terça-feira, 23 de agosto de 2016

Prof. Roberto Romano da Silva Unicamp. Considerações sobre o Projeto de Lei que procura aprimorar o combate à Corrupção no Brasil. Câmara dos Deputados-Brasilia 23/08/2016







Prof. Roberto Romano da Silva

Unicamp.



Considerações sobre o Projeto de Lei que procura

 aprimorar o combate à Corrupção no Brasil.


Câmara dos Deputados-Brasilia

23/08/2016










Agradeço o convite para me dirigir a representantes do povo brasileiro. Deixarei de tocar nos ítens com os quais concordo e outros, onde me falta competência. Não me deterei nas penas e dosimetria propostas. Juristas podem analisar com apuro tais elementos. O projeto, se elevado à norma, trará benefícios à sociedade, ao Estado e à política, neles escoimando desvios. O texto é bem ordenado e oportuno. A justificativa, no meu entender modesto, traz problemas que merecem atenção. Peço sua paciência para os pontos que enumero, pois eles brotam de um apelo à prudência.

“O poder corrompe. O absoluto corrompe absolutamente”. O enunciado de Lord Acton serve hoje como clichê. Se o contextualizamos no entanto, sua tese ajuda a refletir sobre a presente crise mundial de Estados e nações. Em carta ao bispo Creighton, Acton discute a responsabilidade de quem dirige os poderes. Suas frases sobre o mando corrosivo se complementam do seguinte modo: “O poder absoluto desmoraliza”. O bispo Creighton dizia ser preciso evitar a corrupção. É a atitude comum em coletivos prejudicados por malfeitores públicos. Leis seriam ideadas para prevenir costumes imorais.  “Eu não me preocupo”, replica Acton, “em evitar a corrupção, mas em saber como ela surge”. Muitos analistas se limitam à atitude de Creighton, poucos seguem o malefício até sua gênese.

Infelizmente, noto no projeto de lei traços do bispo Creigthon e não os de Acton. E nele percebo notas que podem levar, não ao reforço  da ética pública, mas à desmoralização. A paciência que solicito dos senhores é necessária porque devemos passar pelas nossas origens quando se trata do regime democrático. A maioria dos atuais conceitos políticos vem da Grécia clássica, e dela também nos chegam defeitos a serem vistos com prudência.

A isonomia, o princípio da responsabilização nos cargos públicos, a accountability e outros aspectos democraticos surgem na Grécia e foram redescobertos na Renascença a partir do século 15. Todo país moderno usou os textos históricos, jurídicos, filosóficos gregos para inventar o Leviatã, o Estado soberano que a todos obriga a seguir as leis. A accountability, lema da revolução puritana inglêsa, base essencial nos Estados Unidos, na França, e  outras terras livres, retoma as lições de Platão na República e nas Leis. Montesquieu, suposto idealizador da harmonia entre forças estatais, extrai a tese e muitas outras das Leis platônicas. Em artigos, livros e trabalhos acadêmicos, insisto no ponto. Até aí, o lado positivo da nossa herança grega.

Passo aos ângulos negativos. A democracia ateniense caiu por vários motivos. Decisivo foi o desmedido poder imperial que ela se arrogou e teve o ápice na guerra do Peloponeso. SegundoTucídides, a ambição corrupta do povo ateniense levou às aventuras imperiais que destruíram a hegemonia de Atenas e o regime democrático. A cidadania, desde que os oligarcas perderam o controle financeiro e político, teve com Solon restituida a sua pequena propriedade, condição para  entrar no gozo dos direitos cívicos. Os cidadãos de média e pequena posse, para cumprir a liturgia dos cargos públicos, deixam o interior do país e se mudam para a capital. Dalí, não cuidam mais das colheitas, o que os faz carentes de recursos próprios. Cleon, o campeão democrático, aumenta os subsídios para que eles exerçam seus cargos.  Exemplo: alguns óbulos eram pagos pela presença nos julgamentos com centenas de juízes. Como garantir a constância de tais honorários? Apontando cidadãos como culpados de vários crimes, o que inflaciona o número de processos e consequentes dinheiros aos que participam do tribunal.

Os críticos do regime, sobretudo Aristóphanes e Platão, mostram que tais práticas levam à corrupção e desmoralizavam a democracia. Aristófanes, na peça As Vespas, denuncia a prática de  manter os cidadãos às custas dos cofres públicos. Como vespas, os juízes populares picam uns aos outros e aos cidadãos comuns, produzem inchaço no coletivo. Eles adoecem o corpo político. É preciso inventar processos, culpados, sentenças, para garantir o óbulo dos que integram o tribunal. Algo similar ocorre na Ekklesia, a assembléia do povo, ancestral da nossa Câmara dos Deputados. O pagamento de cidadãos privados para cumprir ofícios públicos inverte a ordem do poder, anuncia os seus limites éticos e administrativos. Platão se refere à cidade inchada de humores por culpa da incessante luta de todos contra todos na disputa pelo controle das finanças públicas. Hobbes brota, ao mesmo tempo de Platão e de Tucídides, pois o tema da guerra de todos contra todos pertence ao campo essencial daqueles pensadores. Assim, quanto mais processos, quanto mais culpados, mais o sistema de justiça democrático segue para a ruína.

Uma técnica para obter réus para os tribunais era o uso de sicofantas. Segundo um historiador da Grécia democrática, o recurso aos delatores ocorre sobretudo nos séculos 4 e 5 AC. As práticas ligadas a eles, segundo o autor, mostram similaridade com o sistema da chantagem (black mail) nos sistemas democráticos modernos. Italo Calvino indica a Itália como sociedade onde todos se aproveitam do dinheiro público e depois criam uma ética interior e pessoal para justificar a corrupção generalizada. Ou seja, da cidadania comum aos políticos, poucos escapam do usufruto que empobrece os cofres públicos. A democracia parece sustentar-se em atos ilegítimos, proibidos pelos seus próprios princípios, como o da accountability. Norberto Bobbio tem lúcidas páginas sobre o comércio político a que se reduz boa parte dos Estados contemporâneos. ([1])

A sociedade troca favores e presentes com os magistrados, políticos, ministros. Tal mercadejo na Grécia clássica se chama doro, presente.  A tradução portuguesa é suborno.  O poeta Hesíodo chama o rei corrupto de δωροφάγους,  comedor de presentes (Trabalhos e os Dias, 38-40). Platão intitula os funcionários corrompidos como “tomadores de presentes e amantes do dinheiro”(República, 390d). E cita a frase poética: “Os presentes movem  deuses / presentes persuadem péssimos reis”.

Se o poder é movido pelos favores e a base democrática é o não favor, mas a isonomia, como combater subornos?  Recordemos que os próprios cidadãos na democrática Atenas sobrevivem com os presentes da polis que os sustenta nos cargos. Como vencer a corrupção e a troca de presentes? Caçando corruptos e aliciadores de benesses e, se necessário, inventando culpados ou atribuindo culpas a inocentes. ([2]) O instrumento para tal fim era o sicofanta. A palavra, desde tempos remotos, significa a pessoa que acusa falsamente.([3]) Lysias, político e pensador da época, explica o sicofanta. A sua prática, diz ele, “é acusar, mesmo contra os que nada fizeram de errado, porque destes últimos eles arrancam mais lucro”. Sicofantas ajudam a combater a corrupção, mas eles próprios são corruptos, entre outras coisas pela prática da chantagem. ([4])

Dada a experiência histórica, não só da Grécia mas de múltiplos regimes democráticos e autoritários modernos, tenho dúvidas de ordem ética  sobre o  Art. 38 do projeto.  “O terceiro que, não sendo réu na ação penal correlata, espontaneamente prestar informações de maneira eficaz ou contribuir para a obtenção de provas para a ação de que trata esta lei, ou, ainda, colaborar para a localização dos bens, fará jus à retribuição de até cinco por cento do produto obtido com a liquidação desses bens. Parágrafo único. A retribuição de que trata este artigo será fixada na sentença”.  Foi refletido, na redação do artigo,  o passivo moral que a prática instaura ou reitera? Não estaríamos retomando a lide das vespas atenienses e dos sicofantas? A definição de Lisias é  forte e tenho dúvidas sobre se ela não se aplicaria à sociedade brasileira. Diz ele, repito, que os inocentes chantageados dão mais lucros aos sicofantas, do que os verdadeiramente corruptos. É contra a fé pública mover profissionais da delação paga.

O segundo ponto que preocupa no projeto é o teste de integridade, no artigo 48. O Estado democrático moderno, apesar de preso nas malhas da burocracia com o seu segredo do cargo inexorável, busca romper com a raison d’État e o sigilo. A transparência deve comandar os poderes e os meios administrativos. Estados onde imperaram a exceção, afastada a transparência, mantiveram o sigilo e o ampliaram em detrimento da liberdade cidadã. Se o legislativo, o executivo, a justiça devem prestar contas de seus atos aos cidadãos, como instaurar um modo de percepção da provável desonestidade de funcionários com base no segredo? “Artigo 50: Os testes de integridade consistirão na simulação de situações sem o conhecimento do agente público, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer ilícitos contra a Administração Pública”. Poderes secretos seriam atribuídos a Corregedorias, Controladorias, Ouvidorias ou órgãos congêneres de fiscalização e controle. Tais organismos devem dar ciência, de modo sigiloso, ao Ministério Público, para que este recomende medidas complementares. E ainda mais segredo: Artigo 55: A administração Pública não poderá revelar o resultado da execução dos testes de integridade, nem fazer menção aos agentes públicos testados. A frase “respeitado o direito à intimidade” surge como algo estranho no contexto.

Deixando de lado a eficácia do teste, algo muito discutido pela literatura especializada, ([5]) insisto no segredo e na sua manipulação.  Os organismos movidos para aplicar os testes estão acima de qualquer inspeção no ato mesmo em que o efetivam? E o termo “simulação” no projeto? Um mestre político, jurídico e científico é Francis Bacon. No ensaio sobre “Simulação e Dissimulação” ele indica a essência da palavra e da coisa: “A simulação é profissão falsa e a mais culpável e menos política, exceto em matérias eminentes e raras. E um costume generalizado de simulação (em seu último grau) é vício”. O principal erro dos atos simulados, termina Bacon, é que eles privam “a pessoa de um instrumento principal de ação:  a confiança e a crença”.

Uma técnica ética e moral estabelecida por Kant, para testar a prática baseada em máximas, é perguntar se elas podem ser universalizadas, omnia et singula. Caso contrário, ela não é moral. Os procedimentos do teste de integridade podem ser universalizados para toda a cidadania e todos os que, nos poderes, exercem cargos? Por exemplo, na Justiça ? A resposta é negativa. Volto a Platão: nas Leis ele instaura pela primeira vez na história jurídica e política a tese dos checks and balances, depois herdada por Montesquieu. Abusos de um poder devem ser controlados pelos outros, coletivamente dispostos. No teste de integridade o indivíduo está solitário, sem apoio de seus representantes como os sindicatos e associações, diante de um poder invisível que só responde a posteriori, mas deve silenciar o nome e as condições do interrogado. Perdoem, mas estamos no domínio do Processo, escrito por um autor que denunciou o abuso do segredo.

Finalmente, passo à boa fé que, diz Bacon, desaparece com práticas de simulação e dissimulação no poder e na sociedade. Noto um ponto : os partidos políticos poderão ser punidos pelo uso de recursos ilícitos. Existe, no entanto, quem julgue encontrar nas suas direções boa fé na admissão daquelas finanças (Cf. Editorial de O Estado de São Paulo, “Quando só a boa-fé não basta”, 19/08/2016, p. A3). É árduo separar o tesoureiro ou integrante de um partido e a totalidade da agremiação. Mas seria de todo relevante, no caso, provar a conivência do todo partidário em casos específicos.  Algo similar ocorre na coleta de provas não assistidas pela ordem legal, mas realizadas em boa fé pelos investigadores e/ou acusadores.

Importa refletir um pouco sobre o significado da locução “boa fé”que  herdamos do latim bona fide. O exemplo que vem à lembrança é o do autor da mais profunda ética ocidental, Bento de Spinoza. No Tratado Teológico-político, ao elogiar a cidade de Amsterdã ele exalta o quanto a liberdade é fundamental para a sua vida pública. Naquela urbe, diz ele, “pessoas de todas as nações e seitas vivem em concórdia e se preocupam apenas, para dar crédito a alguém, rico ou pobre, se ele costuma agir como pessoa de boa fé ou dolosamente”(num bona fide, an dolo solitus sit agere”. (TTP, capítulo XX). Spinoza distingue os sentidos da fé e da boa fé. Do religioso ao político, ele segue a ligação entre fé e obras: “a fidelidade no Estado como a fidelidade para com Deus só é conhecida pelas obras”. Spinoza parte do conceito jurídico vigente na época, a idéia de bona fides cujo significado é confiança, crédito. ([6])

Como a maioria de nossos conceitos jurídicos, o lema da boa fé vem da Grécia e de Roma. Em Atenas o termo original para tal situação é πίστις. ([7]) Já a Fides designa confiança recíproca entre  contratantes e aparece nos mais antigos textos conhecidos. ([8]) Em Cicero, a boa fé se define “como o fundamento da justiça. Ela é a verdade e a constância nas promessas e acordos. E devemos seguir os estoicos, que diligentemente investigam a etimologia das palavras. E devemos aceitar seu argumento de que a ‘boa fé’ é assim chamada porque promete ‘fazer o bem’ embora alguns possam achar que esta derivação é um erro”. ([9])

É preciso notar que o termo “boa fé” não é unívoco e sem ambiguidades. Como enunciam trabalhos jurídicos –antigos e recentes–, trata-se de uma noção vaga. Tal fato não impede que ela tenha acolhimento em vários setores do direito. Mas não há consenso algum “sobre a exata natureza legal da boa fé. Esta imprecisão terminológica afeta inevitavelmente a função preenchida pela boa fé no direito contemporâneo”. E no entanto, “parece que um bom número de sistemas considera que a boa fé se aplica às leis que tratam das obrigações em geral, e não apenas às leis do contrato”. ([10])

No comercio e na política pode-se falar com maior propriedade de boa fé, porque existe algo que vai além dos que fazem o acordo: a mercadoria, o dinheiro, o poder estatal que efetiva obras  em proveito dos governados. Quando o ato é unilateral e não beneficia como no contrato a outra parte de modo evidente, com dificuldade podemos separar o conceito de boa fé do seu aspecto subjetivo.([11]) Ele reside no íntimo do indivíduo que age, não é fenomênico para usar a linguagem kantiana, mas apenas noumênico, se limita à consciência do agente. Mas consciência não se revela sem equívocos no mundo visível. Aliás, neste ponto Rousseau, emulado por Kant, é mais claro: “Toda a moralidade de nossos atos está no juízo que trazemos em nós mesmos. Se é verdade que o bem seja bem, ele deve estar no fundo de nossos corações como em nossas obras e o primeiro prêmio da justiça é sentir que a praticamos”. ([12]) Para que a consciência própria seja reconhecível no e pelo coletivo é preciso indicar as obras resultantes. E tais obras, na investigação criminal, não podem negar a lei positiva. A sequência que vai dos quid facti ao quid iuris deve ser estabelecida sem quebras subjetivas. Não é preciso seguir Hans Kelsen para notar as dificuldades  de uma visão subjetiva que, ampliada,  pode se tornar equívoca e arbitrária. ([13])

Pergunto se a noção de bona fides, no projeto, não deveria ser mudada por uma outra, a de equidade, a epieikeia formulada por Aristóteles, o corretivo para as leis positivas que regem a sociedade e o Estado. ([14]) Em certos casos a lei comum não consegue ser obedecida in totum, os casos precisam ser considerados como exceção à regra geral. É preciso retificar a lei devido  à sua generalidade. A epieikeia reside na retificação prudente da lei geral. Ela não nega a lei geral, mas a corrige quando é preciso aplicá-la a casos particulares anômalos. ([15]) Mas aí temos outro problema: se o conceito de epieikeia vale para o acusador, ele também pode ser movido pela defesa, pois a justiça e a equidade o exigem. A bona fides deveria ser atribuída aos que investigam e acusam e aos acusados, por exemplo os partidos políticos.

Tais pontos são trazidos por mim não para obstaculizar o trabalho que levou ao atual projeto, subscrito por dois milhões de compatriotas e apresentado pelo Ministério Público, ao qual me alio desde longa data. São observações de prudência ética, para que conceitos problemáticos não sejam tomados como imperativos, o que pode suscitar, em médio ou longo prazo, autoritarismos oriundos da luta contra a corrupção. A experiência jacobina  nos alerta contra o excesso no combate à corrupção: a guilhotina não é um instrumento idôneo para atenuar o fato corrupto. ([16]) Este é a coisa mais amplamente partilhada pelos seres humanos. Lutar para que a corrupção se atenue é dever ético. Sem autoritarismos, no entanto, porque regimes autoritários que alegadamente foram impostos para lutar contra a corrupção,  produziram apenas corrupção sigilosa, a exemplo do que ocorreu em nossa terra nas ditaduras do século 20.

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[1] “No mercado político democrático o poder se conquista com votos, um dos modos de conquistar votos é
 comprá-los e um dos modos para se livrar das despesas é servir-se do poder conquistado para conseguir benefícios mesmo pecuniários daqueles que possam receber vantagens daquele poder (…) Considerada a arena política como uma forma de mercado, onde tudo é mercadoria, ou coisa comprável e vendível, o político se apresenta num momento como comprador (do voto), num segundo momento como vendedor (dos recursos públicos dos quais, graças aos votos se tornou potencial dispensador)”. “Quale il Rimedio?” In L’Utopia Capovolta (Torino,La Stampa, 1990), p. 32 e ss
[2] MacDowell, Douglas M. The Law in Classical Athens (Ithaca/NY, Cornell University Press, 1978), p. 34.

[3] Matthew R. Christ, The Litigious Athenian (Baltimore:  The Johns Hopkins University Press, 1998).


[4] “Sicofanta era o homem que fazia processos sem justificação, seja porque ele tinha esperança de pegar um réu inocente e dele obter a paga devida a um promotor bem sucedido, ou porque ele tinha a esperança chantagear o réu ao idnuzi-lo a pagar proprina para fazer o processo terminar”.  Douglas M. MaDowell, op. cit. p. 62. Todo o capítulo de MacDowell sobre o sicofanta é muito ilustrativo dos perigos por ele trazidos.  Não tenho tempo para analisar todo o ponto aqui, remeto ao estudo de Donato Loscalzo, “Doro Fig-Sandaled’ (Cratin.Fr. 70 Kassel-Austin and Aristoph. Eq. 529) and other aspects of comic Sycophantia”, in Classical Association of South Africa, Acta Classica Supplementum IV, Corruption and Integrity in Ancient Greece and Rome, Classical Association of South Africa. 2-12.

[5] Wiley, C. e Rudley, D. L. : “Managerial issues and  responsabilities in the use of integrity tests”.  In Labor Law Journal (1991); Coyne I., e Bartram, D. “Assessing the effectiveness of integrity tests, a review”. In International Journal of Testing.   in https://www.researchgate.net/publication/247502634_Assessing_the_Effectiveness_of_Integrity_Tests_A_Review também Lisa L. Harlow, Stanley A. Mulaik, James H. Steiger: What If There Were No Significance Tests? Mahwah, NJ, Lawrence Erlbaum Associates, 1997. Também: Harold M. Hyman, To Try Men's Souls: Loyalty Tests in American History, (Berkeley, CA, University of California Press, 1959) .

 



[6] Carlo Guinzburg : “Tolérance et Commerce. Auerbach lit Voltaire”in  Tortonese , Paolo (Ed.) :  Erich Auerbach la líttérature en perspective,  (Paris, Presses Sorbonne Nouvelle, 2009), p. 119-120.
[7] Cf. J. Hellegouarch’h : Le vocabulaire latin des relations et des partis politiques sous la république (Paris, Les Belles Lettres, 1972), p. 25. Em Platão o termo pode significar fé ou crença que resulta da retórica (persuasio ou Glaube). No Lexicon Platonicum, sive vocum platonicarum INDEX, (Lipsae, Libraria Weidmanniana,  1838) ,V. III, p.106, ele designa a fidei, a fiducia. É bom recordar que nos manuais de retórica forense gregos, no momento clássico, “pistis” era uma das partes do discurso do logógrafo, o avô dos nossos advogados. A defesa contava com o prooimion (introdução),  a diegésis (narrativa), a pistis (provas), epílogos (conclusão). Cf. Lanni, Adriaan: Law and Justice in the Courts of Classical Athens (Cambridge, University Press, 2006)  p. 45. Se fôssemos estritamente platônicos, teríamos bastante relutância em aceitar o termo “boa fé” em campos do agir e do pensar. O filósofo coloca aquela posição como a penúltima na escala do saber, apenas superior à eikasia (conjectura). Acima dela situam-se a dianóia (raciocínio) e finalmente a noesis ou epistême (conhecimento). República, 511e a 511d.
[8] Hellegouarch’h, op. cit. p. 27.
[9]Fundamentum autem est iustitiae fides, id est dictorum conventorumque constantia et veritas. Ex quo, quamquam hoc videbitur fortasse cuipiam durius, tamen audeamus imitari Stoicos, qui studiose exquirunt, unde verba sint ducta, credamusque, quia fiat, quod dictum est, appellatam fidem”.  M. Tullius Cicero. De Officiis. With An English Translation. Walter Miller. (Cambridge. Harvard University Press) 1913 in Perseus Project, http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A2007.01.0047%3Abook%3D1%3Asection%3D23

[10] “Good Faith”  in Principes Contractuels Communs, projet de Cadre Commun de Référence, v. 7, cap. 5. Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française, Société de Législation Comparée, dirigée para Bénédicte Fauvarque-Cosson. http://www.legiscompare.fr/web/IMG/pdf/0-Couvertures_4_de_couv_vol_7.pdf

[11] Cf. Chris Coope : “The doctor of philosophy will see you now”, in Anthony O'Hear (Ed.) : Conceptions of Philosophy. (Cambridge, University Press, 2009).

p. 212.
[12] Jean Paul Sartre foi um dos pensadores modernos que mais percebeu a complexa relação entre boa fé e má fé, ambas enquistadas na consciência e diante do mundo opaco . A boa fé, diz ele em O Ser e o Nada, “busca fugir da desagregação íntima de meu ser rumo ao em si que ela deveria ser e não é”. A má fé, “busca fugir do em si na sua desagregação íntima de meu ser”. Em seu movimento comum, “a má fé reassume a boa fé e desliza rumo à origem mesma de meu projeto”. Ou seja, a boa fé traz a má fé no seu ventre, como diz Sebastião Trogo: “Má fé e conversão, dois pilares da antropologia sartreana”Revista Síntese, número 37, 1986, pp. 51-59. 
[13] Não apenas no positivismo jurídico, mas em pensadores como Hegel a presença e a obediência da lei estabelecida é conditio sin qua non para deixar o arbítrio. “Sem o direito, a fraude e o crime são juízos. Julgar, para Hegel, é um ato especulativo, não de reflexão, mas um agir para o sujeito para quem dizer é fazer, fazer é dizer, o ato do corpo e da alma. Calar pode ser um juízo, bem como ‘julgar com os pés’ indo embora. Posso negar que o direito seja respeitado, quero então fazer reconhecer o não respeito do direito pelo direito, que então quero respeitar : o juízo é então, no essencial, uma ato de palavra do gênero : ‘não estou de acordo’ ou ‘não é conforme à lei’ ou ainda ‘a lei me dá razão’. Na fraude, o direito também é reconhecido, mas a minha ação consiste em fazer passar a aparência pela essência, afirmo que é conforme ao direito fazer tal coisa ao fazer a coisa, mas sei muito bem que não é verdade e a ação que compreende um dizer faz aparecer meu intento mentiroso. O exterior é desmentido pelo interior, minha hipocrisia abre minha subjetividade”. Hervé Touboul, “Le crime et le sujet dans la philosophie du droit de Hegel” in Philosophique, Annales littéraires de l ‘Université de Franche-Comté, 15, 2012, pp. 25-44. http://philosophique.revues.org/542

[14] Os autores dos Principes Contractuels Communs, projet de Cadre Commun de Référence, citados acima, chega à conclusão próxima à que adianto, ao indicar o conceito de “fairness” : “Contractual fairness is protected by a reliance on notions which are different from, and to a certain extent, more precise than, the notion of good faith”.
[15] Anton-Hermann Chroust, Aristotle's Conception of Equity (Epieikeia), 18, Notre Dame Law. Rev.119 (1942).Available at:http://scholarship.law.nd.edu/nd lr/vol18/iss2/3


[16] Durante o governo jacobino, dirigido por um líder cujo apelido era “O Incorruptível”, existiu o uso da coisa pública para fins partidários e pessoais, crimes praticados por grupos que afirmavam defender a moral política. Cf. Michel Benoit 1793 La République de la tentation : Une affaire de corruption sous la Ière République (Paris, Ed. de l’Armançon, 2008). “Ninguém pode garantir que um partido, governo ou mesmo Estado (para não falar no coletivo religioso) seja hegemonicamente honesto ou desonesto. A pesquisa e análise exigem rigor epistemológico e prudência moral”, Roberto Romano, Entrevista MPD Dialógico, http://mpd.org.br/a-mpd-dialogico-roberto-romano-afirma-que-brasil-beira-caminho-sem-volta/

 


segunda-feira, 6 de junho de 2016

Luis Inácio Maluf Sarney da Silva e seus acólitos tapados.

A Folha de são Paulo, periódico do qual cancelei minha assinatura há muito tempo (de vez em quando leio notícias dele oriundas, que partilho aqui) fez uma reportagem ouvindo acadêmicos sobre o impeachment. Até aí,tudo bem. Os contrários deram sua opinião (que foi majoritária na matéria) e os favoráveis idem. Como sempre digo, a sentina fétida encontra-se no espaço aberto aos covardes e descerebrados, que recebem incentivos dos que agem na cena pública, os chamados "leitores"(que nada sabem ler ou entender). O site Cafezinho, espaço sectário e cultivador da tolice fanática, comentou o trabalho da Folha. No buraco fétido dos comentários, pode-se ler o seguinte:
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Débora • 2 meses atrás
Escolheram Boris fausto, ligadíssimo aos tucanos paulistas, segundo salário da USP, Bolivar Lamounir, Ferreira Goulart, FHC, qual seria a posição deles, alguém adivinha. Surpresa que não procuraram o M A Vila e o Roberto Romano, outros que tem penas e plumas. Mas achei que de novo a Folha é paulocêntrica, isto é, a maioria dos intelectuais paulistas, um ou outro do Rio. E o Nordeste, e o Norte, sul centro oeste. Não há intelectuais ali? Fora de São Paulo, a barbárie.

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E depois os petistas e quejandos se espantam por estarem isolados, berrando para o vazio ou para os ouvidos dos seus cúmplices, o que também é berrar no vazio. Passei décadas apoiando esta gente, no mesmo passo em que ela se juntava à mais rançosa direita do país (não é mesmo, Luis Inácio Maluf Sarney da Silva?). Quero que todos se dirijam, rápido, para o inferno do esquecimento. Roberto Romano

*Nota: não agradeço à pessoa que me indicou a façanha acima. Como dizia Francis Bacon, "se eu tivesse um espelho mágico que me contasse tudo o que dizem de mim, eu o quebraria". E com razão. RR

domingo, 5 de junho de 2016

Justiça e misericórdia. 'O imperativo categórico kantiano serviu como guilhotina intelectual para cortar o divino misericordioso'. Entrevista especial com Roberto Romano

 

Justiça e misericórdia. 'O imperativo categórico kantiano serviu como guilhotina intelectual para cortar o divino misericordioso'. Entrevista especial com Roberto Romano

“A misericórdia e a graça divina se enlaçam de modo misterioso. Façam os homens o que fizerem, Deus está ao seu lado para oferecer vida, beleza, bondade”, destaca o filósofo.
Foto: multiplotcinema.com.br
Compreender a complexidade do conceito de perdão requer superar a dualidade entre bem e mal. Em geral, pensa-se que o bom é o que perdoa e o mau aquele que cometeu o pecado.
Para o professor e filósofo Roberto Romano, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, o perdão pode ser tudo ao mesmo tempo: o bom, o mau, o pecador e aquele que perdoa. “O perdão é um modo de ajustar comportamentos hostis, mas cuja eficácia é incerta”, pontua. Assim, Romano compreende que o perdão “pode resolver pendências beligerantes na sociedade e no Estado”.
Entretanto, também e ao mesmo tempo, compreende que “a todo instante pode se transformar em vingança, perseguição mútua de indivíduos, grupos, partidos, países, religiões”. “Em plano micrológico, trata-se do comportamento notável em sacristias onde beatos batem no peito e cobram retidão absoluta dos semelhantes, sem notar que sua inflexibilidade gera malefícios sociais, políticos, econômicos, religiosos”, explica.
Já a ideia de misericórdia supera essa potência multifacetada e se perfaz na ordem do divino, como algo sacro. Para Romano, inclusive, o divino se manifesta de forma gratuita e abundante a quem “se alimentou da misericórdia e tentou praticá-la plenamente”. “A misericórdia e a graça divina se enlaçam de modo misterioso. Façam os homens o que fizerem, Deus está ao seu lado para oferecer vida, beleza, bondade. Deus não se ressente com a nossa maior perfeição, mas a possibilita”, define o filósofo. Então, significa que a misericórdia é algo de Deus, incapaz de ser alcançada no plano terreno? Para ele, o laço que enreda o ser humano à misericórdia se materializa pelo perdão. “Ele (Deus) se alegra no instante em que os humanos se perdoam reciprocamente. Naquele momento eles são divinos.” Romano ainda vai além e destaca a necessidade humana de misericórdia, pois para ele “a misericórdia, graça divina, alimenta nossos corpos e almas, dá-nos alento para ampliar a força da existência na terra”.
Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, São Paulo. Cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).
Confira a entrevista.
Foto: Portal Unicamp
IHU On-Line - Qual é a diferença entre o perdão e a misericórdia?
Roberto Romano - Diria que o perdão é marca dos seres humanos, finitos e falíveis. Eles habitam os limites entre vida e morte, vivem em tensões apaixonadas, medos, desejos, vontade de potência, ganância, tudo o que define um ser dotado de pensamento e usa tal força para sobreviver à custa dos semelhantes. Se todos erram e ferem, sem perdão a existência coletiva seria impossível. É por tal motivo que o pêndulo entre atentados aos demais e o perdão se repete interminavelmente.
O magnífico poema de Louis MacNeice proclama em tom queixoso: “Wen all is told/We cannot beg for pardon” (The Sunlight in the Garden). Presos ao tempo e espaço finitos, nossas inteligências e corpos se chocam, geram dores recíprocas, e não poderia deixar de ser assim. Todos, do mais humilde habitante das ruas aos doutores universitários, lamentam a passagem dos instantes felizes, o que os lança nas horas em que a acedia traz o desespero. Recordemos o Fausto: Und Schlag auf Schlag! Werd ich zum Augenblicke sagen: Verweile doch! du bist so schön! No átimo feliz o perdão é mais fácil, nos momentos escuros da alma ele se torna quase impossível. Vivemos hoje em clima de acedia cósmica, a melancolia invade os corações sob camadas ruidosas de entretenimento e propaganda, risos mentirosos e amizades artificiosas. Perdoar parece, em nossos tempos, um ato desnecessário. E o planeta executa a dança da morte sem esperança.
Interminavelmente ferimos e somos feridos. E nos queixamos das aflições a nós impostas, esquecemos as que aplicamos aos outros. Falamos e falamos para nos justificar, acusamos os demais, forjamos a consciência infeliz, longe da alma pacificada. O perdão deveria ser silente, não palavroso, não ostensivo. Mas nos enredamos na teia das palavras e não perdoamos de fato. Trata-se de matéria delicada porque, desprovido da graça divina, tal “perdão” traz mais sofrimento para o perdoado. A doença chamada sinceridade aproveita aquele gesto e, num instante, revela indivíduos que supostamente perdoam, mas julgam impiedosamente os fracos caídos. Alguém que perdoou, com muita probabilidade produz o ressentido. Quando tudo foi dito e o semelhante está prostrado, não há perdão, mas um fardo existencial sem vida e seiva.
Cautela também com os perdoados: o seu ressentimento pode estar embebido no desejo de vingança: se recebeu perdão é porque, pensa, o que o perdoou o julga inferior, imperfeito, longe do bem e do belo. E ressurge o desejo vingativo, implacável e que jamais perdoa. A ingratidão do ressentido tem origem no gesto que ele julga um insulto à sua altivez. Lúcifer não deseja ser perdoado porque se afirma à altura do Altíssimo. Ele quer poder absoluto e vingança. A leitura de O Paraíso Perdido ensina muito sobre a psicologia do perdão, do ressentimento e da vingança.
Misericórdia
A misericórdia difere do perdão. Só a pode possuir um ser que não peca, pois é infinito e sem desejos ou paixões. Do seu regaço eterno ele presenteia as criaturas com amor sem limites, gratuito. A misericórdia e a graça divina se enlaçam de modo misterioso. Façam os homens o que fizerem, Deus está ao seu lado para oferecer vida, beleza, bondade. Deus não se ressente com a nossa maior perfeição, mas a possibilita. Ele se alegra no instante em que os humanos se perdoam reciprocamente. Naquele momento eles são divinos.
Perdão e misericórdia
Entretanto, a tentação do orgulho e do ressentimento, não raro, transforma o perdão em coisa diabólica . É quando ele adquire o conteúdo venenoso da política, da troca econômica, do controle clerical. A mais clara imagem da diferença entre perdão e misericórdia a temos no símile do casamento entre Deus e o povo. Este último é comparado à prostituta que é infiel ao amor divino. Mas Deus ama Israel, está sempre disposto a lhe enviar vida e bênçãos. Uma prostituta pode perdoar outra, um coletivo pode perdoar o seu concorrente, mas apenas Deus traz o perdão que a todos pacifica, sem a ninguém humilhar porque a todos transcende. Ser perdoado por outro ente humano pode produzir os piores ressentimentos e a vingança. Ser perdoado por Deus traz alegria perene porque a diferença entre Ele e nós é incomensurável. Meditar sobre o livro de Jó também auxilia a perceber o vínculo entre criaturas finitas e falíveis e o Altíssimo.
Sic et Pater meus cælestis faciet vobis, si non remiseritis unusquisque fratri suo de cordibus vestris”. (Mateus, 18, 35). Quem consegue, dentre os filhos do homem, perdoar até o mais fundo do coração? Quem deixa de lado considerações de justiça e vingança, poder e riqueza, para perdoar sem condições? Nenhum. Há um abismo entre o Pai celeste e os filhos rebeldes, justiceiros, apaixonados. A nossa misericórdia tem limites, a divina é ilimitada. Assim, estamos perenemente atemorizados pelo julgamento dos homens. Só podemos esperar misericórdia na medida em que nossa misericórdia nos prepara para imitar a divina. Estamos em pleno âmbito secreto da Graça e do amor pleno.
Justiça divina e misericórdia
Há um trecho de Blaise Pascal que, apesar do exagero agostiniano, traz luzes para a compreensão do nexo entre justiça divina e misericórdia. “Como as duas fontes de nossos pecados são o orgulho e a preguiça, Deus nos mostrou duas qualidades suas para nos curar: misericórdia e justiça. O próprio da justiça é abater o orgulho, por mais santas que sejam as obras: et non intres in judicium, etc., e o próprio da misericórdia é combater a preguiça convidando para as boas obras, segundo a passagem: a misericórdia divina convida à penitência, e esta outra dos Ninivitas: façamos penitência para ver se por ventura Ele terá piedade de nós.”
Pascal, no trecho mencionado, alude ao rito dos mortos quando a Igreja pede misericórdia em favor do falecido. E trata-se do Salmo 143, onde muito provavelmente Davi mostra desespero pela contenda com Absalão, uma tragédia familiar ligada ao poder. O fim do verso, silenciado por Pascal, é taxativo: “pois frente a ti nenhum vivente é justo” (na edição brasileira da Bíblia de Jerusalém). O trecho sobre Ninive e a misericórdia do Senhor, também trazido à lembrança pelo filósofo, é mais do que estratégico. O maior pecado contra a graça divina é o orgulho, apanágio de Satan (ainda recordo o Paraíso Perdido), a misericórdia é inesgotável, gratuita. Tal certeza é posta no Apocalipse: “Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim; e a quem tem sede eu darei gratuitamente da fonte da água viva. O vencedor receberá esta herança, e eu serei seu Deus e ele será meu filho”. O perdão humano guarda o medo de todos contra todos. O divino jorra, grátis, para quem se alimentou da misericórdia e tentou praticá-la plenamente. O perdão pode ser interesseiro, mesquinho, oportunista, coisas que a misericórdia jamais será.
Perdão em Spinoza
Se existe pensador que não aceita o conceito de perdão, Spinoza é um deles . Mas seja para manter o ambiente de concórdia civil ou dar um exemplo de vida pacífica, o Tratado Teológico Político (capítulo XIV) ao discutir a fé estabelece como base da mesma a certeza de que Deus é soberanamente bom e misericordioso, modelo de vida verdadeira (Deum, hoc est ens supremum, summe justum, & misericordem, sive verae vitae exemplar existere).
Além disso, Deus perdoa todas as faltas dos que se arrependem. Com efeito, continua Spinoza, “ninguém pode evitar situações de pecado num instante qualquer da vida. Se não fosse definido o perdão divino, todos desesperariam da salvação e não veriam motivo algum para acreditar na misericórdia divina. (…) Admitamos, pelo contrário, que alguém creia firmemente que Deus, na sua misericórdia e em virtude de sua graça cujo reino se estende a tudo, seja disposto a perdoar os pecados. Tal pessoa que por semelhante razão ama Deus mais ardentemente ainda, conhece de modo verdadeiro o Cristo segundo o Espírito e podemos dizer que o Cristo está nela”.
O princípio da vida política, portanto, se falamos de cristãos, é a misericórdia divina, da qual brota o perdão que permite o convívio.
IHU On-Line - Qual é a importância do perdão e da misericórdia para a Modernidade e quais são os principais limites para que eles se concretizem?
Roberto Romano - O perdão é um modo de ajustar comportamentos hostis, mas cuja eficácia é incerta. Ele pode resolver pendências beligerantes na sociedade e no Estado, e também impulsiona tratos internacionais menos dominados pela força física e mais pela diplomacia. O perdão a todo instante pode se transformar em vingança, perseguição mútua de indivíduos, grupos, partidos, países, religiões. O maior obstáculo para o perdão se encontra na violência orgulhosa e justiceira de setores, crentes ou laicos, que se imaginam donos do verdadeiro, do bem e do belo.
Em plano micrológico, trata-se do comportamento notável em sacristias onde beatos batem no peito e, de maneira farisaica, cobram retidão absoluta dos semelhantes, sem notar que sua inflexibilidade gera malefícios sociais, políticos, econômicos, religiosos. Tal comportamento de sacristia, justiceiro por definição, se reforça em movimentos mais amplos que usam a fé como arma assassina. Por orgulho atroz, os que o praticam se colocam como se deuses fossem, mas sem a misericórdia, guardando apenas o que entendem como justiça, a partir do metro estabelecido pelo seu delírio sectário. Eles agem como se fossem mensageiros do ser divino, dele esquecendo a graça e a misericórdia. Tal atitude mental encontra-se nos vários fundamentalismos que assolam a humanidade, fundamentalismos supostamente islâmicos, católicos, protestantes.
A não escuta ecumênica
Um sinal da hegemonia de semelhante mentalidade encontra-se naqueles setores, quando se levantam contra a própria ideia de ecumenismo. Como se arrogam a posse da Palavra e do ser divinos, não admitem que os outros tenham alguma razão e justificativa para adorar Deus de certo modo e não como eles querem. Daí para o terror político estamos a um passo. Quando as execuções ocorrem, como infelizmente acontecem por obra do Estado Islâmico inclusive contra os cristãos, aumenta o veto dos não islâmicos à fé muçulmana. Aí, é fácil ouvir reclamos de todas as seitas, xiitas ou sunitas, de que sua religião não é respeitada. Mas se colocam a justiça divina, tal como a concebem, acima da misericórdia, como adquirir respeito em vez de repulsa?
Fazer da guerra um instrumento de conversão forçada vai contra o coração, sede da misericórdia. E vai também contra a experiência medieval e da modernidade iniciante dos próprios muçulmanos. O padre Joseph Lecler S.J. tem uma nota séria sobre o assunto. “Não é para converter o mundo que o Islã partiu em guerra, mas para o sujeitar ao poder dos fiéis.” Desde as origens as noções de conquista e conversão foram cuidadosamente distinguidas pelos generais e doutores muçulmanos e cristãos. A conquista visa dominar o país, não o fazer muçulmano ou cristão.
O domínio político não queria dizer imediatamente assimilação religiosa obrigatória dos vencidos. É certo que tanto nas Cruzadas quanto na Jihad existiram momentos de conversão forçada. Mas o caráter geral de ambas não é aquele. Elas visam ampliar a soberania. Ambos, cristianismo e islamismo, possuem em comum o estreito vínculo entre religião e política. O que ambos precisam enquanto mando político é de impostos para manter e aumentar seu poderio.
No caso dos muçulmanos medievais, não era lucrativo o aumento de convertidos, pois os não fiéis (mas dihiminis, povos do Livro como os cristãos, judeus, zoroastristas) deviam pagar taxa (jizyah) para sustentar o poderio dos líderes islâmicos. A rigorosa distinção entre o plano religioso e o político permitiu, nos reinos árabes hispânicos, o convívio de judeus, muçulmanos, cristãos.
Ausência de misericórdia e perdão
O que assistimos hoje, com o Estado Islâmico e outros agrupamentos guerreiros — vários mantidos por um país reacionário que recebe apoio incondicional dos EUA e de potências ocidentais, a Arábia Saudita — é muito diferente do Islã histórico. Em tais movimentos são valorizadas a conversão e a apostasia cristã feita à força, a degola dos que pensam e agem diferente deles, a total ausência de misericórdia e perdão. Com certeza tal modo de existir está longe do ser divino e da vida abundante. Só o ponto mostra a relevância do perdão em nossos dias. Seitas terroristas ignoram o perdão e distribuem sua justiça impiedosa em nome do ser supremo. Resulta a desolação das terras e das gentes, como ocorre na infeliz Síria.
Dívidas para com o pai
Santo Tomás de Aquino mostra toda sua atualidade ao comentar o Pai Nosso, especialmente quando fala de nossas dívidas para com o Pai. A dívida é quádrupla, afirma o santo. Em primeiro nós devemos a honra a Deus, algo que consiste em três elementos: nossos deveres para com Deus, nossos deveres para conosco, nossos deveres para com o próximo. Além disso, para bem honrar, devemos imitar o ser divino (debemus ei imitationem, quia pater est). Tal mimesis exige que tenhamos amor e misericórdia, que devem se mostrar em obras. Depois vem a perfeição.
Note-se que São Tomás insiste no título divino. Ele não é “meu” Pai, mas “nosso”, o que determina deveres para com o próximo. Tal observação é renovada no comentário do trecho “perdoai as nossas dívidas, como perdoamos os nossos devedores”. Para conseguir o perdão divino precisamos perdoar “os nossos” devedores. Quem pede não é um indivíduo isolado, quem recebe o perdão também não é solitário. Quem reza “assim como nós perdoamos” e não tem no coração o intento de perdoar, mente. Mesmo assim, ele não está dispensado de dizer “como nós perdoamos nossos devedores”. Se ele enuncia tal frase, não mente porque “non orat in persona sua, sed Ecclesiae, quae non decipitur: et ideo ponitur ipsa petitio in plurali” (não reza em seu nome, mas em nome da Igreja que não se engana. É por semelhante motivo que o pedido é expresso no plural).
Após tantos séculos de individualismo liberal, algo que contaminou a Igreja, reconforta a leitura comunitária de São Tomás. Ela orienta o sentido coletivo do perdão e da misericórdia. O perdão e a mimesis da misericórdia divina permitem a síntese dos opostos sociais, políticos, doutrinários. Sem eles, temos a guerra perene, a quebra da vida civil, o desrespeito à lei, a violência contra os fracos. É o panorama tremendo que verificamos nas relações internacionais e no interior de muitos países.
IHU On-Line - Em um mundo no qual cresce a intolerância, a perseguição, os ódios étnicos, qual é o papel da misericórdia?
Roberto Romano - A misericórdia não tem um papel apenas, visto que ela orienta todos os planos da vida humana, coletiva ou individual. Longe dela edificamos o pandemônio na terra. A misericórdia, graça divina, alimenta nossos corpos e almas, dá-nos alento para ampliar a força da existência na terra. Sem ela, reina sobre o planeta a sombra de Lúcifer, a morte de milhões.
Porque muito se intelectualizou a fé, estamos perdendo a capacidade de receber humildemente a misericórdia, caímos no orgulho mais primitivo e truculento. A misericórdia divina se torna a cada passo imperceptível entre nós, o que diminui a força para a mimetizar e depurar nossas paixões. Sem perceber a misericórdia divina, se enfraquece nossa capacidade de Christomimesis, o que nos faz pequenos, mesquinhos, raivosos, ressentidos, diabólicos.
IHU On-Line - Por que o relativismo fere tanto a humanidade? Como consequência, qual é a importância da misericórdia num mundo relativista?
Roberto Romano - O relativismo é um retorno ao estado de natureza, onde não existe verdadeiro ou falso, bem ou mal, belo ou feio. Ele acolhe a lei da sobrevivência à custa dos outros. Tanto faz matar ou roubar um semelhante, pois, inclusive, a noção de ser igual ou semelhante desaparece. Vale o que serve como instrumento para satisfazer as minhas necessidades, ou as do meu grupo. Some qualquer traço objetivo, tudo se regula pelo meu desejo e consciência.
Tenho dúvidas se o mundo se tornou completamente relativista. Para começar, a ciência não pratica tal dogma, pois se pauta pela busca do mensurável, observável, controlável. Idem a técnica. O campo do relativismo por excelência é a política, a economia neoliberal, a ideologia. Com as premissas do relativismo, não tem sentido falar em crime, atentados às pessoas, dignidade humana. O egoísmo define elos entre… egoístas. E, por definição, nenhuma sociedade pode existir se os apelos imediatos da egoidade superam absolutamente os nexos entre indivíduos, famílias, países.
Os resultados do relativismo surgem em crises gerais das sociedades, como ocorreu na quebra da Bolsa em 1929 , na crise financeira recente dos EUA e do mundo. Para se ter ideia do vínculo entre relativismo, sobretudo ético, e as comoções que abalam mercados e sociedades, basta assistir ao excelente documentário “Inside Job”, no qual acadêmicos importantes não mostram nenhuma vergonha ao ganhar dinheiro com a destruição somática e espiritual de milhões.
IHU On-Line - Somos verdadeiramente livres e, portanto, responsáveis pelo bem e pelo mal cometidos? Nesse contexto, como podemos compreender a misericórdia e o perdão?
Roberto Romano - Bem, aí a pergunta conduz para o oceano sem fundo dos debates sobre o livre arbítrio, a liberdade, determinismo, etc. Quando citei Spinoza, por exemplo, a referência é a um filósofo que não aceita o livre arbítrio, como, aliás, por outros motivos, também não o aceitam Lutero, Pascal, Hobbes, Diderot, etc. Importa que muitos autores não deixam de procurar, de um modo ou de outro, formas para designar o bem e o mal, o certo e o errado, o ético e o antiético.
Eles entendem que, segundo a fé dos crentes, deve existir perdão e misericórdia. E aceitam tal ponto para garantir o convívio entre os entes humanos. Se é apenas tática política daqueles teóricos, artifício para fazer ignorar o mal (como defende Leo Strauss), ou se admitem o perdão e a misericórdia acreditando que eles ajudam a suportar o nosso vizinho, é um assunto complicado na história da filosofia.
IHU On-Line - Que nexos podem ser estabelecidos entre a misericórdia, o perdão e a filosofia política em nosso tempo?
Roberto Romano - Após os regimes totalitários, nos quais a justiça foi uma farsa que serviu para esmagar povos aos milhões, o desafio do perdão aumentou de maneira exponencial. Como perdoar juízes que aplicavam leis como as raciais impostas pelo nazismo? Como perdoar juízes e promotores que protagonizaram espetáculos obscenos como nos Processos de Moscou? Como perdoar Treblinka, Auschwitz, Gulag e os campos da morte no Camboja? Como perdoar a morte de milhões durante o “Grande Salto à Frente” liderado por Mao Tsé-Tung?
Em nosso continente, como perdoar as ditaduras no Chile, na Argentina, na Bolívia, no Paraguai no Uruguai e no Brasil? Como perdoar Salazar e Franco , como perdoar os coronéis gregos, os que impuseram o Apartheid na África do Sul? O bispo Desmond Tutu deu algumas indicações preciosas, mas infelizmente de pouco fôlego. Como perdoar o golpe contra Mossadegh no Irã e a entronização do sanguinário Pavlev? Como, de outro lado, perdoar os atentados do 11 de setembro nos EUA? E agora em outra reviravolta, como perdoar as torturas autorizadas em Guantánamo?
A Igreja de olhos fechados
Como disse acima, a sombra de Satã cobriu o século XX e nem sempre as igrejas souberam lutar contra o demônio à altura. Como perdoar a Concordata de Império entre o Vaticano e Hitler , que Pio XI tentou justificar numa Encíclica tremenda, justamente quando os ares pestilentos do nazismo sufocavam a vida cristã na Europa? Estou me referindo, claro, ao documento ao mesmo tempo corajoso e prova do pecado cristão, a Mit Brennender Sorge. A Concordata, explica o pontífice o inexplicável, veio “para assegurar à Alemanha a liberdade da missão beneficente da Igreja e a cura e salvação das almas”. O Vaticano ignorava quem eram os nazistas? Pouco antes de sua morte, o mesmo pontífice preparou outra Encíclica denunciando os procedimentos racistas de Hitler e seus asseclas. Ela não foi publicada. Mas uma instituição com profundos saberes diplomáticos e também encarregada de pregar o convívio caridoso entre os homens poderia ignorar a natureza do nazismo? Como perdoar tal passo? E como perdoar o abraço de João Paulo II em Pinochet, no mesmo instante em que uma jovem queimada pela tortura foi ignorada na porta do palácio presidencial chileno? O episódio é narrado por Marco Politi e Bernstein em sua biografia do pontífice.
Como perdoar o realismo de uma instituição que herdou o trabalho do Cristo, o de ser crítica do poder político? “Vade Satana: Scriptum est enim: Dominum Deum tuum adorabis, et illi soli servies” (Mateus, 4:10). Como perdoar se em vez de Jesus muitos bispos na Alemanha, na França, na Itália, na América do Sul ouviram o Grande Inquisidor? Sim, tivemos os bravos Romeros, Câmaras, Arns, Casaldáligas, Balduinos. Mas eles foram um pequeno grupo profético, como ocorreu na Alemanha nazista com bispos como Preysing, Frings, von Galen, os quais honram a Igreja na exata medida em que cardeais como Innitzer da Áustria a envergonham diante da Humanidade e do Altíssimo. Um escritor agnóstico do século XIX dizia o seguinte: “a Igreja é mesmo divina, caso contrário os homens já a teriam destruído”. A nossa crença é que “tu es Petrus, et super hanc petram ædificabo Ecclesiam meam, et portæ inferi non prævalebunt adversus eam”. Os hierarcas que negligenciaram tais sentenças teriam perdão?
Filosofia política
A filosofia política não pode escapar do abismo cruel aberto pelos totalitarismos e deve ajuizar, com prudência e serenidade é certo, o alcance e a profundidade de tais políticas no sentido de desnaturar os entes humanos. O totalitarismo ainda mostra frutos venenosos na Europa com o antissemitismo, o racismo, a recusa de imigrantes. O totalitarismo não morreu, ele dormita. E cabe aos cristãos, agora, lutar contra ele em nome de Jesus.
IHU On-Line - Qual é o significado do Jubileu da Misericórdia para a Igreja hoje e para a sociedade que a acolhe?
Roberto Romano - Não tenho certeza de que a sociedade — por exemplo a brasileira, na qual não existe perdão ou misericórdia para os pobres — acolherá o Jubileu. Os presídios brasileiros mostram a consciência infernal e impiedosa dos nossos líderes políticos, judiciais, religiosos. Mesmo aqui, no entanto, aquele evento poderá trazer a metanoia que modificará o comportamento pouco cristão imperante entre nós. Num mundo à beira da fome, das doenças, catástrofes, guerras, fanatismos, indiferença, corrupção, o apelo da Igreja pela misericórdia é uma onda de oxigênio contra a intoxicação do ódio. Depois dele, os impenitentes serão ainda mais culpados diante de Deus e dos homens. E, talvez, percam a oportunidade única do perdão.
IHU On-Line - As matrizes do mundo ocidental estão assentadas sobre compreensões que mencionam a “guerra de todos contra todos” (Hobbes), a “luta pela sobrevivência” (Darwin) e a “vontade de poder” (Nietzsche) . Para além das apreensões equivocadas de tais conceitos, quais são os tensionamentos que surgem para a construção de uma cultura da paz e, portanto, da misericórdia?
Roberto Romano - Aqueles pensadores escrevem do mundo para o mundo. Os que têm fé em Cristo aceitam o enunciado de João: “Sic enim Deus dilexit mundum, ut Filium suum unigenitum daret: ut omnis qui credit in eum, non pereat, sed habeat vitam æternam. Non enim misit Deus Filium suum in mundum, ut judicet mundum, sed ut salvetur mundus per ipsum”. ("Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único, para que não morra quem nele acredita, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o seu Filho para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por meio dele" João, 3, 16-17 - Nota da IHU On-Line).
Em Hobbes, Darwin, Nietzsche há uma percepção do mundo sem Deus. Eles teorizam com os dados trazidos pelos homens que, desde a Queda, são assassinos e lobos uns dos outros. Mas o mal que eles podem causar é pequeno perto dos contratestemunhos dos que batem no peito e afirmam seguir os mandamentos divinos.
Desde Erasmo de Rotterdam a Igreja conta com pensadores que lutaram por uma cultura de paz, sem fanatismos e dissimulações. Reler hoje em dia a Querela pacis de Erasmo vale mais do que expor críticas aos filósofos ateus ou agnósticos. Eles resultam de um mundo odioso, maltratado por quem deveria semear trigo e não o joio, ou seja, os cristãos.
IHU On-Line - Em que medida praticar a misericórdia se aproxima de uma das formulações do imperativo categórico kantiano de tratar as pessoas sempre como um fim em si mesmas, e nunca como um meio?
Roberto Romano - Tenho a opinião de que se existe enunciado que não deixa lugar algum para a misericórdia, o Imperativo categórico kantiano é um deles. O “du sollst” é impiedoso, frio e justiceiro, de uma justiça sem apego aos Evangelhos. Entre a justiça humana e a misericórdia divina, Kant escolheu a primeira. Se desaparece a justiça, diz ele, não há mais nenhum valor no fato de os homens viverem sobre a terra. O imperativo categórico serviu como guilhotina intelectual para cortar o divino misericordioso. Penso como Péguy: “o kantismo tem as mãos puras; por infelicidade ele não tem mãos”.
Por Márcia Junges | Edição João Vitor Santos