segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Roberto Romano TV Unicamp, Manisfestações de Junho/2013


 http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/10/31/roberto-romano-fala-sobre-os-indignados-de-junho-no-programa-palavras-cruzadas

 

Roberto Romano fala sobre ‘Os indignados
de junho’ no programa Palavras Cruzadas

31/10/2013 - 06:40

Roberto Romano e Marcus Vinicius Ozores

Vai ao ar neste domingo (3), às 22 horas, no canal Universitário, o canal 10 da Net, mais um programa inédito da série Palavras Cruzadas, produzido pela Rádio e Televisão Unicamp (RTV). O tema desta semana é ‘Os indignados de junho’. O mês de junho de 2013 ficará marcado na história do Brasil. Num mesmo dia, em cerca de 350 cidades do país, mais de um milhão de pessoas fizeram passeatas contra o aumento das tarifas de ônibus. Esse fenômeno, convocado via redes sociais, ficou conhecido como Movimento do Passe Livre. Na esteira dele, os Black Blocs, movimento anarquista que, infiltrado nas passeatas, acabou causando danos a patrimônios públicos e privados, além do confronto direto com a polícia.

Para explicar esses fenômenos, o jornalista Marcus Vinicius Ozores conversou com Roberto Romano, filósofo e docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). Palavras Cruzadas vai ao ar em horários alternados durante a semana. Consulte a programação no site www.rtv.unicamp.br.

No instante em que a ideologia conservadora, seminário dos fascismos, renasce no Brasil com novo nome de batismo (direita liberal...), acho que vale a pena retomar o que escrevi no artigo abaixo, sobre o reacionarismo e suas bases doutrinárias. Em muitos articulistas e blogueiros da direita nacional, hoje, são retomados os slogans de Joseph De Maistre, Donoso Cortés, etc. Como a esquerda é pouco erudita no assunto, pensa que os textos foram imaginados pelos ditos direitistas. Mas os ataques à democracia são por eles apenas reproduzidos, pois têm longa data, eles foram fabricados na contra revolução do século 19, que alimentou os discursos ditatoriais do século 20.

O Pensamento Conservador. 

Revista de Sociologia Política.

Roberto Romano


“Quando falamos de um pensamento político, devemos lembrar as consciências onde um dia ele tornar-se-á princípio inquestionável, norteando a vida e a morte. O estudo sobre as multidões torna-se cada vez mais premente, sobretudo quando investigamos a violência racista e a injustiça social, garantidas pelos meios de imposição persuasiva de grande alcance, abarcando homens e mulheres que se entrechocam nos vários cantos terrestres.Nesse campo, suscita interesse cada vez maior interesse o lúcido Massa e poder de Elias Canetti (CANETTI, 1986). Neste monumento antropológico, filosófico, psicológico e político, encontra-se uma descrição rigorosa do comportamento massificado que domina um ou outro instante de nossa vida. Talvez em termos políticos tenhamos a coragem de nadar contra a corrente. Não raro, em plano individual nos distanciamos do juízo público. Cedo ou tarde sentimos a pressão da massa em nossas opções. Quando nos acostumamos à coragem de refletir, fugindo do lugar comum, nos envergonhamos das frases ditas para não sermos linchados, física ou espiritualmente, pelo grande número. Se vivemos em regime político de opressão, gradativamente repetimos lugares comuns e teses batidas pelos propagandistas. Raros dentre nós chegam ao fim de seus dias sem dobrar a espinha e a língua, desobedecendo os ditadores que decretam morticínios em nome do povo, divindade sedenta de sangue que possui mil faces e apelidos. Nós brasileiros, conhecemos alguns, como os adeptos do “ame-o ou deixe-o” ditatorial, os “fiscais do presidente”, “os descamisados” etc.

Elias Canetti apresenta o espírito moderno imerso nos ritmos e nos movimentos de massa. Sua obra prima foi gerada como réplica aos movimentos nazistas e fascistas que infernizaram o século vinte. Hoje, Canetti está morto, mas seu livro aí está, como advertência e como instrumento para a luta contra o neo-nazismo, o neo-fascismo, que pouco têm de “neo” e apresentam muito das ideologias genocidas aceitas pelas hordas cujo pensamento se reduziu à repetição maquinal dos slogans. Entre estes, um traz ressonâncias sinistras, neste momento: “Desperta Alemanha” (“Deutschland erwache”). No fundo da alma autoritária, na Alemanha ou no Brasil, tais gritos despertam ódios, mentiras, calúnias, perseguições. Não por acaso os propagandistas, mudando o senhor da hora, permanecem os mesmos. Com idênticas técnicas enganadoras.

Importa conhecer, com as massas e suas frases prontas e de sentido semanticamente restrito, os pensadores que produziram a fala que hoje se repete no rádio, na televisão, nas revistas, no cinema, no teatro, nos púlpitos e nas cátedras. Sigo ainda a sugestão de Elias Canetti, em outro livro seu, O território do homem (CANETTI, 1978) onde se analisa dois teóricos conservadores e autoritários. Refiro-me a Thomas Hobbes e a Joseph De Maistre. Canetti diz com propósito: os dois pensadores apresentam-nos o terrível. De Maistre, que escreveu contra a revolução e Hobbes, que previu os eventos revolucionários em sua terra, ambos tiveram medo, e investigaram as razões pelas quais os homens temem a natureza e os seus iguais. Ambos dedicaram sua vida ao estudo da guerra de todos contra todos. Suas doutrinas serviram aos senhores que aniquilaram milhões de almas, desde Napoleão até os militantes da suástica ou do Kmer vermelho.

Joseph De Maistre, indica Elias Canetti, possui força persuasiva imensa quando fala das guerras “providenciais” enviadas por Deus para castigo dos homens. Suas descrições dos conflitos armados são verdadeiras, apesar de ser o seu intento desiludir os que buscavam liberar o Estado moderno do jugo teológico-político.

Hobbes, situado na outra ponta do pensamento conservador, sem apelar para o divino na justificação do mando, também é admirado por Canetti, justo porque nele o poder aparece sem disfarces. Repito as suas próprias enunciações: Hobbes “é o único pensador que não esconde com um véu o poder, sua importância e seu peso, sua posição no centro de todas as ações humanas; ele também não o glorifica. [...] Ele sabe o que é o medo; seus cálculos o exorcizam [...] Ela não subestima o peso do Estado. Rousseau, perto dele, é só um garoto falastrão. [...] Sua incredulidade religiosa foi uma oportunidade incompatível: as promessas baratas não tinham influência alguma sobre seu medo. Ele não explica sua aversão pelo grito das massas. Mas o nota. [...] Maquiavel, de quem muito se fala, é só uma de suas metades, sua metade clássica. O Leviatã é considerado uma “Bíblia ideal”, na minha coleção de livros mais importantes, entre os quais, bem entendido, os livros de meus inimigos ocupam lugar de honra. Os livros de nossos inimigos agudizam nosso espírito, enquanto os outros o enfraquecem [...] Nem a Política de Aristóteles, nem o Príncipe de Maquiavel, nem muito menos O Contrato Social de Rousseau integram esta minha ‘Bíblia’ (CANETTI, 1978: 153-155).

Perdoando a exigência de Canetti, porque ele pode escolher com severidade entre os autores a serem tidos como exemplares, digamos que sua tese sobre os escritos de nossos adversários que devem ser lidos é estratégica para quem deseja um regime democrático. Em meu pequeno Conservadorismo romântico (ROMANO, 1981), discutindo o pensamento que ajudou a solidificar as tiranias modernas, com os sentimentos contra a ciência e a razão, eu advertia para a cegueira de se ler apenas os textos que confirmam o nosso modo de enxergar as coisas. Chega a ser cômica a atitude de professores e militantes, quando, em tom sectário, buscam preservar a virgindade ideológica de seus alunos ou companheiros, impedindo que eles consultem autores vistos como reacionários.
Canetti explora o símile da guerra, estrangeira ou civil, em Hobbes e De Maistre, indicando que os dois escritores constroem suas políticas para o controle dos homens. Escolho, nesta ocasião, outra imagem comum aos dois teóricos, a figura do estraçalhamento do corpo humano, algo a ser evitado, segundo Hobbes, mas servindo como advertência aos que acreditam na razão humana sem Deus, no entender de Joseph De Maistre.

Nas Soirées de Saint-Petersbourg De Maistre desenha a figura do carrasco. Solitário, ele espera o instante em que um político torpe, de preferência ministro de Estado, venha exigir os seus serviços. “Ele parte, chega à praça pública coberta pela massa amontoada e palpitante. Jogam-lhe nas mãos um envenenador, um parricida, um sacrílego: ele o toma, o estende, liga-o numa cruz horizontal, levanta o braço: faz-se então um silêncio horripilante e ouve-se apenas o ruído dos ossos que se quebram sob a barra, e os hurros da vítima. Ele a livra, carrega-a para uma roda de suplício: os membros quebrados unem-se nos raios, a cabeça pende, os cabelos se eriçam e a sua boca, aberta como fornalha, só envia por intervalos uma pequena quantidade de palavras sangrentas implorando a morte. Ele acabou o serviço, o seu coração bate, mas de contentamento. Ninguém suplicia melhor do que eu. Ele desce, estende a mão suja de sangue, e a justiça joga nela algumas peças de ouro que ele carrega através de uma dupla fila de homens cujos corpos se afastam, horrorizados. Ele, senta-se à mesa e come. No leito, a seguir, ele dorme. Amanhã, despertado, sonha em outra coisa bem diferente do que realizou na véspera. É um homem? Sim, é recebido por Deus nos seus templos, onde recebe permissão para rezar. Ele não é criminoso, mas nenhuma língua se permite dizer que ele é virtuoso, honesto, estimável etc. Nenhum elogio moral lhe convém, pois todos supõem relações com os homens, e isto ele não possui” (DE MAISTRE, 1960: 40).

Quem vive numa situação dominada pela violência e onde o linchamento é fato banal, saberá apreciar este retrato. Porque, caso oposto, seria preciso que os próprios governantes, ou então os soldados, matassem pessoas no cotidiano. Ambos, carrasco e soldados, matam com licitude. Mas o primeiro é coberto de opróbrio, enquanto o segundo recebe glórias. Caso o soldado matasse como seu colega de profissão, ele seria visto com o mesmo horror e medo. O mando repousa sobre estes dois pilares mortíferos. O poder manifesta a vontade divina, para a qual a ordem e o bem não correspondem à nossa inteligência, aos nossos fins. O cadafalso é um altar, lemos no mesmo livro.

Não se deve emitir gracejos sobre tais descrições de J. De Maistre. Quem se lembra dos campos de concentração, onde carrascos-militares cumpriram burocraticamente seu ofício, sabe a que realidade terrível ele se refere. O poder, segundo esta vertente conservadora, se almeja evitar que toda a sociedade se estraçalhe isto teria ocorrido durante o Terror jacobino deve estraçalhar, como se fosse a mão divina, homens inocentes ou culpados, pouco importa. Fundamental é a hierarquia e a ordem na sociedade, garantidas pelo Estado. Deste último não se espera “justiça” ou “bondade”, mas que impeça o delírio filosófico dos democratas, cujos resultados teriam sido a indisciplina e o caos.

No outro lado temos Hobbes. Nele, também encontramos a figura do despedaçamento. O povo, lemos no capítulo 12 do rigoroso De cive, faz como as filhas estultas de Eson. Estas últimas, aconselhadas por Medéia, cortaram seu pai em pedacinhos, colocando-o para cozinhar. Tal imagem exemplifica o pensamento conservador de Hobbes. A res publica é como o velho Eson. Se a massa a quer reformar, seguindo sofistas e demagogos, acaba estraçalhando o que era um todo adquirido de forma artificial pela ciência e pela técnica. A demagogia, desde os primeiros inícios do Estado antigo, diz Hobbes, sempre aproveitou a raiva dos pobres, dizendo-lhes que a culpa de sua miséria seria localizável nos governantes, e não em sua própria preguiça ou prodigalidade (HOBBES, 1982). É bem conhecido, continua Hobbes: quem imagina ter sobre suas costas os fardos da república, como os impostos, sem vantagens, inclina-se à sedição.

Além desta miséria material, existe a sede de honra, partilhada por todos os homens. A massa é tola. Disfarçados, em seu interior, os espertos e ambiciosos manipulam sua opinião auto-indulgente (a massa, na fala dos demagogos, nunca erra, sempre escolhe bem, é infalível, desde que apóie sua causa quando eles se candidatam aos cargos de mando) com os cantos de sereia, ou com a retórica de Medéia. Tudo vai mal? Então destruamos o Estado, par rejuvenescê-lo, nele introduzindo a justiça perfeita.

Não por acaso essas imagens do estraçalhamento, o carrasco e as filhas de Eson, aparecem nestes pensadores do conservantismo europeu moderno. Hobbes quis impedir que a res publica se esfacelasse, propondo uma doutrina onde o povo não conta. Como os pensadores clássicos do século 17, ele opõe o povo ao vulgo. Esta distinção encontra-se mesmo em Hegel. Basta reler as considerações da Filosofia do direito (HEGEL, 1975: 318) sobre a opinião pública. É preciso, segundo Hobbes, produzir o Estado de maneira artificial, enquanto máquina que impede os homens de se entre-devorarem na busca de riqueza e honra, ou nas chacinas efetivadas pelo gozo de mandar. O vulgo rebelde serve como instrumento monstruoso nas mãos dos que o enganam visando impor o mando de facções.

Joseph De Maistre escreve muito tempo após Hobbes. Quando a Revolução Francesa entrou em refluxo, seus escritos tornaram-se importantes na Europa. A força dos governantes deve ser absoluta, pensava J. De Maistre, porque ela tem como fonte a vontade divina. A força dos governantes deve ser absoluta, afirmara Hobbes, porque só os príncipes possuem soberania e saber para aplicá-la racionalmente. Entre estas duas fórmulas distintas, instalou-se o pensamento liberal e as representações democráticas que, nas Luzes, conheceram o seu apogeu. Também nelas definiu-se o ideal de cidadania democrática que hoje disputa, com o pensamento conservador, as preferências dos intelectuais e das massas.

A diferença entre Hobbes e a época das Luzes, esta última com suas esperanças pedagógicas – sua confiança na razão e na liberdade – pode ser notada na atitude de Dideroot, o pai da Enciclopédia, diante da mesma fábula de Eson decepado por suas filhas. Em Hobbes a história (que encontramos nas Metamorfoses de Ovídio, no livro 7), indicaria que o povo, com as filhas de Eson, destrói a república. Diderot enxerga no texto uma outra moral: o despedaçamento dá certo, Eson rejuvenesce. Em Hobbes, a saúde do corpo sócio-político exclui o conflito e a idéia ou prática de um povo soberano. Depois do pacto, este é um conceito subversivo, pensa Hobbes, condenando a eloqüência, por ele definida como demagogia e sofística. Diderot exalta a oratória. Ela deslancharia a resistência legítima ao poderoso tirânico e arbitrário. A rebelião é recurso dos povos contra os soberanos que romperam o contrato social separando “os seus interesses pessoais do interesse da sociedade”. Há um excelente trabalho sobre estes problemas, escrito por Gianluigi Goggi (Cf. GOGGI, 1985: 173).

As primeiras linhas da “Epístola Dedicatória”, no De cive, mostram os cidadãos romanos como lobos vorazes que destroem os outros povos, vivendo, como os reis, de rapina. Diderot inverteu esta imagem, acompanhando o juízo de Catão repetido por Plutarco: zôon ô basileus, sarcophagon estin. Esta é uma referência clássica à face violenta do rei devorador de seu povo, na qual retoma-se o libelo de Aquiles contra Agamenon. Como lembra Erasmo de Roterdam (ERASMO, 1980: 130-131) esta frase pode aproximar-se daquela outra, escrita por Hesíodo, mencionando o rei como “devorador de presentes”. O próprio Erasmo acentua: melhor seria dizer que o rei é devorador de tudo.

Todas essas inversões fazem lembrar que o século 18, leitor do pensamento greco-latino, soube apanhar, como Diderot e outros, a essência da teoria hobbesiana conservadora. Diderot inverteu o nome do verdadeiro estraçalhador da república. Não o povo, mas o governante tirânico é quem arrasa a vida estatal e societária. O direito à auto-consciência — mas tarde chamado “direito do cidadão” — sobrepõe-se no século das Luzes, à raison d’État. Com o fim da Revolução Francesa, na Contra-Revolução romântica, exemplificada por De Maistre entre outros, volta o elogio do soberano contra o povo, proibindo o direito de crítica, de rebelião e de reforma do Estado “a partir de baixo”.

Chegamos ao essencial na política conservadora. Hobbes ou De Maistre, com seus êmulos do século 19 e 20, consideram que o povo não é soberano, ele apenas suporta a soberania. Basta ler o arqui-conservador Donoso Cortés. Em sua lição de direito político (29 de novembro, 1836) aquele doutrinário afirma-se contra a soberania popular. “A soberania de direito”, afirma ele, “é una e indivisível. Se ela é própria do homem, ela não pertence a Deus. Se está localizada na sociedade, não existe no céu. A soberania popular, pois, é ateísmo e se o ateísmo pode introduzir-se na filosofia sem transformar o mundo, ele não pode introduzir-se na sociedade sem feri-la com a paralisação e a morte. O soberano possui a onipotência social. Todos os direitos são seus, porque se houvesse um só direito que não estivesse nele, não seria onipotente e, não o sendo, não seria soberano. Pela mesma razão, todas as obrigações estão fora dele, porque, se ele tivesse alguma obrigação a cumprir, seria súdito. Soberano é o que manda [eu sublinho, RR], súdito o que obedece. Soberano é o que tem direitos, súdito o que cumpre obrigações. Assim, o princípio da soberania popular é ateu e tirânico, porque onde há um súdito que não possui direitos e um soberano que não tem obrigações há tirania”.
Sainte Beuve diz, em algum lugar, que se retirarmos Deus de Pascal, teremos a doutrina hobbesiana inteira. Algo parecido ocorre com as relações entre Donoso Cortés e Hobbes. Na mesma lição citada, Donoso aponta o autor do Leviatã e do De cive como a grande muralha contra a doutrina da soberania popular. A soberania de direito divino conhecia, diz Cortéz, alguns limites. “mas a soberania definida por Hobbes nega toda limitação para si mesma. Segundo ele, Deus não existe e o povo, desde o instante em que abre mão de seus direitos, faz-se escravo. Inflexivelmente lógico, Hobbes nega ao povo o direito de resistência à opressão, mesmo a mais delirante e absurda” (CORTÉZ, 1970: 342-347).

As massas, diz nosso doutrinário em outro lugar (“De la monarquia absoluta en Espana”, 1838) “carecem de unidade, de previsão, de concerto, só a iminência do perigo pode obrigá-las a se reagrupar ao redor de uma bandeira. Quando passa o perigo, decai o entusiasmo, a unidade conjuntural formada pelo entusiasmo se atenua e se fraciona [...] Quando se extingue o entusiasmo, o povo deixa de ser uma realidade para ser apenas um nome sonoro. Na sociedade, então, só existem interesses que se combatem, princípios que lutam entre si, ambições que se excluem e individualidades que se chocam”.

O povo é existência fugaz que não possui estabilidade, logo, não garante nenhuma soberania. Sem esta última, não existe poder (Soberano é o que manda, lembremos desta definição dada por Donoso, estratégica nas doutrinas sobre a soberania no século 20, especialmente nas jurisprudências próximas ao nazismo), sem poder, desaparecem os vínculos sociais. Para o pensamento conservador, a soberania popular é o perigo e o grande vício do liberalismo e das Luzes democráticas. “Povo” é nome enganador, quando posto na boca dos que nele depositam esperanças, afirma Donoso Cortés, em texto escrito entre 1851 e 1853 (“Despachos desde Paris”).

“Em geral”, declara Cortés, “os povos recusam o poder que lhes é pedido e confirmam o poder que lhes é tomado. O que sei é que para a França só existe salvação na ditadura. Nela, não há ditadura possível ou pelo menos provável, se não vem do povo e não se apóia no povo. Todo poder ditatorial ou real que só busque apoio nas classes acomodadas é um poder perdido”. No autor do “Discurso sobre a ditadura”, não estranha encontrarmos, neste pseudo elogio do povo, a crítica mais virulenta ao Estado de direito moderno. Quem deseja pautar o poder através da Constituição é um fraco, perdido antes de sabê-lo. “O governo das classes vencidas é o constitucional, o das vencedoras foi, é, será perpetuamente a monarquia civil ou a ditadura militar. Nunca os povos obedeceram gostosamente alguém que não fosse um ditador ou rei absoluto”.

“Soberano é o que manda”. Na pena de Cortés, os democráticos e liberais são gente que discute sem decidir. Quando percebe esta indecisão perpétua o povo joga-se nos braços dos poderosos, dos que são vencedores, fugindo dos vencidos. Esta forma de pensar une todos os reacionários do século anterior e do nosso tempo. Permitam-me citar um trecho de meu Conservadorismo romântico, sobre este ponto. Segundo Novalis, há uma diferença radical entre monarca e súditos. O rei é verticalmente superior aos homens rasos. Enquanto todo cidadão é “um funcionário do Estado”, o rei “não é um cidadão, logo, não é um funcionário. O sinal distintivo da monarquia, é que ela repousa na crença em um homem superior [...] o rei é um homem erigido em fatalidade terrestre”.

O rei é eleito por seu nascimento, não está restrito a nada que não seja a expressão direta de sua natureza. Contra os “infelizes filistinos” que, nas Assembléias francesas, quiseram impor uma Constituição ao rei, Novalis responde: “sou um homem profundamente antijurídico”. Constituições escritas são artificiais, produzidas pela reunião, discussão e contrato entre inferiores (ROMANO, 1981: 152). A soberania popular é afastada também por De Bonald, outro pai do pensamento conservador moderno. “O direito do povo a governar a si próprio é um desafio contra toda verdade. A verdade é que o povo tem o direito de ser governado” (GODECHOT, 1961). Novalis disse a coisa com todas as letras, sem mascar as palavras, para usarmos a expressão francesa: “O povo é como uma criança, um problema individual, pedagógico”. Esta sinceridade bruta ataca a essência das Luzes modernas, para as quais, seguindo I. Kant, a maioridade é nossa meta e labor.

Neste plano, pode-se apontar um traço conservador fortíssimo no pensamento de Hegel, filósofo ora visto como liberal, ora como pai do totalitarismo. Hegel assumiu a mesma recusa dos conservadores diante da soberania popular, especialmente na Filosofia do direito (Parágrafo 279, nota). A soberania pertence ao Estado. O conceito de soberania popular só é concreto neste todo. “Mas é opondo-a à soberania que reside no monarca que se colocou, em época recente, a falar de soberania popular. Vista nesta oposição, a dita soberania integra estes pensamentos confusos que têm por base uma representação grosseira do povo. Sem seu monarca e sem a organização que a ele se une necessária e imediatamente, o povo é a massa informe que não é mais um Estado…” (HEGEL, 1975: 259).

“Difficile est satiram non scribere”. Com esta frase, Hans Kelsen termina suas considerações críticas ao redor de algumas posições jurídicas alemãs, em seu tempo (KELSEN, 1989: 469). A frase irônica, desferida principalmente contra Ebers, pode ser endereçada a todos os pensadores, de J. De Maistre até Carl Schmitt, contrários às Luzes e à razão científica no cuidado das coisas políticas e jurídicas. O pensamento que herdou os pressupostos do século 18 liberal e democrático, bem como racionalista, busca, na trilha de Espinosa, a salvação da res publica no maior número de casos, deixando a exceção. Mesmo dessubstancializando o conceito de soberania, como em Kelsen, busca-se, nesta vertente, o que é normal, afastando-se a patologia do poder.

A força do ataque conservador está justo em acentuar a patologia do mando e a exceção política. Como vimos, Hobbes, De Maistre, Donoso Cortés sublinham a doença do corpo social para garantir, de múltiplos modos, a ditadura permanente do governante sobre (e contra) os governados. Nestas águas banharam-se Augusto Comte e outros teóricos que viram na idéia de soberania popular apenas um resquício da idade metafísica, o século 18 e a Revolução Francesa.

Edmund Burke enuncia o princípio de que o povo, a maioria, não é soberano, porque o governo difere de um problema aritmético. “Foi dito que 24 milhões devem prevalecer sobre 200 mil. Verdade, se a Constituição de um reino fosse um problema aritmético. [...] A vontade de muitos, e seu interesse, devem diferir com freqüência, e uma grande vontade será a diferença quando eles, os muitos, fazem uma escolha ruim” (BURKE, 1976: 141).

Voltemos a De Maistre. Evitei, até agora, citar seu texto principal, o famoso Du Pape. Mas lembremos sua doutrina sobre a soberania, apresentada no Livro 2 daquela obra. Como seria previsível, De Maistre, o autor da imagem sobre o carrasco, começa seus considerandos pela justiça. O homem reto não teme o soberano, o celerado sempre o teme. Mesmo que o príncipe seja dissoluto, ele tem a virtude de garantir a aplicação geral da lei. Ao tratar a origem da soberania, vemos que nosso autor rompe com todas as idéias modernas do contrato, desde os juristas protestantes, como Althusius, até Rousseau. “Sendo o homem necessariamente associado e necessariamente governado, sua vontade não conta para nada no estabelecimento do governo [eu sublinho, RR]; pois, uma vez que os povos não têm escolha e que a soberania não resulta diretamente da natureza humana, os soberanos não existem pela graça dos povos, a soberania não sendo a resultante de sua vontade, tanto quanto a própria sociedade”. Não existe soberano sem povo, assevera De Maistre, nem povo sem soberano. Mas o povo tem dívidas para com o soberano, ele “deve-lhe a existência social e todos os bens que dela resultam. O príncipe só deve ao povo um brilho ilusório que nada possui em comum com a felicidade e que dela o exclui mesmo quase para sempre”.

Inexiste soberania limitada, ou do povo. Existe soberania legítima ou não. “Dirão alguns: a soberania na `Inglaterra é limitada’, Nada é mais falso. Apenas a realeza é limitada naquela ilha célebre. Ora, a realeza não é toda a soberania, pelo menos teoricamente. Quando os três poderes, que, na Inglaterra, constituem a soberania, concordam, o que podem eles? É preciso responder, com Blackstone: TUDO. E o que se pode contra eles? NADA” (maiúsculas do próprio De Maistre) (DE MAISTRE, 1966: 122-137).

Um continuador explícito de Joseph De Maistre, Augusto Comte dele retirou lições de soberania conservadora. O resultado principal é a proposta de uma ditadura positivista, sem a intervenção dos parlamentos, e a instauração de um poder espiritual, com presença de intelectuais, sacerdotes da Humanidade, dirigindo as consciências da massa. Neste Estado, dasapareceria a noção de direito. “Todo direito humano é absurdo e imoral. Uma vez que não mais existem direitos divinos, esta noção deve apagar-se completamente” (COMTE, 1966: 237-238).

Ditadura por ditadura, cabe lembrar que Donoso Cortés já havia efetivado a “dedução” acima. O resultado é praticamente o mesmo: quem explica a operação é Carl Schmitt: “Desde 1848 a doutrina do direito público tornou-se positiva escondendo nesta palavra o seu embaraço: ou funda todo poder, mediante as mais diversas reconstruções, sobre o `poder constituinte’ do povo: isto é, no lugar da idéia monárquica de legitimidade entra a democrática. Neste ponto é incalculável na sua relevância o fato de que um dos maiores representantes do pensamento decisionista e filósofo do Estado católico, consciente de modo extremamente radical da essência metafísica de toda política, Donoso Cortés, diante da revolução de 1848, pudesse compreender que a época do realismo tive chegado ao fim. Não existe mais realismo, porque o rei não existe mais. Sequer existe uma legitimidade em sentido tradicional. Logo, só resta um resultado: a ditadura. É o mesmo resultado a que Hobbes chegou, procedendo na base da mesma conseqüência do pensamento decisionista, embora misturado com uma espécie de relativismo matemático. `Auctoritas, non veritas facit legem’” (SCHMITT, 1972: 73).

“Soberano é quem manda”. Este mote, produzido por Donoso Cortés, aninha-se na frase de Carl Schmitt, citada em todos os discursos, velados ou explícitos, que adotam a ditadura como solução para os impasses da vida pública: “Soberano, é quem decide sobre o Estado de exceção”. Este célebre “extremus necessitatus casus” tem sido bastante sublinhado na doutrina de Carl Schmitt (LOWITH, 1991: 16). Não por acaso, no mesmo número da revista Les Temps Modernes, que publica o texto de Lowith, podemos ler a tradução de importante escrito de Carl Schmitt sobre o Estado enquanto mecanismo em Hobbes e Descartes. Esta é uma característica estratégica do pensamento conservador: ele sabe buscar suas fontes e seus inimigos, não raro editando seus textos. Isto ocorreu com F. Tönnies, o maior estudioso de Hobbes, e seu editor, que levou anos de engenho para escrever uma refutação monumental de sua visão mecânica e dessacralizada, o que foi aproveitado de Hobbes nas Luzes democráticas. Refiro-me, naturalmente, ao clássico da sociologia romântica, Comunidade e sociedade. Mas vejamos o que diz Carl Schmitt sobre o Estado hobbesiano. Em primeiro lugar, o banal: o Estado, na perspectiva de Hobbes, é machina machinarum, o primeiro produto da era técnica. Mas é algo que vem antes, nas considerações de Schmitt sobre Hobbes que mais nos interessa: “na condição civil, estatal, todos os cidadãos têm segurança de sua existência física. A tranqüilidade, a segurança, a ordem, reinam. Como sabemos, isto é uma definição da polícia. O Estado moderno e a polícia nasceram ao mesmo tempo e a instituição essencial deste Estado de Segurança é a polícia”. O artigo de Schmitt é de 1937. Nesta época, as frases acima já apresentam ressonâncias terríveis para quem tivesse a ousadia de negar a legítima soberania do povo alemão e de seu Líder. É possível seguir este ponto num artigo também importante de André Doremus (DOREMUS, 1982: 585).

Em 1937 Schmitt publicou o trabalho nuclear para a compreensão do Estado totalitário, sendo este último termo de sua lavra na história da língua política. Refiro-me ao “Totaler Feind, totaler Krieg, totaler Staat”, republicado em 1940. Em carta a Jean-Pierre Faye, escrita no dia 31 de agosto de 1963, Carl Schmitt indica sua atitude na época: “Sob a impressão de uma dissolução [eu sublinho, RR], irresistível das diferenças e dos limites tradicionais num direito dos povos, e da mesma dissolução das diferenças no terreno do direito constitucional e estatal (como Estado e Sociedade, Estado e economia, política e cultura etc…) surgiu a fórmula do Estado total, mas como pura análise da realidade e sem nenhum interesse ideológico … não orientada em sentido fascista”. Como diria Kelsen, difícil não satirizar… (FAYE, 1974: 61-62).

O que é “conservador”? O medo de que a população estrague a festa do poder, destruindo a segurança, a propriedade, os vínculos da tradição, as inovações técnicas que só beneficiam alguns. Trata-se de conservar o social e o Estado, produto histórico como nos românticos, engenho técnico como em Hobbes, mas sempre no horizonte do pavor e do medo, da guerra, do soldado, da polícia, do carrasco. Por isso a imagem do dilaceramento, junto com o medo da subversão da ordem, é onipresente nas falas conservadoras. Nelas acentua-se a harmonia como fim político, não importa o preço. Harmonia étnica, política, axiológica, econômica etc. Se tal concórdia implica em jogar nos porões da polícia este ou aquele inocente, se ela disfarça ódios arraigados, tudo isto importa pouco. Os caminhos da Providência são misteriosos. “Todos os conceitos mais importantes da moderna doutrina do Estado são conceitos teológicos secularizados [...] O Estado de exceção tem, para a jurisprudência, uma significação análoga à do milagre para a teologia” (SCHMITT, 1972: 61).

Milagres custam muito. Eles repetem os planos da Providência, laica ou religiosa, com lógica infalível. Termino, lembrando dois fatos importantes, no meu entender. Primeiro, o renascimento do interesse pelo pensamento conservador, e a recusa do século 18, na Europa sobretudo, coincide com a retomada dos movimentos fascistas que já chegaram ao governo, por exemplo na Itália. Carl Schmitt recebe uma voga de interesse inusitado. É importante tomá-lo em consideração, com todos os doutrinários que lhe serviram de sustento, para entender um pouco a mente dos líderes e das massas que agora ativaram a caça aos judeus, aos árabes, aos negros, aos diferentes.

No Brasil, mais do que nunca, os frios cálculos burocráticos e administrativos unem-se ao carisma pré-fabricado ou efetivo, colocando massas nas mãos de indivíduos, a quem cabe decidir o destino de milhões. O Salvador político, com pirotecnia fabulosa, promete ao mesmo tempo segurança às massas e aos proprietários. Nesta conciliação de incompossíveis reside a força retórica do pensamento conservador: no seu Estado, pobre e ricos vivem na aparência em harmonia garantida pelo encanto dos chefes, mas na verdade provida pelo medo da solidão e da morte, do carrasco e da polícia, enquanto se espera o soldado. Neste pânico cultivado com precisão científica pelas forças conservadoras, reside boa parte da angústia que antecede todo plano milagroso de salvação, contra, por exemplo, o processo inflacionário. Nele, também, mantem-se o fanatismo da adesão aos mesmos planos, produzidos sine ira et studio para engodo e para manter o mando em mãos definidas. Nele, brota o ódio que explode na massa quando os seus deuses da véspera se transformam em demônios da hora, como ocorreu com os ditadores fascistas e, numa escala mais branda, com nossos presidentes, de Vargas até Collor.

Enquanto durar este pêndulo, os intelectuais conservadores produzirão teorias que reduzem o povo ao papel de simples suporte, assistindo apenas a vida política, enquanto eles, os intelectuais, aderem sem vergonha aos donos do mando. Isto apenas contribui para o afrouxamento da ética, ensinando o povo a viver de expedientes, como os seus políticos vivem de golpes econômicos, políticos, publicitários, como seus intelectuais (não repetirei a fórmula batida, sobre “as exceções”, se elas existem, são evidentes), sobrevivem parasitando os poderosos. No Estado assim constituído, a lei é afastada e dirigida contra os críticos e a oposição. O discurso conservador exige fé em Deus ou na República, mas foge das leis e de sua abrangência universal, Nele… o conceito de igualdade, como o de soberania popular, é meta-físico. A única lei universal, nesta terra onde as Luzes ainda não penetraram, pela educação e pela técnica, é a de Gerson, muito útil aos soldados que nos impuseram durante anos sua ditadura. Donoso Cortés, naqueles anos melancólicos, alegrou-se com certeza em seu túmulo, como lavou sua alma, contra a república democrática espanhola, no advento do Generalíssimo Franco.”

Roberto Romano

Professor Titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BURKE, E. (1976). Reflections on the Revolution in France. Middlesex, Penguin.
CANETTI, E. (1978). Le territoire de l’Homme. Paris, Albin-Michel. CANETTI, E. (1986). Massa e poder. Brasília, Ed.da Univ. de Brasília.
COMTE, A. (1966). Catéchisme positiviste. Paris, Garnier.
CORTÉS, D. (s/d). Obras completas. Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos. DE MAISTRE, J. (1966). Du Pape. Genève, Droz.
DE MAISTRE, J. (1960). Les soirées de Saint-Petersbourg. Paris, La Colombe.
DOREMUS, A. (1982). “Introduction à la pensée de Carl Schmitt”. Archives de Philosophie, Paris, 45: 565-585.
FAYE, J. P. (1974). Los lenguajes totalitarios. Madrid, Taurus.
GODECHOT, J. (1961). La contre-revolution. Paris,PUF.
GOGGI, G. (1985). Diderot et Médée dépeçant le viel Eson. Colloque International Diderot. Paris, Aux Amateurs des Livres.
HEGEL, G. W. F. (1975). Principes de la Philosophie du Droit. Paris, Vrin.
HOBBES, Th. (1982). Le Citoyen. Paris, Flammarion.
KELSEN, H. (1989) Il problema della sovranità. Milano, Giufrè.
LOWITH, K. (1991). “Le decisionisme — ocasionnel — de Carl Schmitt”. Les Temps Modernes, Paris, 544, nov.
ROMANO, R. (1981). Conservadorismo romântico, São Paulo, Brasiliense.
SCHMITT, C. (1972). Le categorie del `Político’. Bologna, II Mulino.

La canaille machiste, au délà du Brésil...

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Entretien avec Muriel Salmona

« La réalité des violences sexuelles est l’objet d’un déni massif »

Au moment où la ministre des Droits des femmes, Najat Vallaud-Belkacem, s’apprête à présenter un projet de loi-cadre pour l’égalité entre les femmes et les hommes au Parlement, Muriel Salmona, psychiatre-psychothérapeute, publie dans son dernier livre, des chiffres alarmants sur les violences faites aux femmes en France, et dénonce l’absence de prise en charge globale, médicale, sociale et judiciaire des victimes.
Dès l’introduction de votre Livre noir 
des violences sexuelles [1], vous précisez que les violences sexuelles sont en augmentation, et que les victimes sont à 80 % des femmes. Cette situation paraît aberrante dans notre pays, au XXIe siècle…


Muriel Salmona : Malheureusement, les chiffres sont catastrophiques. Toutes les enquêtes le montrent, les victimes sont issues de tous les milieux sociaux et de toutes les catégories professionnelles, et les violences sexuelles sont commises essentiellement par des hommes, par des proches ou quelqu’un de connu par la victime dans 80 % des cas. Malgré le Mouvement de libération des femmes (MLF) et les progrès en matière d’égalité ces quarante dernières années, nous sommes encore loin du compte concernant les violences, les discriminations et les inégalités subies par les femmes en France.

Concernant les violences conjugales, 10 % des femmes en ont subi dans l’année écoulée ; pour les viols, les chiffres sont aussi effrayants : 75 000 femmes sont violées par an, et plus de 150 000 si l’on rajoute les mineures ! Une femme meurt tous les deux jours et demi sous les coups de son conjoint en France. Ces chiffres ne se sont pas améliorés, ils ont même augmenté.
Nous vivons une réalité absolument impensable dans une société comme la nôtre.

Vous voulez dire que notre société se rend complice de ces violences, en n’écoutant pas assez les victimes et en ne les protégeant pas ?

Muriel Salmona : La réalité des violences sexuelles est l’objet d’un déni massif. Notre société se préoccupe peu des violences subies par les femmes et ne fait rien ou presque pour les dénoncer, poursuivre les agresseurs, ni aider les victimes ! De ce fait, il existe une loi du silence incroyable puisque moins de 8 % des femmes violées osent porter plainte : seuls 2 % des viols conjugaux et des violences sexuelles intrafamiliales font l’objet de plaintes. Et au final, ces plaintes aboutissent à seulement 1,5 à 2 % de condamnations en justice, et la plupart des viols sont transformés en agressions sexuelles !

La gravité de ce crime n’est pas réellement prise en compte dans notre société et l’impunité règne. De plus, les droits essentiels des victimes à la sécurité et aux soins ne sont pas respectés. Les femmes en danger bénéficient rarement d’une protection efficace. Une récente étude montre qu’en Île-de-France 67 % des femmes interrogées ont peur dans les transports en commun, dans leur quartier le soir, ou à leur domicile, contre 34 % des hommes.

Vous montrez aussi que le lieu de travail 
est un endroit privilégié des agressions sexuelles en France…

Muriel Salmona : C’est sur le lieu de travail que 4,7 % des viols et 25 % des agressions sexuelles sont commis. Selon les statistiques européennes, les univers du soin sont les lieux où il y a le plus de violences sexuelles, avec ceux de la restauration et de l’hôtellerie. Cette grande violence sexuelle et sexiste au travail est particulière à la France. Elle se déroule en toute impunité, sous le couvert d’une «  séduction à la française  », «  d’humour  », ou parce que ce serait, selon des expressions machistes couramment utilisées, la «  faute  » des femmes elles-mêmes, de leur tenue, de leur comportement jugé «  inconscient  » ou «  provocateur  »…

Vous insistez sur le fait que ces violences 
n’ont rien à voir avec le désir, la sexualité masculine ou la séduction… 
De quel registre relèvent-elles ?

Muriel Salmona : Désirer et aimer sont le contraire d’instrumentaliser une personne pour son propre compte. Les violences sexuelles sont des armes pour détruire l’autre, le soumettre et le réduire à l’état d’objet et d’esclave. Ce sont les violences qui entraînent le plus de traumatismes psychiques. Elles font partie de la mise en place de la domination masculine et de la volonté d’exclure les femmes de divers univers, dont celui du marché du travail et des postes à responsabilité. Les stéréotypes sexistes voudraient faire croire que la sexualité masculine a des besoins incontrôlables qui doivent et ont le droit de s’exercer sur la femme.

Comment analysez-vous cette loi du silence 
qui est même relayée par les acteurs 
médico-sociaux ?

Muriel Salmona : Dans l’univers médico-social, il existe une tolérance des violences envers les femmes et, même s’il y a une féminisation du secteur médical, la majorité des personnes ayant des postes à haute responsabilité sont des hommes soucieux pour la plupart de conserver leurs privilèges patriarcaux. Puis, en médecine, la souffrance psychologique issue de violences est l’objet de déni ou de mépris. En France, alors que depuis presque trente ans on sait reconnaître et traiter les conséquences psychotraumatiques des violences, celles-ci ne sont toujours pas enseignées pendant les études de médecine !

Et pourtant, vous montrez combien 
les conséquences de cette loi du silence 
et de ce manque de prise en charge 
sont lourdes pour les victimes…

Muriel Salmona : Elles sont dramatiques, parce que non seulement les victimes ne sont pas repérées, donc on ne leur donne pas la protection et les soins qu’elles devraient recevoir, mais en plus elles sont culpabilisées. Elles se retrouvent isolées, souvent exclues, voire marginalisées, à subir de nouvelles violences.

Alors que les soins sont efficaces, la plupart des victimes n’en bénéficient pas et développent des symptômes traumatiques, qui les poursuivent tout au long de leur vie. Lorsque personne ne vient à leur secours, et ne rétablit du sens et de l’humain, tous les systèmes de défenses psychologiques sont mis à mal.

La victime, lors des violences, éprouve un stress si important que des mécanismes neurobiologiques de survie se mettent en place au prix de l’installation d’une dissociation et d’un grave trouble de la mémoire, appelé la mémoire traumatique. C’est une mémoire qui, comme une bombe à retardement, fait revivre toutes les violences subies et la mise en scène terrorisante et culpabilisante créée par l’agresseur.

C’est une torture qui oblige les victimes à mettre en place des stratégies de survie coûteuses pour leur santé et leur estime de soi (conduites d’évitement et conduites à risque pour s’anesthésier : mises en danger, addictions). L’absence de prise en charge est donc une perte de chance considérable pour la victime et un véritable scandale de santé publique.

Justement, les politiques ont-ils conscience 
de leurs rôles ? Existe-t-il assez de lois contre les violences faites aux femmes ?

Muriel Salmona : C’est très particulier, nous possédons un système de lois assez complet… mais qui n’est pas appliqué ! Par exemple, nous avons une définition du viol dans nos textes, mais, en pratique, le viol n’est jamais reconnu comme tel. Il existe un nombre incalculable d’affaires classées ou de non-lieux faute de rechercher des éléments de preuve et des faisceaux d’indices pouvant qualifier suffisamment le viol…

Que préconisez-vous pour que ces affaires soient jugées plus efficacement et que les victimes soient enfin reconnues et aidées ?

Muriel Salmona : Il est urgent d’améliorer la formation de tous les professionnels rencontrés par les victimes : des policiers aux juges et aux procureurs, en passant par les soignants et les enquêteurs, tous doivent posséder une meilleure connaissance de la réalité des violences et des traumatismes des victimes pour ne pas passer à côté d’elles. Ils doivent pouvoir reconnaître les symptômes présentés par la victime comme des éléments de preuve et non comme des éléments disqualifiant leur parole. Je pense, par exemple, à la sidération qui empêche la victime de réagir, aux troubles de la mémoire et aux conduites d’évitement qui l’empêchent de parler, aux symptômes dissociatifs, où elle semble déconnectée et peut raconter avec détachement des violences graves qu’elle a subies. En tant que professionnels, ils ne doivent pas se méprendre sur l’apparente «  bonne réaction  » des victimes ou croire qu’elles leur mentent, celles qui semblent le moins touchées peuvent, au contraire, se trouver dans un profond état de dissociation et d’anesthésie émotionnelle générées par leurs agressions.

Comment analysez-vous le rôle de la société sur les stéréotypes liés aux femmes ?

Muriel Salmona : Je pense qu’il faut en finir avec la vision pornographique de la sexualité que nous imposent la société et l’industrie du porno. Nous sommes contaminés par une vision instrumentalisant les femmes, censées aimer des actes sexuels violents ou humiliants. Le porno érige en norme le fait que les femmes soient des corps à la disposition des hommes. Il est aussi globalement considéré «  normal  » que la sexualité masculine soit irrépressible et violente, ce qui aurait pour conséquence également «  normale  » que ce sont les femmes qui doivent la contrôler en faisant attention à leur comportement !

Le Collectif national pour les droits des femmes (CNDF) se bat depuis plusieurs années 
pour le vote d’une loi-cadre contre les violences faites aux femmes. Lundi 16 septembre, 
un projet de loi pour l’égalité entre les femmes et les hommes va être présenté au Sénat 
par la ministre des Droits des femmes, 
Najat Vallaud-Belkacem. En l’état, ce texte 
vous paraît-il suffisant ?

Muriel Salmona : Najat Vallaud-Belkacem avait présenté, le 3 juillet dernier en Conseil des ministres, le projet de loi-cadre pour l’égalité entre les femmes et les hommes. Ce texte présente un volet sur la protection des femmes victimes de violences, dans lequel on retrouve des mesures phares, comme renforcer le dispositif d’ordonnance de protection et généraliser le téléphone grand danger au 1er janvier 2014.

L’ensemble de ces mesures représentent une réelle avancée, mais restent largement en deçà de ce qui est nécessaire pour lutter contre les violences. D’abord, il reste beaucoup de choses à améliorer concernant la protection des victimes. Puis nous désirons aussi faciliter les plaintes, et, pour cela, il faut mettre en place des cadres très protégés où les victimes ne sont plus exposées aux agresseurs et à des maltraitances policières, judiciaires et médicales.

Il faut arrêter de mener l’enquête à charge contre les victimes et se focaliser plus sur la stratégie des agresseurs…

Enfin, il n’y a pour l’instant aucune mesure qui améliorerait les soins aux victimes de violences si ce n’est la référence au groupe de travail de la Miprof (mission interministérielle de protection des femmes et de lutte contre la traite des êtres humains), dont je fais partie sur la formation initiale et continue des médecins.

Certes, les 2 et 3 septembre derniers, un colloque a été organisé par le ministère sur le soin aux victimes, et c’était une première. J’y suis intervenue, nous verrons ce qui sera proposé ensuite.
Actuellement les victimes n’ont pas accès à des soins adaptés. Il faudrait qu’il y ait dans chaque département un centre de soins gratuits dédié aux victimes et des réseaux de prise en charge avec des professionnels formés et compétents, cela ne représente pas énormément d’argent en plus.

Il est difficile pour la victime d’arriver jusqu’au tribunal et, une fois parvenue en justice, 
les peines ne semblent pas être à la hauteur des violences subies…

Muriel Salmona : Effectivement, elles ne sont pas assez dissuasives. Un exemple parlant : les peines de harcèlements sexuels vont de deux à trois ans, alors que si l’on vole un scooter, on risque plus ! Or, si les victimes pouvaient enfin porter plainte, si leurs plaintes étaient réellement prises en compte, si elles étaient reconnues et correctement soignées, et si la loi était appliquée, moins d’hommes se permettraient de violenter les femmes. Aussi, une grande campagne de communication gouvernementale s’adressant aux agresseurs permettrait de réduire ces actes de violence. Car définir les violences, expliquer leurs conséquences, dire haut et fort qu’elles sont interdites et les peines encourues si l’on transgresse la loi, c’est important. En aidant à libérer la parole des victimes, en les soignant et en réduisant l’impunité de ce crime, notre société produira moins d’agresseurs.

À quoi ressemblerait une société idéale ?
Muriel Salmona : Le monde meilleur auquel j’aspire, au travers de mon combat, est celui où les relations hommes-femmes seraient enfin débarrassées de toute domination et de toute violence, et où les enfants seraient enfin en sécurité. Si l’on réussit à améliorer l’égalité des droits et à lutter efficacement contre toutes les violences, les femmes pourront vivre sans peur, chez elles, au travail, dans la rue, de nuit comme de jour, et mener la vie qu’elles souhaitent.

Entretien réalisé parAnna Musso, le 6 Septembre 2013.
Lutter sur tous les fronts :

Psychiatre-psychothérapeute, chercheuse et formatrice en psychotraumatologie et en victimologie, Muriel Salmona a fait de son métier une lutte. En 2009, elle fonde l’association Mémoire traumatique et victimologie [2], dont elle est la présidente. Objectif : améliorer l’identification, la protection et la prise en charge des victimes. La chercheuse travaille aussi en partenariat avec des associations féministes (AVFT, CFCV, Femmes Solidaires, etc.) et d’aide aux victimes de violences, ainsi qu’avec l’Observatoire de lutte contre les violences envers les femmes du 93, les délégations aux droits des femmes et à l’égalité et les Cnidff. Elle a publié de nombreux articles dans des revues et sur ses blogs [3], et participé à plusieurs ouvrages collectifs. Dans le Livre noir des violences sexuelles, elle dénonce l’absence de reconnaissance de l’impact des violences sur les victimes et de prise en charge globale médicale, sociale et judiciaire, qu’elle qualifie de scandale de santé publique.

[1Le Livre noir des violences sexuelles. 
Éditions Dunod, 2013.

domingo, 29 de dezembro de 2013

Veja e o Brasil civilizado, pacífico...

29/12/2013 - 08:26

Direito das mulheres

Agressões contra mulheres crescem 15% no período de férias

Apenas 9% das cidades brasileiras contam com algum serviço da rede especializada de atendimento à mulher

Bruna Fasano
Violência contra a mulher
Cerca de 90 mil mulheres foram assassinadas no Brasil entre 1980 e 2010 (Rudyanto Wijaya/Getty Images)
 
Durantes os meses de dezembro e janeiro, quando as famílias estão reunidas para celebrar o Natal e a chegada de um novo ano, mulheres veem intensificar-se o sofrimento causado pela violência doméstica. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, em novembro de 2012, 11.516 mulheres denunciaram agressões. O número saltou para 13.119 em janeiro de 2013 — uma variação de quase 15%.

“Quando os homens ficam mais em casa, têm mais tempo livre com a família, e há mais chances de agredirem e ameaçarem não apenas a mulher, mas também os filhos”, diz Aparecida Gonçalves, secretária responsável pela área de enfrentamento à violência contra as mulheres, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, órgão com status de ministério.

Leia também:

Assim como no período das férias, os casos de violência doméstica também aumentam durante finais de semana e feriados. E o alarmante é que, quando as mulheres mais precisam denunciar os abusos, as delegacias especializadas simplesmente não funcionam. “O argumento para manter fechadas as poucas delegacias especializadas em atender mulheres é a falta de pessoal e estrutura”, diz  Aparecida. “Mas, se as delegacias de polícia que apuram casos regulares trabalham em esquema de plantão e emergência, o fechamento das delegacias especializadas demonstra que as mulheres são negligenciadas e não têm direito sequer a serem ouvidas”.

A prática contraria a norma técnica estabelecida pela Secretaria de Política para Mulheres que deveria pautar o funcionamento das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher. A regra determina que “o atendimento qualificado deve ser ofertado de forma ininterrupta, nas 24 horas diárias, inclusive aos sábados, domingos e feriados, em especial nas unidades que são únicas no município”. O regulamento é ignorado nas três principais capitais brasileiras. O site de VEJA tentou entrar em contato com essas delegacias em um domingo à tarde em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Em nenhuma delas houve sequer atendimento telefônico. 

Recorde - Cerca de 90.000 mulheres foram assassinadas no Brasil entre 1980 e 2010, segundo dados do Instituto Sangari, divulgados no Mapa da Violência de 2012. O estudo revela a tendência de aumento dos casos – somente nas últimas três décadas, o avanço na média de mortes foi de 217%. Dados da Organização Mundial da Saúde apontam que o Brasil é o 7º país com maior número de mulheres assassinadas no mundo.

Nos últimos dois anos, o governo federal investiu 305 milhões de reais na campanha Mulher, Viver sem Violência. A central de denúncias, que atende pelo número 180, recebeu 25 milhões de reais para ampliar sua atuação. Outros 100 milhões de reais estão sendo investidos em campanhas de conscientização. 

Dificuldade em denunciar – Atualmente, apenas 527 municípios brasileiros contam com ao menos um serviço da rede especializada de atendimento à mulher, conforme monitoramento do governo federal feito entre os anos de 2012 e 2013. Isso representa uma porcentagem ínfima — 9,4% — dos 5.561 municípios brasileiros.

“Elas são agredidas, mal tratadas e até estupradas pelos próprios companheiros. Além de sofrerem fisicamente também passam por torturas psicológicas. Se o posto mais próximo de denúncia e atendimento está a três cidades de distância, a mulher simplesmente não vai atrás dos seus direitos e muito menos denuncia o agressor”, afirma Adriana Alcântara dos Reis, do Centro de Referência Maria do Pará, serviço vinculado à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos.

Contextualização Histórica das Liberdades, palestra de Roberto Romano em 1989, na cidade de Ouro Preto, para comemorar a Inconfidência Mineira. Embora vários fatos históricos estajam desatualizados (não existe mais a URSS, Pinochet graças aos deuses se foi, etc), há muita coisa que ainda persiste na vida política nacional e internacional.


Comemoração, em Ouro Preto, da Inconfidência Mineira.
Fundação João Pinheiro.


Revista Análise e Conjuntura, Belo Horizonte, v. 4, números 2 e 3,  Maio/Dezembro/1989.



CONFERÊNCIA

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DAS LIBERDADES

 Roberto Romano [SP/Unicamp)

Em nosso alvo, a contextualização das liberdades, notemos o plural que marca o segundo termo. Afastamos, com semelhante uso lingüístico, alguns traços lamentáveis da vida moderna. O costume de reprimir o humano, tanto no coletivo quanto nas suas partes, nega o termo "liberdade" e a sua efetivação. Do lado oposto, a superestima da forma abstrata transforma o absoluto em simples universal vazio. No século dezoito e dezenove a Liberdade desencadeou algumas tiranias. Hoje, herdamos na prãtica as doutrinas contra-revolucíonãriás e anti-liberais, cujos frutos já foram mostrados nos movimentos totalitários, progressistas ou conservadores.

A liberdade raramente se efeliva, com toda transparéncía, em atos históricos. Mesmo o idealista coerente chega a notar, com precisão lógica, que ela deve ser traduzida para a existência, aparecer, limitar-se. Entre o Absoluto - o sem laços – e o fenomênico, elevam-se tremendos obstáculos. Cabe aos homens suprimí-los, na superfície ou profundeza vital. Meditando sobre a vontade livre, Hegel abarcou a missão indicada acima.

No plano histórico, "liberdade" é sinônimo de processo, de vir-a-ser. No inicio, fala o pensador. o conceito de um ente livre ainda é abstrato. Mesmo "que suas determinações estejam nele contidas, elas são apenas isto, contidas". Liberdade é dynamis, força no sentido aristotélico: "quando digo, por exemplo, 'eu sou livre': o 'eu' ainda é apenas este ser que permanece em si, sem objeto que lhe corresponda." ([1]) Hegel concordaria plenamente com o plural avançado para esta fala: só temos ato livre na vida ética, onde o Eu revela-se, na verdade, enquanto "Nós". Liberdade, também para ele, fundamenta- se sobretudo na polis. Por isso, quando se traduz em ações, ela requer o coletivo. Apenas no Estado poderíamos atingir o estatuto de entes livres. Mas não é menos verdadeiro que o Estado só realiza o que já somos. Não existe Constituição politica onde faz-se economia do próprio ser. O despotismo é situação temporária. Nele, o conceito destoa da existência. Logo, pensa Hegel, tal equívoco deve se apagar.

A Revolução Francesa fomeceu muitos elementos para a filosofia da liberdade. Mesmo o famoso "todo racional é efetivo, todo efetivo é racional" (das, was vernünftig ist, ist wirklich, und das, was wirklich ist, ist vernünftig) mostra-se como recusa de aderir à repressão. Ao contrário da exegese comum que o desenha como "filósofo do Estado prussiano", Hegel definia, naquela frase, o anseio grave das Luzes. Todo coletivo pouco racional, sem forte vínculo ético, deve modificar-se. ([2])Trata-se do mesmo elogio erguido à Razão por Emanuel Kant: "o nosso tempo é o da crítica, a quem tudo deve submeter-se. Desejam dela escapar a religião, por sua santidade, e a legislação, por sua majestade. Mas, assim, as duas deixam lugar para justas suspeitas e não podem pretender atingir aquela estima não simulada, que a razão concede apenas ao que soube resistir à sua livre e pública investigação".([3])  

Exame universal, no espaço civil e político. Tudo o que dele escapa dificilmente pode ser mantido. O selo do efetivo e racional só pode ser aplicado nas matérias onde o segredo, a força ffsica pura, a autoridade tradicional atingiram o ponto mínimo. Os resultados políticos dessa atitude teórica, Kant os extrai no Conflito das Faculdades,  livro onde exalta os feitos da Revolução Francesa. Nesta, a causa moral que intervém é dupla. "De início é a causa do direito que um povo possui, de se dar uma Constituição política como ela lhe parecer boa, de não ser impedido nisso por outras potências; em segundo lugar é o fim (também um dever), ou seja, que a Constituição de um povo só é conforme ao direito e moralmente boa se ela for, por sua pr6pria natureza, apta a evitar por princípio uma guerra ofensiva". ([4])

O tema, tratado de outro modo na Paz Perpétua, possui grande importância, se quisermos definir os obstáculos à contextualização das liberdades humanas. Exame público supõe, de fato, ausência de segredos absolutos. Depois, a determinação de limites aos poderes estatais, por intermédio do Parlamento. Finalmente: o povo maior, autônomo, deve ofertar- se um presente, a Constituição que assegure a liberdade dentro de suas fronteiras. Isto, por sua vez, exige simultaneamente a liberdade dos outros povos. Sem estes quesitos, ao contrário da Razão, teremos a perene suspeita social contra o despotismo. Deixemos a companhia do filósofo ilustre, tantas vezes caluniado pelos pigmeus do pensamento como "utópico", "ingênuo' e outros adjetivos, Recordemos.

Após os sublimes instantes revolucionários franceses, quando o "entusiasmo do espírito fez o mundo estremecer. como se apenas naquele momento tivesse ocorrido a verdadeira reconciliação entre o divino e o mundo" ([5]) as sociedades humanas experimentaram obstáculos crescentes às liberdades. O Termidor, o Consulado, o Império: na própria França, os avanços das franquias foram pagos com moeda amarga, a concentração do poder estatal, o aumento da força física nas mãos dos governantes, o segredo, a heteronomia constitucional, e last but not least, a guerra.

Em nossa época as tempestades foram mais fortes. Basta a referência ao Eixo. com os regimes de força e mentira que ele reuniu: nossa aIma percebe o quanto nos distanciamos das formas associativas, da imprensa, da vida almejadas pelos revolucionários, em 1789. Quando ouvimos os relatos históricos sobre os Estados totalitários sentimos vacilar. nos atores e nos que narram. a crença racional sobre a liberdade. Após a tese individualista burguesa, vigorou a antítese, o regime das multidões, conduzidas pela propaganda e pela força física aos matadouros da Universalidade abstrata.

Sublinhemos esses prismas da verdade política. Os Constituintes da Revolução Francesa deixaram de perceber a força industrial que apresentava os primeiros avanços fundamentais. Simultâneamente, deles escapou o fenômeno urbano na sua plena violência. Massas reduzidas à força de trabalho, sem vínculos éticos duradouros. Ignorados estes pontos, a insistência nos direitos individuais colocou em primeiro plano a propriedade, afastando dos trabalhadores a lei e a justiça. Somente em 1901 o próprio termo - contrato de trabalho - entrou para o vocabulário jurídico francês. "É na categoria de aluguel dos serviços que se fazia, antes, este contrato (…) o indivíduo podia se alugar. se não mais era permitido vender-se... “. ( [6])

Certeiro Hegel. quando afirma: "a queda de uma grande massa de homens abaixo de certo nível de subsistência (...) a perda do sentimento do direito, honestidade e honra de subsistir por seus próprios atos e trabalho, produzem a populaça, o que comporta uma facilidade maior para concentrar riquezas desproporcionadas em poucas mãos."[7] Como dizer a liberdade, neste contexto? Semelhante contradição foi percebida no século dezenove, sobretudo pelos socialistas utópicos, adversários do Estado liberal. Como Victor Considerant: "a liberdade absoluta (segundo 1789), sem organização, é só o abandono das massas desarmadas e desprovidas de bens à discrição dos corpos armados e providos (...) Onde estão os homens livres? Vocês fingem olhar como livres estas massas inumeráveis de proletários sem capitais. sem instrumentos de trabalho, e que são constrangidos, pela morte que plana sobre eles e suas famílías, ininterruptamente. a encontrar todo dia um senhor..." ([8])
  
Toda uma pletora de intelectuais, movimentos operários, igrejas, partidos conservadores surgiu a partir deste fato: a perda de liberdade para a massa e a concentração de mando e riqueza nas mãos de poucos. O ideal revolucionário que a partir de 1789 exigia a transparência absoluta dos Estados, foi omitido em proveito do segredo no trato com a plebe revolucionária. A formação poütica moderna elevou ao máximo -como demonstra brilhantemente Karl Marx no 18 Brumário de Luis Bonaparte, o lado físico da repressão. interna e externa. Polícias secretas auxiliam exércitos convencionais na tarefa de impor a ditadura dos executivos. em detrimento das sociedades civis. As liberdades, então, tornam-se alvos a serem destruidos pela máquina policial, sine ira et studio.

Vejamos o aspecto do silêncio e do segredo, fundamentais em todo Estado contemporâneo. Segredo no exercício dos cargos públicos, esta é a fórmula universal das burocracias. Silêncio imposto aos adversários do poder reinante, através de múltiplos meios, desde a coação física até a cooptação, tal é o proceder das tiranias modernas. Tortura e propaganda formam duas modalidades complementares de administrar o silêncio e o segrêdo. Ambas operam nas camadas escondidas do governo. A primeira dá-se nos campos de concentração, na madrugada, longe da vista e da escuta popular. A segunda, decidida nos gabinetes ocultos, invade todos os sentidos (sobretudo os olhos e ouvidos) da multidão. Todos os adversários da vida livre odeiam o debate público. Sem o plano secreto, o seu mando pode ser, a todo instante, abalado até a medula. Só o silêncio possibilita a simulação e a dissimulação, técnicas empregadas pelos que defendem posições e por quem as cobiça. "O poder autocrático (...) não apenas se esconde para não deixar que se saiba quem ele é e onde está, mas tende igualmente a esconder os seus reais intentos, na hora em que suas decisões devem tornar-se públicas. Tanto o esconder quanto o se esconder são duas estratégias habituais do ocultamente. Quando não puderes evitar a mistura com o público, coloca a tua máscara!" (Norberto Bobbio).

Quando dizemos "os poderosos", visando a Raison d’état  moderna, não colhemos com este enunciado apenas os governantes atuais. Mesmo as oposições entram nele. Na exata medida em que se adestram para assumir o controle da res publica, também os setores que ainda não atingiram o poder adquirem, com diferentes ritmos e tonalidades, os modos de falar e agir do Príncipe, cuja figura, não raro, espelham perversa e inevitavelmente. Os laços da sutil e invisível solidariedade que une ditador (ou governante ilegítimo) e os dirigentes sectários são, na maioria das vezes, tão fortes quanto o aço que sustenta sua retórica mentirosa comum.

O direito de associação e livre palavra é a base de qualquer democracia (H. Lask). Ora, "uma boa parte do prestígio de que gozam as ditaduras deve-se ao fato de lhes ser concedida a força concentrada do segredo, que nas democracias se reparte e se dilui entre muitos. Com sarcasmo diz-se que nas democracias tudo se dilui em palavrório. Todos falam demais, todos se intrometem em tudo, nada acontece que não se saiba de antemão" (Elias Canetti). A perfeita Ordem reinaria, segundo os apoJogetas do mando puro e simples, apenas no lugar onde o governante é livre e o povo é servil.

O presumido "interesse geral" justifica atrocidades, impõe medidas restritivas, liberticidas, garante a falácia e desrespeito pela enunciação. O segredo é o procedimento comum ao tirano. ao totalitário e à Auctoritas do antigo poder absoluto, vencido em 1789. Quando. em 1615, o Terceiro Estado protestou contra a Corte francesa, que negara a apresentação pública do orçamento e dos lucros resultantes dos impostos, foi este o parecer do Clero: "as finanças são o nervo do Estado. Da mesma maneira que o sistema nervoso está escondido sob a pele. convém manter ao abrigo dos olhares a fraqueza ou a força das finanças. É deste modo que, na Antiguidade, o véu do Santo dos Santos s6 poderia ser erguido pelo Sumo Sacerdote, sendo toda outra pessoa banida do santuário. As finanças são o maná, no cofre sagrado". ([9])

Para falarmos em "liberdades", pois, precisamos tocar no âmbito do poder. Este não existe sem pelo menos, três elementos. O primeiro é o já mencionado monopólio da força física. Nenhum Estado se estabelece sem ele. Após 1789, ou 1917, toda possivel ilusão neste plano se desvaneceu. A ditadura jacobina, ou consular (depois imperial), e a ditadura do proletariado têm como base esta concentração de meios impositivos para uso dos governantes. Desprovido do controle sobre as forças armadas (sejam elas até as milícias populares), um poder de Estado só existe nominalmente. Basta lembrar os casos típicos de Goulart, em 1964, e, no Chile, do governo Allende. Quando perderam as forças armadas. e não se efetivaram as esperanças nas milícias populares, o golpe de Estado os colocou fora de combate.

Esse monopólio. conforme o maior ou menor grau de democracia num país, se desdobra no poder de polícia interna, secreta ou pública. e numa rede de controle, a "comunidade de informações". Quando os limites entre o poder legítimo e o ilegítimo caem, estas máquinas de domínio radicalizam seu modus operandi, chegando à tortura, à espionagem sobre a vida dos cidadãos, à censura, ao terror de Estado. Quando um regime se democratiza, pode diminuir o peso destes "órgãos" vitais ao Estado. Mas nunca se perde o monopólio da força pública: o governante real é aquele que a exerce. Um estadista que não a controla é, no máximo, delegado servindo ao poder empírico.

Outro monopólio co-essencial ao primeiro: o do ordenamento jurídico. Não cabe a qualquer cidadão, ou entidade privada, estabelecer normas de comportamento público e de ordenação institucional. Assembléias Constituintes, em plano interno, ou congregando nações, como a ONU, definem limites de competências, jurisdições, soberanias. Mesmo Estados democráticos liberais ou socialistas não podem prescindir deste monopólio. Caso contrário, é retomar ao arbítrio de alguns, reunidos pela riqueza ou influência social.

Outro elemento é o monopólio da gestão do excedente econõmíco. Impostos, alocação de recursos públicos, etc., tudo isto cabe ao poder de Estado. As três formas de monopólio mencionadas, entretanto, podem se transformar em veneno, corroendo o fím a que deveriam servir: a garantia das liberdades. Quem movimenta aqueles poderes pode - e esta é a história dolorosa nos tempos modernos e atuais -, por múltiplas causas, negar a soberania constituinte do povo, definindo a sua própria infalibilidade: militar, jurídica, econômica.

A recusa do debate, em nome da eficácia e ganho de tempo, é dogma em todos os autores contra-revolucionários, do final do século dezenove até o nazismo. A idéia de que a democracia e as discussões em assembléias são danosas para a boa direção social ou científica tomou-se lugar comum, preconceito partilhado pelas representações "reacionárias' ou "progressistas". Já Augusto Comte pregou esta mentira quando disse: “O dogmatismo é o estado normal da inteligência humana". Este conceito recebeu em Danoso Cortés o título correto: infalibilidade. Para esse autor, o conceito de soberania é idêntico ao de poder infalfvel: o princípio da liberdade de discussão, diz ele lamentando-se, é o fundamento das constituições modernas". O erro deste liberalismo democrático teria sido a confiança na infalibilidade da discussão, o que resultou, pensa ele, n absoluta anarquia. A infalibilidade, primeiro atributo do Papa, é marca do soberano que, para Donoso Corres, não é o povo,maso governante empírico. Ninguém melhor para lembrar, nesse caso, do que um fiel discípulo de Donoso Cortes na Alemanha anterior a Hitler, e que uniu-se ao ditador sem hesitações: Carl Schmilt. "Segundo Donoso, diz Schmitt, é próprio da essência do liberalismo o não tomar posição e decisão nesta batalha (entre o Bem e o Mal, RR) mas querer, pelo contrário, produzir uma discussão. Ele define a burguesia exatamente como 'classe que discute'. É neste rumo que ela se caracteriza, porque no seu modo de operar já está ímpIfcito que ela deseja subtrair-se à decisão. Uma classe que transfere toda atividade política para a fala, na imprensa ou Parlamento, não é adequada para uma época de lutas sociais ..." ([10]) O ideal liberalizante constituiria nisto: "que não apenas a corporação legislativa, mas todo o povo discuta, que a sociedade humana se transforme num imenso clube e que, deste modo, surja a verdade por si só, pela discussão" (idem). Enfim, o liberal pensaria que a luta das classes "sanguinolenta batalha decisiva, possa ser transformada num debate parlamentar e possa, assim, ser suspensa por meio de uma eterna discussão". Mas. contra as "feras populares" que ameaçariam os valores, a propriedade, a hierarquia e a Ordem. Donoso Cortes só enxergava um remédio: a ditadura. "Senhores. (...) a liberdade acabou! Não ressuscitará, senhores, nem no terceiro dia, nem no terceiro ano, nem talvez no terceiro século. A liberdade não existe de fato, na Europa; os governos constitucionais, que a representavam anos atrás, são apenas, em todo lugar, senhores, um esqueleto sem vida “. Anúncio fúnebre que tem validade até hoje, em muitos países do globo. Continua Cortés: "trata-se de escolher entre a ditadura que vem de cima e a ditadura que vem de baixo. Escolho a que vem de cima, porque vem de regiões mais limpas e serenas. Trata-se. finalmente, de escolher entre a ditadura do punhal e a do sabre. Escolho a ditadura do sabre, porque é mais nobre") ([11])  Este é um bom exemplo do uso ensandecido do monopólio da força fisica.

Tal discurso permanece, até hoje, como protótipo de todas as falas decisionísticas que ridicularizam o liberalismo democrático. Pela mediação de juristas como Carl Schmitt,' ele serviu para justificar formas de governo totalitárias e autoritárias, como as de Hitler, Salazar, Franco e de muitos ditadores latino-americanos. No Brasil, após a experiência centralizadora do Império e Repúblicas ( a 'Velha" , a de Vargas, e agora, a "Nova"), o Estado marca-se pela verticalidade e carismatismo, pessoal ou da instituição. Os princípios liberais são ridicularizados a priori, em nome do realismo político, das gestões eficientes. A premissa de que caberia aos governados legislar sobre seu próprio agir é descartada, inúmeras vezes, sem maiores embaraços. Quando não se outorgam pura e simplesmente leis e regulamentos (como os famosos Atos Institucionais, de triste memória), criam-se "comissões" nomeadas pelos Executivos, a fim de rascunhar projetos que, após, receberão a forma e o conteúdo determinados pelos compromissos dos governantes com setores hegemônicos da sociedade (o que é regra), ou para atrair as massas. na política populista.

Os longos anos de reforço autocrático manu militari, apenas aumentaram a heteronomia da população - desde as periferias das cidades, até os campi universitários - no seu exercício institucional quotidiano. Somos e constituímos qual Estado? Caso fique definido que o Estado, entre nós, nos seus elementos executivo, legislativo, judiciário, continuará a ser regido pela lógica da "eficiência" e recusa do debate liberal, isto é, pela via do decisionismo, devemos concluir que é impossível toda e qualquer liberdade cidadã. A forma vertical de mando seria inelutável: no ápice, um líder supremo, na base, apenas a massa indistinta, manipulada ao bel-prazer dos intermediários entre o chefe e os súditos. Ou escravos.

Lutamos, em nossa terra. para diminuir o abuso do Executivo. na administração do segredo. e dos monopólios da força física, do ordenamento jurfdico, da gestão sobre o excedente econômico. Nesta guerra, entretanto, os recursos são desiguais. René Cassín proclamou, na ONU, em 1948, os quatro pilares da Declaração que naquela data se publicava: o primeiro, relativo aos direitos pessoais, à vida, à liberdade. À segurança da pessoa, sempre ameaçada pela "segurança" dos Estados. O segundo, o direito à família e aos agrupamentos humanos, dos mais restritos aos mais amplos. O terceiro, o das liberdades públicas e direitos políticos, pensamentos. crença, palavra, expressão, reunião. O quarto é o campo dos direitos econômicos, sociais, culturais, como trabalho, educação, segurança social, vida intelectiva. ([12])

Observemos o que se passa no mundo, e no Brasil, no tocante a cada um dos itens acirna. Que segurança, que direito pode existir, de forma universal e duradoura, quando lemos, nos relatórios de organismos insuspeitos como a Anistia Internacional, os infindáveis casos de tortura, sequestro de homens e mulheres na calada da noite, pelas forças policiais, regulares ou secretas? Como falar em "liberdades", quando a crítica aos governos é paga com desaparecimentos de corpos? "Nas últimas décadas. alguns governos latino-americanos adotaram a nefasta prática de fazer 'desaparecer' seus adversários políticos. Isto ocorreu com macabra frequência na Argentina, durante os anos da ditadura militar (...) mas felizmente terminou com a eleição e a posse do presidente Raul Alfonsin (...) Aconteceu - e ainda acontece - no Chile dominado pela mão de ferro do general Augusto Pínochet" .([13])

A tortura é outro componente do quadro violento. que se desenha com o abuso do monopólio da força física, pelos governantes. Não apenas em nosso continente, mas em todo o mundo, se pratica este covarde exercícío da imposição e amedrontamento. Na China continental, na África do Sul, no Irã, no Peru, noventa países, pelo menos, empregam a tortura como arma repressiva. Esta "é o resultado de uma vontade política de governos autoritários ou totalitários. Faz parte de urna estratégia de segurança, que lança mão de pessoas de mau caráter para exercer sua política de dominação", ([14]) Somemos a este arsenal de horrores as prisões por objeção de consciência ([15]) , as violações dos mínimos direitos dos assim chamados "presos comuns", quando comparados aos "políticos". ([16]) Tudo isto, se lembrarmos os exemplos onde o Estado, na sua face executiva, aparece como promotor ou agente, direto ou indireto. Mas também podemos recordar as formas não-estatais de imposição, como os linchamentos, incentivados pela midia repressiva ([17]) . os assassinatos de lideranças civis contra os interesses particulares (como é o caso de Francisco Mendes, e inúmeros outros), a morte de posseiros e pequenos proprietários, como tem sido denunciado há muitos anos pela Igreja Católica, através da Comissão Pastoral da Terra, e por vários partidos de oposição. ([18])

Enquanto tais ações procuram domar a crítica no interior de cada país. Recurso imenso é gasto na corrida armarnentista, visando manter hegemonias econômicas, politicas, nacionais. ([19])  Todos estes fatores, somados a outros menos notórios, mas tão graves quanto, tendem a enquadrar as liberdades em limites estreitos. Notamos, entretanto. como contraponto a essa violência opressiva, indícios de vida livre em nosso mundo. Assinalemos os movimentos nacionais e populares que elevaram o ânimo democrático. apesar de toda sua ambigüidade: os combates no Vietnã, na África, na Nicarágua. As mudanças ideológicas e institucionais da União Soviética, e outros países socialistas. Além disto, notamos que, se é verdade a existência de violações aos direitos humanos, também é fato a ocorrência de sua denúncia. Organismos como a ONU, a Anistia Internacional ainda conseguem, junto com a UNESCO, e outros, atenuar as marcas da bárbarie contemporânea. Os crimes contra o homem e a natureza são denunciados e, gradativamente, assumem feições de eficácia os movimentos ecológicos, civis. Se os atos mostram alguma esperança de vida livre. o pensamento, não raro, ainda se prende à sistematização autoritária, que descarta a liberdade individual e coletiva. Como garantir o espaço da cidadania. ignorando os indivíduos? Vivemos demasiado sob o signo da física social positivista, e do materialismo vulgar. para quem estes são falsos problemas. Mas é justo a falta de respeito pelas individualidades autônomas que distingue o despotismo. Nas greves e manifestações de massa, embora estas sejam formas coletivas de luta. a polícia sempre escolhe certas pessoas. isolando-as de seus iguais. Normalmente os "eleitos" são os líderes que superam os outros pela coragem e lucidez, os que têm uma individualidade mais rica, e livre. Sempre que se estabelece a tirania, na vida política ou cultural, ela só consegue atingir seus fins manipulando a força física, a propaganda, os monopólios jurídicos e os da gestão sobre o excedente econômico. "Para reunir todos os cidadãos de um Estado numa perfeita conformidade de opiniões religiosas, é preciso tiranizar os espíritos, constrangê-los ao jugo da força (...) a força apenas produz hipócritas. e por consequência. almas vis" (Beccaria, Dos Delitos e das Penas). Quem ameaça as almas, arruína os corpos.

Terminemos. Para falarmos de liberdades, e de sua contextualização, precisamos verificar em quais planos elas são negadas. No Estado e sociedade contemporâneos, tudo indica que forças agem no sentido das tiranias e no da liberalização. Mesmo no Irã, onde o agir fanático atinge seu cume, notamos que existe oposição. Felizmente, o conceito de totalitarismo é apenas um limite. Jamais uma sociedade inteira une-se totalmente aos poderes vigentes nos Estados, com suas ideologias. Mesmo sob Hitler, Stalin, Mussolini, Franco, e tantos outros, indivíduos e movimentos resistiram, no interior do país ou no exílio. Esta também é uma esperança: o silêncio imposto é terrível, mas passe. Hoje, sabemos mais do que nunca, "é impossível a dignidade humana sem que acabe a miséria, mas também é impossível uma felicidade adequada ao homem, sem o aniquilamento das antigas e novas formas de submissão". ([20]) Perene dialética entre o individual e o coletivo, quando as sociedades livres respeitam os dois lados da cadeia, mas as escravas apelam para a mentira de um coletivo, lógica e ontológicamente acima dos indivíduos.

Foi este o desafio enfrentado pelo pensamento laico após a Revolução Francesa, o Terror, o Termidor, a Contra-Revolução vitoriosa na aparência. Muitos Estados, através de seus ideólogos, acentuaram o elemento ético - objetivo - contra o moral – a subjetividade individualízada-- de forma constrangedora. No Brasil, tivemos péssimos resultados desta equação difícil, para usar os termos de Ernst Bloch. O anti-Iiberalismo, forte entre nós, possibilitou a emergência de teorias sanguinárias, cuja pretensão de limitar os direitos individuais, escarnecidos como "individualistas", culminou nas várias formas de tortura.

Isto foi antecipado na prática e na doutrina jurídicas de Carl Schmitt e pares. Não existem indivíduos, pensava aquele autor: "o homem, na realidade, pertence a um povo e a uma raça. até nos mais profundos e inconscientes movimentos da alma, até a mais fina fibra cerebral". Donde, o estranho, qualquer um, "pensa e entende diversamente, porque foi feito de um outro modo" ([21]) Em 13 de julho de 1934 Hitler proclamou-se, no Reichstag, "juiz supremo" do povo alemão. Comenta Schmltt, encantado: "A autoridade de julgar do Füher nasce da própria fonte do direito (...) Todo direito nasce do direito à vida do povo".([22])

Se quisermos guardar um mínimo de liberdade, mesmo para as massas populares. precisamos cautela máxima, portanto, ao empregarmos discursos que podem acentuar, em nome de certo "anti-egoísmo", o sujeito abstrato, "O Povo". Infelizmente, este traço "Völkisch" marca muito discurso moderno com pretensões libertárias. Sob a escrita da Aufklärung francesa, e modema em geral, jazem os textos de Spinosa. Ninguém assumiu tão ardentemente a defesa da liberdade humana do que este judeu perseguido pelas múltiplas ortodoxias de sua época. O último capitulo do Tratado Teológico Polftico deveria servir como adendo, em toda e qualquer Constituição politica livre. "Se a escravidão dos intelectos é norma do regime monárquico, não podemos admitir sua eventualidade numa democracia". O fim último do politico, pensa o filósofo, "não é a dominação, nem a repressão dos homens, nem o jugo de uns pelos outros".

Utopia? Costumam os canalhas utilizar semelhante frase no sentido de encobrir o domínio das mentes e corpos finitos. Segundo eles, o "realismo" exige que tudo que tenha sido, continue e permaneça igual. Desde que, evidentemente, lugares de mando lhes sejam garantidos nas igrejas, Estados, instituições de poder. Para Spinosa, ao contrário, a função poHtica "não é transformar homens racionais em bestas feras, ou em autômatos". O alvo torna-se "dar-lhes a plena segurança no uso de seus corpos e mentes. Depois disto, eles estarão em condições de raciocinar mais livremente, não se enfrentarão mais com os instrumentos do ódio, cólera, astúcia, vivendo a justiça. Portanto, o fim último da organização social é a liberdade."

O governante autoritário é o verdadeiro subversivo, no Tratado Teológico Politico. Quando ordena o que deve ser pensado e dito. obriga os governados a separar suas palavras de seu raciocínio. "A boa fé, indispensável à comunidade política, diz ele, se corrompe, encorajando-se os traços detestáveis da lisonja, perfídia, quebra dos melhores costumes". Qual a eficácia das leis contra a livre opinião? Resposta spinosana: "elas atingem os homens retas, e deixam intactos os celerados".

'Affranchissons le Tage, et laissons faire au Tibre.
La liberté n'est rien quand tout le monde est libre;
Mais iI est beau de I'être, et voir tout l'univers
Soupirer sous le joug et gémir dans les fers;
II est beau d'étaler cette prérogative
Aux yeux du Rhône esclave et de Rome captive;
Et de voir envier aux peuples abattus
Ce respect que le sort garde pour les vertus. ([23])

Este discurso de Viriato, na peça Sertorio de Corneille, é citado por Jaucourt no verbete "Liberdade", da Enciclopédia Francesa. A confortável, para os colaboracionistas, tirania romana é exorcizada pelo hino à liberdade dos Lusitanos. Nossa herança é semelhante respeito, ou integramos o número dos povos invejosos que jamais atravessaram o Tejo? Que a comemoração da Inconfldência Mineira. e dos eventos franceses, nos sirvam de ânimo paca atingirmos o auto-respeito e a liberdade. Nossa gente os merece.

ROBERTO ROMANO
Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado pela mesma Universidade e pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, onde também fez doutoramento. É professor de Filosofia Política na Universidade de Campinas. Colaborador de jornais e revistas, é au-tor-de diversos livros, destacando-se, dentre eles, Brasil: Igreja contra Estado; Conservadorismo Româtuico; Lux ln Tenebris. Atualrnente desenvolve pesquisa sobre: A Filosofia Política de Diderot - o estatuto revolucionário de sua escrita (Investigação desenvolvida no Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP).


[1] Filosofia do Direito, § 34, Adição.

[2] Entre muitos, cf. D'Hondt, J.: Hegel, philosophe de I'Histoire vivante. Paris, PUF, 1966; Hegel., sa vie, son oeuvre, avec un exposé de sa philosophie. Paris, PUF, 1967. Também: Ritter, J: Hegel et la révolution française. Paris, Beauchesne, 1970. Cesa, Cl.: Hegel Filosofo  Politico. Napoli, Guida Bd., 1976.

[3] Crítica da  Razão Pura nota ao "prefácío" de 1781.

4 Conflito das Faculdades, citado em Romano, Roberto: "Kant e a Aufklärung” in Corpo e Cristal, Marx romântico (Rio, Guanabara) p. 87-88.

[5] Hegel, G.W.F. Lições sobre a Filosofia da História. IVa. parte, 3. Capítulo Terceiro, século das Luzes e Revolução.


[6] Maxime Leroy: Histoire des Idées sociales en France, v. 2, Paris, Gallimard, 1962, p. 34.

[7] Filosofia do Direito. § 244.
[8] Principios do Socialismo, lembrado por Leroy, M. op. cit.

[9] Cf. Burckhardt, C. Richelieu. Paris. Laffont, v.2, 1970, p- 44.
[10] Cf. Schmítt, Carl:  Le categorie del "politico". Bologna, II Mulino, p. 88 e seguintes.
[11] "Discurso sobre la Dictadura", 1849, in Obras Completas de Donoso Cortes. Madrid, BAC, 1970, v. 2, p. 305 e seguintes.

[12] Cf. Máxime Leroy, op. cit. p. 53.

[13] Cf. Rodolfo Konder, Anistia Internacional, uma porta para o futuro. Pontes/Unicamp,
1988. p 16.

[14] e 15 Konder, R., op. cit. páginas 24 e 45 (e seguintes).

[15] Konder, R., op. cit. páginas 45 (e seguintes)
[16] Cf. Paulo Sérgio Pinheiro: Escritos Indignados (SP), Brasiliense. 1984.

[17] Cf. M.V. Benevides e R.M.F. Ferreira: "Respostas populares e violência urbana: o caso do linchamento no Brasil" in Crime. violência e podcr. P.S. Pinheiro (0rg.) São Paulo, Brasiliense, 1983, p.225 e ss.

[18]  Vanilda Paiva(org.) Igreja e Questão Agrária. Rio, Loyola, 1985.

[19]  Brigagão, Clóvis: A Corrida para a morte. Rio. Nova Fronteira, 1983.

[20]  Cf HansMayer: Aussenseiter. Frankfurt am Main, 1975.

[21] Cf "Stato, Movimento, Popolo" ia Principii politici dei nazionalsocialismo. Firenze,1935. p.230.

[22]  “Der Füher schützt das Recht". Mesmo autor.

[23] Atravessemos o Tejo, esqueçamos o Tibre. A liberdade é nada, se todo mundo é livre! Mas é belo sê-lo e ver todo o universo suspirar sob o jugo e gemer no cativeiro/ É belo exibir tal prerrogativa/ Aos olhos do Reno escravo e de Roma cativa! E ver a inveja dos povos abatidos, Face a este respeito que a sorte guarda para as virtudes" (Sertorius, Ato IV, cena II), Pléiade, Théatre Complet de Corneille, V. 2, p. 649,