,(21) ou contra ela, uma realidade espanta: hoje, a partilha de riquezas e de saber planetários é cada vez mais alarmante. Os 20% mais ricos do mundo guardam mais de 80% do PIB mundial. O número dos pobres cresce no ritmo da população da Terra, 2% ao ano. Estas cifras são apresentadas pela ONU e pelo Banco Mundial. Mas o nome e a propaganda não podem esconder por muito tempo um traço: os Estados Unidos e outros Estados nacionais supostamente moribundos, exportam hoje bens mais intensivos em trabalho do que os que eles compram no exterior. São mercadorias que exigem mais trabalho e menos capital as exportadas pelos países ricos. A vantagem destes últimos diante dos pobres reside na composição de sua mão de obra, a parte do trabalho nela qualificado.(22) E não existe trabalho nacional qualificado sem, antes, um pesado investimento em ciência e técnica.

Embora aceitando-se esse ponto, nota-se uma desvalorização do Estado nacional enquanto força da vontade política. Entre países que mantêm a soberania e se preocupam com a qualidade de sua mão de obra e a propaganda de uma reorganização territorial, uma "república mundial utópica", como pensar um mundo político onde o Estado não tenha o papel dirigente, a iniciativa em todos os campos?(23) Seja afirmando a debilidade do Estado nacional, seja negando-a é consenso indicar que, ao lado do papel cada vez mais amplo do capitalismo financeiro, neste processo tem-se a revolução técnica unida à informática, a qual afeta profundamente o nexo entre capital e trabalho. Indicam vários teóricos: os trabalhadores sem instrução técnico-científica empobrecem, enquanto os demais tornam-se mais ricos.(24) Como enuncia Daniel Cohen, este fenômeno deve-se menos à globalização do que a uma forte mudança tecnológica.

Este último autor mostra duvidar do possível preenchimento do abismo que se abre, mesmo nas economias fortes, entre os trabalhadores sem instrução tecnológico/científica e os que se qualificaram neste prisma. Neste campo, outros autores defendem a aplicação de recursos na mão de obra, tornando-a cara (à diferença das flexibilizações do trabalho, com seu barateamento, propostas entre nós e nos outros países intermediários entre o desenvolvimento e o atraso) com o fito de tender para a diminuição do deficit social. Trata-se de, via Estado, diminuir as desigualdades mais gritantes entre os trabalhadores, requalificando-se a mão de obra para o trabalho exigido pelas novas técnicas. Nas teses de um novo keynesianismo afirma-se que o sistema capitalista, se quer sobreviver a si mesmo, deve preservar o Estado providência e sua vontade de reduzir as desigualdades.(25)

Assim, após o Tratado de Maastricht, e o seu atual questionamento, após a vitória da esquerda na França, após o fim da URSS, com uma nova estratégia de defesa, e após as experiências neoliberais, se esboça a tendência de se redimensionar a soberania nacional, e mesmo velhas questões como a soberania do povo. Não se fala mais com certeza sobre o "fim" do Estado nacional.

Como todos os demais aspectos do Estado anterior ao neo-liberalismo (saúde, educação, comércio, indústria etc.), o plano da ciência e da técnica volta a ser algo que merece uma consideração, em termos de políticas públicas, estatais. Para conseguir uma vida mais segura, os países ricos da Europa e de outros continentes investem na educação de seu povo, fornecendo maior cuidado aos itens científicos e técnicos. Este aspecto define a hegemonia no próprio mercado planetário, locus de uma luta entre companhias com abrangência mundial, mas sediadas em determinadas nações, que delas recebem muito, mas que a elas também fornecem apoio tático armado e diplomático essenciais.

Não se trata de ignorar as teses que afirmam o fim do Estado nacional e da universidade idem. Mas importa não ficar mesmerizado pela propaganda, mesmo que sob aparência acadêmica, a qual avança, sem provas lógicas, históricas e outras, a idéia de que mesmo nos países ricos, como os europeus e nos EUA, sumiu o Estado nacional. Este diagnóstico mostra todo seu equívoco no trabalho de Bill Readings, The University in

Ruins.(26) Alí, o autor afirma que a universidade estadunidense atingiu a era do comércio absoluto, desvinculando-se do Estado nacional norte-americano. Os campi seriam algo assim como o shopping center do bairro, onde alunos buscam "mercadorias" — técnicas — adequadas para vencer no campo do trabalho, cada vez mais elitista pelas diferenças na formação dos indivíduos e grupos. O livro traz muitos aspectos verdadeiros, mas "esquece" alguns elementos básicos. Por exemplo, ele se cala sobre os investimentos estatais, combinados com os particulares, na pesquisa científica e técnica tendo em vista produzir, em universidades importantes, ciências que se traduzam em engenhos de guerra cada vez mais sofisticados. Se não há soberania nacional e hegemonia em escala do planeta, por que este setor é vivo, nos países ricos?(27)

As desigualdades entre os trabalhadores qualificados e os não qualificados tendem a se afirmar como desgraça inelutável, ou exigem o retorno (naturalmente com muito engenho e arte) do Estado à iniciativa das políticas educacionais, de ciência e tecnologia. Os desníveis nas sociedades ricas tornam-se espantosos quando eles são pensados comparando-se os habitantes dos países pobres e dos países ricos. Assim, é preciso redimensionar o Estado, trazendo à cena os outros poderes obnubilados ao longo dos séculos 19 e 20, os poderes Legislativos e Judiciários. Quando se fala em esgotamento político dos Estados nacionais deve-se dizer, com maior propriedade, esgotamento do modelo onde o Executivo, tendo à sua frente um homem e sua pequena equipe, adquirem nominalmente força demiúrgica excepcional. Os Legislativos, pela sua representatividade mais ampla e diversa e os Judiciários, desde que abram novas frentes de ação, além das velhas atitudes elitistas e do jargão que os separam dos povos, podem reinventar o político, recolhendo sugestões da sociedade mais ampla, ou abrindo frentes para harmonizar os interesses legais da produção e da força de trabalho.

Para isso, é mister que as universidades e institutos de pesquisa entrem, com os poderes políticos e com os mais amplos setores sociais, numa lógica nova do nexo entre sábios e povo ignorante. Não é mais possível aceitar o elitismo acadêmico que mantém os campi enquanto espaço de pureza e rigor científicos, como se a tarefa de educar os povos fosse tarefa imediata do Estado nas suas três faces, e como se a mediação universitária não fosse urgente. Por outro lado, não é mais possível, dada a crise do Executivo, crise projetada sobre o político em geral e sobre o Estado, de modo indevido, que a comunidade científica persista em manter relações quase unilaterais com este poder, ignorando os dois outros e a sociedade envolvente.

Torna-se importante rever a história do Estado e da ciência na idade moderna, procurando os projetos que se perderam, como é o caso dos Enciclopedistas, os re-orientando a partir dos avanços científicos atuais. A educação das massas torna-se um crivo de soberania. Os Estados que aplicarem verbas, engenhos e tempo nesta missão, podem ter esperanças de alguma relevância, inclusive comercial, nos próximos anos. Hobbes e Sócrates têm alguma razão: um povo não educado para a ciência, só percebe e só recebe aparência, sombras de riquezas, brilho de empréstimo. Intelectuais descomprometidos politicamente com seu país, podem ter a certeza, vã, de superioridade. Políticos que manipulam massas ignaras não possuem poder, mas ilusão de mando que pode se esfarelar ao primeiro sopro de uma crise mundial, em termos econômicos e políticos.

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* Foram citados de maneira habitual apenas os textos imprescindíveis. O autor considera perfeitamente conhecidos os trabalhos clássicos de Robert Derathe sobre Rousseau, os livros de Albert Soboul sobre a Revolução Francesa e outros.

** Professor de Filosofia da UNICAMP.

(1) The sciences are small Power; because not eminent: and therefore, not acknowledge in any man; nor are at all, but in a few; and in them, but of a few things. For Science is of that nature, as none can understand it to be, but such as in a good measure have attayned it. Leviathan, Chapter 10. Edited by C.B. Macpherson. London, Pelican Classics (Penguin Books) 1977, p. 151.

(2) Cf. Platão, "Gorgias" (521 C - 522 C). Trad. Leon Robin, Pleiade, Oeuvres Completes de Platon, v. 1.

p. 481-182.

(3) Hobbes, Thomas. Le Citoyen ou Les Fondements de la Politique. Trad. de Samuel Sorbiere (secretário de Hobbes em Paris), 1649. Uso a edição da Ed. Flammarion, Paris, 1982. p. 226-227.

(4) Das Volk will geleitet, d.i. (in der Sprache der Demagogen) es will betrogen sein. Es will aber nicht von den Fakultätsgelehrten (denn deren Weisheit ist ihm zu hoch), sondern von den-Geschäfsmannern derselben, die das Machwerke (savoir faire) verstehen, von den Geistlichen, Justizbeamtun. Arzten geleitet sein...". Note-se que a palavra mais frequente nesta passagem é o verbo "dirigir". O povo quer ser dirigido, deseja soluções prontas na religião, no direito, na medicina. É, deste modo, presa fácil dos milagreiros e demagogos. Cf. Der Streiten der Fakultäten, in Werkausgabe, F.A.M. Suhrkamp, 1977. T. 11, 1.

p. 294-295.

(5) Cf. "Fundamentos da Filosofia do Direito", § 317, quando Hegel opõe a "opinião pública" à ciência e cita Ariosto: Che'i volgare ignorante ogn'riprenda/ E parli piu di quelche meno intenda. In Werke in zwanzig Banden. F.A.M. Suhrkamp Verlag. 1970.

(6) Cf. Kintzler, Catherine. Condorcet L'Instruction Publique et la Naissance du Citoyen. Paris. Minerve/Folio. 1984, p. 44-45.

(7) Plan d’une Université. In Oeuvres (ed. L. Versini). Paris. Robert Laffont, 1995, T. 3, p. 411 e ss.

(8) Cf. Kintzler, Catherine. op. cit., p. 87 e ss. Esta autora desenvolve longamente o ideal condorcetiano do Homo suffragans, com base na instrução científica e técnica das massas. Seu livro é fundamental para todo debate sobre a instrução.

(9) Citações em Iring Fetcher, La Filosofia Politica di Rousseau. Per la Storia del Concetto democrático di libertà. Milano, Feltrinelli, 1972, p. 262-263.

(10) Qu’est-ce qu’un Thermidorien? In: La République et la Terreur, org. por Catherine Kintzler e Hadi Rizk, Paris, Kimé, 1995, p. 53-64.

(11) Cito sempre Badiou.

(12) Citado por Badiou, op. cit., p. 62.

(13) Cf. Plan des Travaux Scientifiques Nécessaires Pour Réorganiser la Societé (1822). Écrits de Jeunesse. Paris, Mouton, 1970, p. 248-253.

(14) Cf. Catéchisme Positiviste. Paris, Flammarion, 1966, p. 51-55.

(15) Documento citado e analisado por Ivan Lins, História do Positivismo no Brasil. São Paulo, Cia. Editora Nacional Coleção Brasiliana, v. 322, 1964, p. 364 e ss.

(16) Catéchisme Positiviste, ed. cit., p. 245.

(17) Citado e analisado em Lins, 1, op. cit., p. 330-331.

(18) F.H. Cardoso, Dos Governos militares a Prudente de Moraes. In: História da Civilização Brasileira. São Paulo, DIFEL, 1975, t. 3, v. 1, p. 30.

(19) Dados os limites do tempo e do espaço disponíveis, não analiso aqui as vertentes do poder e da ciência no campo socialista do século 20. A tríade Estado sujeito / intelectual tutelar / povo ensinado e dirigido, também imperou naquelas experiências políticas, não raro com resultados catastróficos. Basta lembrar a "abolição" dos enunciados de Mendel, por ideólogos como Lyssenko, mais ocupados em justificar os poderosos do que em definir o verdadeiro. As colheitas soviéticas se encarregaram de evidenciar a mentira daqueles procedimentos "científicos".

(20) Cf. Jean Pisani-Ferry, na revista Alternatives économiques (julho/agosto de 1996).

(21) Engelhard, Philippe: L’Homme mondial. Les sociétés humaines peuvent-elles survivre? Paris, Arléa, 1966, p. 113.

(22) Cf. Elie Cohen. La Tentation hexagonale. La souveraineté à l’épreuve de la mondialisation. Paris, Fayard, 1966, p. 38-39.

(23) Cf. Olivier Mongin, Les Tournants de la mondialisation. Revista Esprit. Novembro de 1996, Boa parte deste trabalho deve muito a este importante artigo.

(24) Cf. Cohen, D. Richesse des Nations, pauvreté du monde. Citado por Mongin no artigo mencionado acima.

(25) Olivier Mongin cita Jean-Paul Fitoussi, para esta tese.

(26) Cambridge, Harvard University Press, 1996.

(27) Para uma análise oposta à realizada por Bill Readings, cf. William I. Robinson: Promoting Polyarchi. Globalization, US Intervention, and Hegemony. Cambridge, 1996.