quarta-feira, 11 de maio de 2016

Roberto Romano : Sobre a imprensa, prós e contras, uma análise crítica.


Sobre a Imprensa.



A luta pela imprensa livre entra no campo das iniciativas democráticas. Os dois conceitos —democracia e livre imprensa— são indissociáveis . Mas é preciso, para não cair em ilusões, determinar o que se entende com os dois vocábulos.  Façamos um resumo do problema, seguindo os passos da imprensa na história. A forma escrita, tal como a conhecemos, tem início na Alemanha, muito provavelmente em Bremen, espalhando-se por Colônia, Frankfurt, Berlim, Basel, Viena, Amsterdam, Antuérpia. ([1]) A imprensa segue quase simultâneamente, na Alemanha e na França, a luta pela liberdade de expressão e de publicidade, o que não impede o fato de que parcela significativa dos impressos (livros, jornais, etc) sejam de iniciativa governamental. ([2]) Em 1566 os dirigentes de Veneza ordenam que os relatórios da guerra efetivada na Dalmácia sejam lidos publicamente. Para tal exercício seria preciso pagar com  uma pequena moeda cujo nome é “gazetta”. Mas já em 59 AC em Roma eram lidos folhetos chamado Acta Diurna, arquivados para quem os quisesse consultar. Com muita probabilidade, o termo “diário” tem semelhante origem. E os chineses, antes dos europeus, inventaram o livro impresso em moldes.  No ano 1045 foram empregados na China os tipos móveis. Marco Polo descreveu os procedimentos chineses em 1295. Naquela cultura foi usado, pela primeira vez, o papel para impressão. ([3])

Na Europa o jornalismo nasce das feiras livres, onde eram trocados mexericos e informações. Emery indica algumas características do jornalismo: o veículo deve vir ao público pelo menos uma vez por semana e ser produzido por meios mecânicos (para o distinguir dos panfletos). Ele precisa estar ao alcance de todos os que podem pagar, sem que se leve em conta a classe ou interesses particulares. O seu interesse deve ser do público em geral, ao contrário dos veículos que comunicam algo de interesse religioso ou comercial. O  seu publico deve ter formação literária comum, a circulação deve deve ser estável e não efêmera. ([4]) Dentre as marcas de um meio da imprensa está o preço baixo o bastante para atingir massas. “A revolução” continua Emery, “não estava tanto no veículo, talvez, como no público”. Quase todos os elementos do jornal, por exemplo, —artigo de fundo, ilustrações, humor, esporte, política— eram conhecidos antes do jornalismo, exceto os anúncios. “No século XVI, como hoje, o incomum e o sensacional forneciam a maior parte do texto” (Emery). A máquina impressora apenas aumentou a disponibilidade dos escritos a um público mais numeroso.

Vejamos alguns elementos apresentados por Emery, quanto ao nexo entre jornalismo e cultura. A imprensa diminuiu o custo da educação. Textos antes caros, de acesso difícil mesmo para alfabetizados, tornam-se fáceis de adquirir. Com otimismo, pode-se dizer que o saber “não mais seria de propriedade exclusiva das classes privilegiadas”. Veremos, abaixo, algumas análises conservadoras que não percebem tal democratização do saber como algo desejável. O mercado, no entanto, segue o plano da mesma lógica do aumento no campo dos que sabem: maior o número de leitores, menor o custo do material. Emery adverte contra o otimismo aplicado ao crescimento da midia. “Não é que a leitura produza automaticamente a reflexão —as pilhas de revistas sem conteúdo em qualquer banca de hoje refutam este argumento— mas provoca nas pessoas o interesse pelo mundo que as cerca. Ao findar da Idade Média, várias tendências romperam a crosta dos costumes arraigados e penetraram na ´idade da discussão´ que é progressiva, visto que constitui um prêmio para a inteligência”. ([5]) Segue Emery o seu diagnóstico matizado sobre as benfeitorias da midia: “o aperfeiçoamento da imprensa, as idéias e a informação atingiam um público leitor carente de necessária base e experiência literária para o raciocínio. Por conseguinte era necessário apelar, de início, mais para as emoções do que para a razão. Quando as pessoas reagem à emoção mais do que ao raciocínio, elas esquecem freqüentemente a segurança da disciplina. (...) Essa era a razão por que as classes dirigentes temiam a imprensa”.

Se indica o receio dos poderosos, ricos donos da sociedade e do Estado, Emery não deixa de mostrar o quanto a imprensa permite a eclosão do imperativo democrático da accountability. “Depois da invenção da máquina impressora , o povo podia verificar os fracassos e as realizações de seus governantes de modo mais efetivo. Podia estabelecer a responsabilidade de uma diretriz pública”. ([6])

A imprensa acompanha o nascimento do Estado moderno, tanto no continente europeu quanto na Inglaterra. A importância dos panfletos políticos e religiosos, bem como dos livros polêmicos é clara, tanto no continente quanto na ilha britânica, nos séculos XVI e XVII. Basta recordar os libelos puritanos e textos como Le Reveille Matin des François que ergueram grande debate ao longo daqueles dois séculos. Em livro clássico sobre a raison d´ état no período de Richelieu, Etienne Thuau mostra o peso dos libelos, panfletos, jornais dirigidos pelo governo contra os católicos e protestantes, e também contra os inimigos externos da França, no sentido de conquistar e domar a opinião pública. No capítulo 5 do livro (“Le courant étatiste et le triomphe de  la ´raison divine´”), ele mostra o quanto os governantes e os seus críticos usavam panfletos, jornais, livros na luta pela opinião pública. Thuau sublinha um traço estratégico da propaganda: ela é maniquéia. “Aos publicistas teocráticos que qualificavam a razão de Estado de ´razão do diabo´ ou ´razão do Inferno´ os panfletários cardinalistas replicam os acusando de adotar...´a mais negra Teologia do Diabo´”. ([7]) Todo o capítulo mostra as estratégias construídas segundo o princípio de que “governar é fazer acreditar”. Vale a pena repetir o que diz o próprio Thuau: “é uma verdade reconhecida que a autoridade é inseparável das ideologias, dos mitos e das representações que os homens formam a seu respeito. O poder não tem sua fonte único no constrangimento. Ele repousa na aliança do constrangimento e das crenças”. Assim, falando do poder absolutista sob Luis XIII ele cita os escritores que “se impõem porque sabem empregar o poder da palavra, e também as suas armadilhas”. No jornal Le Mercure Français (1625) pode-se ler: “a insolência da lingua e da pena precede com frequência a tomada das armas”. O Cardeal de Retz diz, nas Memórias, que “a monarquia não é uma construção da razão, mas um mito social”.

Thuau cita longo trecho de Gabriel Naudé nas Considerações políticas sobre os golpes de Estado : o príncipe é obrigado a mentir ao povo, ele deve “manejá-lo e persuadir por belas palavras, seduzi-lo e enganar pelas aparências, ganhá-lo e colocá-lo a serviço de seus alvos por pregadores e milagres sob pretexto de santidade, ou por intermédio de boas penas, fazendo-as calar os livrinhos clandestinos, manifestos, apologias e declarações artisticamente compostas, para levá-lo pelo nariz, e lhe fazer aprovar ou condenar, só com a etiqueta da sacola, tudo o que ela contem”.  A eloquência dos pregadores, diz Naudé, presta ao poder um serviço igual ao das armas. ([8])

Richelieu tinha o hábito diário de se reunir com os secretários para examinar os documentos que vinham até ele, do rei e de outras autoridades, definindo a forma pela qual eles deveriam surgir, como notícias, ao público, com o disfarce necessário. ([9]) Richelieu já conhecia, assevera Thuau, a arte de re-escrever a História e seus próprios textos. Ao reeditar seu discurso aos Estados em 1614, ele o modifica porque não coincide mais com sua nova política. Os demais itens apresentados por Thuau são utilíssimos para entender o papel da imprensa no alicerce do absolutismo, na guerra pela opinião pública.  Richelieu autorizou o primeiro jornal francês, La Gazette, sob direção de Th. Renaudot (1631), com privilégio monopolístico da informação. Tal privilégio, como a onipotência real, é mito. Mas tem muita força política.

Emery evidencia o quanto a imprensa e a censura foram dois lados essenciais do reinado Tudor na Inglaterra, de Henrique VIII até Tiago I. Sob eles, “a imprensa se tornou objeto do interesse real, pois essa vigorosa dinastia era conhecida pelos seus esforços para chamar para si todos os poderes possíveis. Henrique VIII começou o controle da imprensa com uma lista de livros proibidos. Isso foi em 1529 e teve essa medida por finalidade levantar um dique contra a crescente onda do protestantismo”. O rei proíbe que livros estrangeiros sejam vendidos na Inglaterra. Emery mostra com detalhes a luta dos que resistiram aos alvos de propaganda e de censura determinados pela casa real. Depois, mostra a ascensão da burguesia com seu dinheiro e teses políticas, sobretudo a defesa sem freios da propriedade. E termina nosso historiador afirmando que “o progresso da liberdade de imprensa demonstra que ela ”pertence aos que governam. Se o poder estiver concentrado nas mãos de um monarca, ou de uma elite, o público não terá necessidade de receber informações e idéias que digam respeito a assuntos políticos e sociais. (...) De outro lado, se o público participa do governo, ele deve ter acesso à informação na proporção do lugar que ocupa no esquema político e, nesse ponto, as restrições da imprensa são atenuadas. (...) Quanto mais direta for a prestação de contas do governo diante das massas, maior é a liberdade de imprensa”.  Além disso, “quanto mais seguro é um governo, menos medo tem de se enfraquecer e maior liberdade concede à sua imprensa”. ([10])

A função “nobre” da midia impressa nem sempre suscita análises compreensivas. Basta recordar o crítico Karl Kraus, “o branco pontífice da verdade” como o designou o poeta Georg Trakl. Em artigo intitulado “A imprensa como alcoviteira” ([11]). Kraus inicia compara a jovem prostituta e o articulista econômico do jornal. A primeira seria moralmente superior ao segundo, pois ela “nunca sugeriu, como ele, assumir altos ideais”. Assim, superior ao diretor do jornal é a alcoviteira. O intermediário da opinião, “que vive da prostituição espiritual de seus dependentes, prejudica o mister da alcoviteira no terreno que mais lhe compete”. É conhecida a guerra do autor contra os anúncios eróticos postos nos jornais. Tal luta, diz ele, não se baseia em um desdém puritano. Os anúncios são imorais apenas em relação à pretensa missão ética da imprensa, como seria inconveniente uma liga em defesa da moral em jornais que pregam a liberdade sexual. “Como, de resto, seriam os acessos de moralismo de uma alcoviteira imorais, não em si mesmos, mas relação ao seu múnus”. E fulmina Kraus: “moral, nesse sentido, é a defesa da alcoviteira contra a concorrência desleal dos editores dos grandes jornais, que exercem aquele ofício sob riscos bem menores”.

Logo,  “o Estado que desaloja os casais de amantes de uma casa de encontros não tutela o bem jurídico da moralidade pública, mas o da ética profissional da alcoviteira. Mas que numa casa a fachada se consagre à educação do povo e por trás se efetivem proveitos materiais combinando rendez-vous, lhe parece a mais natural e moral das destinações do edifício como casa de prazer, e basta. Viúvas miseráveis, que vivem dos ´encontros clandestinos´, são levadas aos tribunais. Os proprietários dos jornais colocam ao dispor e põem sua administração para o desenvolvimento da mais vivaz atividade erótica, em toda a sua variedade e continuam a trabalhar imperturbados”.  O meretrício hoje, termina Kraus, “se prostitui agregando-se ao mais sórdido jornalismo, e se é penoso ver os mais famosos expoentes da ciência colocar-se sob ele, como colaboradores (...) arrastando o carro da patifaria financeira e intelectual, assim envilece encontrar numa comprometida moral filistina uma legião de honestos servidores do sexo”.


É clara a condenação de Kraus à imprensa, qualificada por ele como forma de prostituição espiritual dos intelectuais e como trabalho de proxenetismo dos proprietários e editores. Passemos a um outro crítico, Martin Heidegger. Em Ser e Tempo (§ 37) o filósofo analisa a fala equivocada (Die Zweideutigkeit) não apenas entre cientistas e público, mas na própria “comunidade acadêmica”. O saber, na era de sua divulgação máxima, tornou-se dificilmente distinto das suas várias expressões vulgares. Com a imprensa “tudo assume a aparência de ter sido o verdadeiro captado, colhido, expresso, mas no fundo, nada o foi”. Num mundo onde a informação se acelera ao máximo, a parolagem dogmática de intelectuais e jornalistas é a norma : “Cada um, não apenas conhece e discute o que se passou e o que está vindo, mas cada um sabe também falar sobre o que deveria ocorrer, sobre o que ainda não ocorreu, mas deveria ‘evidentemente’ ser feito. Cada um sempre farejou e pressentiu de antemão o que os demais farejaram e pressentiram. Este modo de seguir pelos traços e pelo ouvir-dizer … é insidioso o bastante para que o equívoco faça entrever ao existente possibilidades que, ao mesmo tempo, ele abafa no germe”. Na sociedade da informação os termos científicos e acadêmicos circulam de modo imediato. ([12])

Heidegger, como boa parte dos filósofos contemporâneos, se nutre de Platão e dos seguidores de Platão, embora faça parecer que os combate. Citarei apenas dois textos, dos mais influentes na formação da ética ocidental, do helenismo aos nossos dias. São dois tratados complementares de Plutarco, um sobre a fala em excesso e imprudente e outro sobre a curiosidade. No primeiro ([13]) o médico e filósofo Plutarco propõe alguns remédios para a cura do equívoco e da garrulice. Trata-se de uma tarefa quase impossível, pois o tratamento supõe o uso do remédio (pharmakon) que, no adoecido de palavrório, perdeu validade. De fato, o que fala em demasia gastou o poder do logos. Para retirá-lo de sua doença é essencial o uso do mesmo logos. Como fazê-lo ouvir a razão (na lingua grega, logos e razão identificam-se) se ele apenas fala e não ouve e, portanto, não arrazoa antes de jogar palavras ao vento ? Tal é o primeiro sintoma, diz Plutarco, do nosso adoecido : “a lingua mole torna-se impotência do ouvido”. Mas é pior: a surdez do falador é deliberada, o que o faz criticar a natureza que lhe deu apenas uma lingua e dois ouvidos. ([14]) Na parolagem sem freios a cura é árdua. O remédio a ser usado, neste caso, é o próprio veneno: trata-se do logos, ele mesmo doente. Se as demais insanidades podem ser curadas pela palavra ou podem ser entendidas ([15]), neste caso a situação é “embaraçosa”, como traduz Amyot, ao ler o paradoxo inicial do texto plutarquiano. O logos adoecido, fluxo instável, não tem solidez alguma. No acometido de logorréia ele é menos remédio e mais veneno. Naquelas pessoas só a boca opera, enquanto o ouvido permanece trancado.

A palavra tem como serventia trazer a credibilidade. Se dela ocorre uma inflação, perde a sua força. O perigo maior é quando à garrulice somam-se outras doenças, como o culto do vinho. “O que está no coração do sóbrio está na lingua do ébrio”. Dos locais a serem temidos, quando um governo possui tagarelas a seu préstimo, a barbearia é a mais ameaçadora. O rei Arquelau respondeu ao barbeiro gárrulo que lhe perguntou como desejava cortar o cabelo : “em silêncio!”. Marius dominava a região de Atenas, mas um bando de velhotes, conversando no barbeiro, deu a entender aos espiões que um setor da cidade estava desguarnecido. Sylla, sabedor do ponto fraco, ataca à noite por ele e quase arrasou a cidade, a qual ficou cheia de cadáveres ao ponto de um riacho de sangue invadir o Cerâmico. Quando ocorreu a conspiração para assassinar Nero, um inconfidente ao ver passar certo prisioneiro rumo à cela, cochichou para o infeliz que ele deveria tudo fazer para resistir um dia a mais, pois então estaria libertado. O condenado achou de bom aviso contar o que ouviu para Nero. O resto é conhecido. Conselho de Plutarco: “se deixas escapar o segredo para depositá-lo em outra pessoa, recorres à discreção alheia, mas renuncias à tua. Se o parece parece contigo, tua perda é justa; se ele for melhor do que tu, salvas-te contra toda lógica ao encontrar, para teu bem, um outro mais seguro do a tua pessoa. ´mas o amigo é um outro eu !´ ([16]) Sim, mas ele também possui um amigo, a quem confidenciará… e que confiará em outro… (…) a palavra que permanece na primeira pessoa é um segredo de verdade, mas desde que passou para uma segunda, adquire o estatuto de de rumor público”.

O texto de Plutarco traz muitos exemplos unidos aos rumores políticos. O Senado romano manteve reuniões secretas e a mulher de um senador exigia de seu marido informações sobre os encontros. O politico finge anuir e diz-lhe o “segredo” seguinte : tratava-se de uma ave, com lança e capacete dourado, que surgira na cidade. O rumor seguiu até o forum, antes do homem que o inventou. Para punir sua mulher, ao chegar em casa fingiu que a coisa era séria e que, pela inconfidência, seria levado ao exílio. “Que desejas partilhar comigo?”. A resposta do poeta Filipides ao rei Lisímaco é a correta: “Tudo, menos teus segredos”.

Enfim, a “cura” do palavrório, segundo o médico e filósofo Plutarco, não pode ser conseguida de modo violento, mas criando-se outros hábitos, costumes. O autor insiste nesse ponto, essencialmente ético : o falador deve ser treinado para ficar em silêncio, prestar atenção ao dito (treinar o ouvido), e fugir das conversas que mais agradam aos faladores. Se militar, o falador deve ser afastado das narrativas heróicas e assim por diante. Diríamos que os pescadores devem ser afastados de histórias de pescaria… Isso porque se entram no fluxo discursivo predileto, podem falar mais do que o necessário para engrandecer e embelezar o relato, o que dirige a lingua ao exagero sem o controle do pensamento. Basófias são fonte segura de segredos que se escoam. Um conselho: quando não se puder deixar de vez as rodas palavrosas, tente-se passar da oralidade à escrita. A literatura, embora ainda possa exercer a indiscrição (certo filósofo foi chamado “pena que berra” em Atenas) pode ser mais controlada pelo autor. Outra cura: fazer o linguarudo freqüentar pessoas diferentes dele e deixar o círculo dos seus iguais. O respeito de opiniões ponderadas lhes fornecerá o hábito de calar.

Além da cura ética (mudança da postura, héxis) Plutarco recomenda reflexão e vigilância antes de falar. Diante da possível enunciação, perguntar sempre: “qual o propósito? É urgente? Que se ganha ao falar? O que se perde?”. A via régia foi aberta por Simonides, o poeta: nos arrependemos com frequência do que falamos, mas nunca do que silenciamos ([17]) e que o treinamento tudo pode
dominar. Muitos pensadores modernos, para falar do segredo e da necessária disciplina que ele exige, usam Plutarco mas esquecem de indicar a fonte. É o que se passa com Heidegger. Em sua análise da comunicação moderna, o filósofo sublinha a perda radical do segredo na ordem da publicidade. No mundo em que reina o “se”, todos os indivíduos estão sujeitos à discrição alheia. Ou seja, o que em Plutarco era uma doença de alguns, em nossos dias tornou-se pandemia. Mas o alheio, agora, o outro, não possui determinação certa, ele pode ser alguém e ninguém ao mesmo tempo. Quando o indivíduo fala algo, ou faz, afirma de imediato sempre a culpa como advinda “dos outros”. Trata-se de um truque bem conhecido pois a fórmula “os outros” recolhe também quem fala ou faz. “Os outros” surgem na imprensa, no ônibus, nos passeios, nas reuniões sociais, e neles todos são dissolvidos, eu incluído. Trata-se de uma indiferença ou indistinção generalizada, na qual pouco importa o que eu ou você fala, porque ambos “falamos” o que “se fala” e “como se” fala. O discurso perde o sabor individual. Mesmo no “escândalo”, não ocorre falha entre o público e o privado: ambos são diversificações do indistinto modo de agir e julgar pré-estabelecido, o “se” (fala-se, diz-se, ouviu-se dizer que, etc). Julgamos escandaloso o que “se” (o público) julga escandaloso.

Heidegger, como indiquei, identifica na midia a grande força de pasteurização ou esmigalhamento dos indivíduos e da linguagem. Na midia nada é secreto, porque nela inexiste o contacto efetivo com o que é, mas apenas com a média das percepções e da linguagem sobre os eventos e os seres. A mediania não desce fundo nas coisas e nas palavras, ela inscreve-se num horizonte medíocre que “facilita” a compreensão de todos. Desse modo, a midia não admite exceções, ela é absolutamente democrática e igualitária. Assim, ela não autoriza a surpresa diante de novos conhecimentos. Se aparece algo assim, ela sempre procura “mostrar” que o saber alegado é antigo. Na midia não existe reconhecimento do que foi conquistado em muito tempo e pesquisa. A novidade é a sua regra, o instantâneo o seu procedimento, o público é o seu alvo e a sua pressuposição. Com a mediania, “todo segredo perde a força e o mistério. A preocupação da media evidencia uma nova tendência do existente (Dasein), e nós a chamaremos o nivelamento de todas as possibilidades de ser”. Esse nivelamento constitui a essência da “opinião pública”. O referido público, como o freguês no mercado, sempre está com a razão e “decide” a correta interpretação de tudo : aplausos mais ou menos longos decidem a verdade, a beleza, a maestria técnica dos candidatos, nos programas de auditório. O mesmo ocorre nas pesquisas de opinião pública que decidem quais são os melhores aspirantes ao governo do Estado. O que é o “público” no qual imperam os hábitos encobertos pela forma do “se” ?

O “se” é a impessoalidade coletiva que “descarrega” os indivíduos de si mesmos, deixando-os sem qualquer responsabilidade ou culpa. Eles “fazem” ou “fizeram” o que “se” faz. Desse modo, nada é serio para os indivíduos, nada é grave, tudo é frívolo. Eles jamais têm culpa e tudo é objeto de risadas, comentários, falatórios, fofocas. A covardia penetra o comportamento mediano obediente ao “se”. Nada, alí, que não pudesse encontrar em Rousseau uma descrição cortante. ([18]) Quanto mais o “se” parece manifesto em toda parte, mais ele é imperceptível e dissimulado. E agora entramos na parte de Ser e Tempo que retoma, sem citar, o texto de Plutarco indicado acima, o De garrulitate. O § 35 escrito por Heidegger tem a mesma estrutura e andamento igual ao do tratado plutarquiano. Indiquei, ao passar por aquele texto que o primeiro ponto nele inscrito é a dificuldade de curar o palavrório, visto que a doença está inserida no instrumento da cura, o logos que deve ser ouvido pelo enfermo. Este não escuta porque tem toda a sua alma voltada para a lingua. Heidegger, no início de seu parágrafo distingue entre escutar e ouvir.

Ouvir e compreender agarram-se ao que se diz, enquanto se diz. Não ocorre preocupação imediata com o objeto, com o que se diz. Quando alguém fala sem prestar atenção ao que é falado, apenas transmite e repete a fala. Quanto mais pessoas ouvem um discurso, mais ele toma um caráter autoritário, isto é assim porque assim se diz. Essa parolagem chega ao máximo quanto rompe-se todo elo entre a palavra e o objeto que ela deveria colher. E a parolagem oral ou escrita, é nutrida por leitura maquinais. Temos então a compreensão média, repetitiva, pública. (13) Tal forma de compreender é dogmática e dispensa todas as distinções entre a fala e os objetos. Ela é a verdade em andamento. A garrulice não dissimula, não se esconde em nenhum segredo, porque ela mesma já é dissimuladora. Quando um linguarudo fala, ele esconde sem saber ou desejar o que deveria ser dito, joga um véu de sons acima dos entes que deveriam ser pensados. Quando fala o tagarela, ele impede toda discussão posterior. “Tudo está dito”. E nada deve ser perguntado. Desaparece o segredo no mais banal, na opinião publica. ([19])

No De garrulitate, Plutarco afirma que uma doença muito próxima, ou gêmea do falatório é a curiosidade. ([20]) O tratado em que o moralista analisa a curiosidade possui acentuado sentido político entre os gregos. Como indica Dumortier ([21]) a prática da polupragmosune ([22]) reside na tendência a se imiscuir indiscretamente nos assuntos alheios, sejam eles privados ou públicos. Os atenienses criaram inclusive um termo para designar o sujeito que especula o que não lhe diz respeito: sicofanta (na origem, com bastante probabilidade, sicofanta era o delator dos que roubavam figos, nas comédias de Aristófanes os delatores e os sicofantas são ridicularizados). O emprego de alcagüetes marcava os tiranos. Na República, justamente quando Platão traça a pintura sinistra do tirano, entra a imagem dos mercenários que, caso sua terra possua cidadãos prudentes e sábios, dela saem para servir em terra estranha “como ladrões, furadores de muralhas, cortadores de bolsas, afanadores de roupas, pilhadores de templos, praticantes de tráfico escuso; por vezes, caso sejam capazes de falar, tornam-se sicofantas, falsas testemunhas, agentes da corrupção”. ([23]) Esta gente é empregada pelo tirano para dominar os cidadãos livres da polis. De importância estratégica, no entanto, a atividade de sicofanta, delator a soldo do tirano. Mas para delatar é preciso seguir o segredo onde ele se encontra.

A diatribe de Heidegger contra o palavrório (Gerede) tem origem em Platão, por mais que o pensador germânico se coloque em sentido contrário ao autor dos Diálogos. No que tange ao palavrório da massa, da imprensa e dos universitários modernos, combatido por Heidegger, a origem da crítica se localiza em Platão, tanto na República quanto nas Leis. No caso das Leis, a base do processo contra o falatório situa-se na crítica endereçada aos poetas, quando estes últimos abalam a medida prudencial a que deveriam se submeter, ameaçando a vida pública.

A justa medida, diz Platão, é essencial na ordem política como também nas relações do corpo (alimentos) ou técnicas (nos navios, não se pode usar mais velas do que o preciso), na alma não podem ser usufruídos direitos excessivos. Sem justa medida tudo se inverte. Alí a abundância de carnes que leva à doença, aqui a ilimitação (hybris) que gera a injustiça (adikia). A alma dos jovens não pode suportar o peso do poder, logo ela é infectada da mais grave doença, a desrazão (anóia). Contra tais excessos cabe ao legislador prudente, graças à justa medida, tomar precauções.

E chega o instante dos pesos e contra pesos do poder. Em Esparta, em vez do rei único, existia uma dupla de reis, o que restringe o poder à justa medida. Além disso, o voto de 28 anciãos que possuem, nos assuntos mais graves, poder igual ao dos reis. Há um terceiro salvador, com o poder dos Eforos, um poder que se aproxima do sorteio. Assim, o governo de Esparta é uma combinação de poderes que leva à salvação própria. Juramentos não controlam a alma de um jovem candidato à tirania. Importa limitar a medida dos poderes, fundir num só os três poderes.

No mundo conhecido, adianta Platão, existe de um lado o poder autocrático dos Persas e o temperado de Esparta. É preciso sempre o tempero, o acorde correto. Esta teoria do poder tem como pressuposto uma visão do universo e da sociedade como harmonia. E na ordem política, deve ser mantida a ordem antiga sob o domínio das antigas leis. Nela o povo não tinha soberania (ele não era κύριος) nos assuntos, mas era escravo voluntário das leis.

Quais leis seriam as referidas? As relativas à música. Na época antiga a música era dividida segundo espécies e formas próprias. As preces aos deuses eram uma espécie de canto, os hinos. Depois havia uma espécie de canto oposto: lamentos chamados “trenos”. Os peans eram uma espécie distinta, outra ligada ao nascimento de Dionisos seria o ditirambo, etc. Reguladas as coisas não era permitido abusar de uma das formas, transpondo-a para outras. O poder de julgar sobre elas e julgar com conhecimento de causa e punir os transgressores não pertencia às vaias ou aplausos, mas era decidido por homens sábios naquela cultura que tudo ouviriam em silêncio e, com a varinha nas mãos, estabeleceriam a ordem e advertiriam as crianças e a seus professores. Esta a ordem aceita pelos cidadãos, sem que eles tivessem a audácia de recorrer à gritaria para dar sua opinião.

Os poetas foram os primeiros a quebrar as leis da música. Eles eram dotados para a poesia mas nada conheciam da Musa enquanto fonte de legitimidade e fé pública, eles misturam as formas e levam tudo a se confundir, pretendem mentirosamente, em sua desrazão involuntária, que na música não existe lugar para alguma retidão e que, além do prazer que se encontra no seu gozo, não existe meio correto de decisão, melhor ou pior. Eles inculcam na massa o hábito de infringir as leis e a audácia de se acreditar capaz de decidir. Resultado: antes, o público não falava no teatro (era ἄφωνος), depois, começou a falar como se entendesse para saber o que é belo na música, ou não, surge então uma “teatrocracia” (θεατροκρατία) depravada que substitui o poder dos melhores juízes. Se apenas em música, e em música apenas, surgisse uma democracia composta por indivíduos de uma cultura liberal, não ocorreria algo tão desastroso. Mas na verdade é pela música que se iniciou, entre nós, com a crença na sabedoria de todo mundo para julgar, a atitude subversiva. Nenhum medo os retinha, pois se acreditavam sábios, e esta ausência de medo gerou a impudência, na audácia de não temer a opinião de quem vale mais do que nós, eis a impudência detestável, efeito da audácia de uma liberdade cuja arrogância é levada ao excesso.

Embora seja possível recolher nos textos platônicos muitos elementos no sentido de nos aproximar sobre o silêncio (A Carta Sétima é um passo decisivo na condenação da escrita e da fala excessivas) também é permitido ler os Diálogos como prelúdio do mundo em que são votados ao silêncio involuntários todos os que se encontram no terreno da alteridade, todos os que não entram no campo do que supostamente é normal. Tomemos a exigência platônica de silêncio dos não especialistas em filosofia ou música (para Platão, as duas ordens se confundem). Poderíamos nos espantar se no século dezoito, na Inglaterra e França, o teatro seja uma ocupação destinada ao consumo da elite nobre ou econômica. Os lugares são caros. Mas existe espaço para os “negativamente privilegiados” (o termo é de Max Weber), como em Paris, na platéia, os lugares em pé para os da classe média, estudantes e intelectuais. Em 1781 a Comédie-Française se instala em novo edifício e a platéia é provida de assentos. Com a nova disposição do mobiliário, aumenta o silêncio no teatro. Como diz um comentador, “não existem mais gritos vindos do fundo da sala, nem gente que comia em pé, assistindo as peças. O silêncio do público parecia diminuir o prazer de assistir uma representação. Esta reação nos permite adivinhar o sentido da participação do público”. Na Inglaterra, os nobres tinham assento no palco. Eles faziam o que quisessem naquele espaço: gritavam para seus amigos, misturados aos atores. Havia uma troca de conivências, não apenas entre atores e nobres, como entre atores e público geral. Este, por sua vez, mantinha o auto-controle. “Era objetivo e muito crítico em relação aos atores e atrizes que o faziam chorar. O público queria interferir diretamente com o ator; e o fazia graças a um sistema de ´pontos´ e um sistema chamado settling (literalmente, regulação de contas)”. Voltando a Paris, ainda no século 18. Numa das Cartas Persas o herói de Montesquieu vai à Comédie-Française e alí “não distingue os atores na cena e os espectadores na sala. Todo mundo se exibe, assume poses, se diverte. A distração, a tolerância cínica, os prazer partilhado em companhia dos outros, tais são alguns dos sentimentos contidos na concepção comum do homem ator”. ([24])

No século 19 as mutações do espaço social e das artes, permitem o surgimento de um desdobramento dos indivíduos, entre atores e não atores. “Quando a personalidade irrompe no domínio público, a identidade do homem público se desdobra. Certa minoria de indivíduos continua a se exprimir ativamente, perpetuando a tradição de homem ator instaurada no Antigo Regime. No meio do século 19, esta minoria é constituída de atores profissionais. Mas, paralelamente, se forma uma nova espécie de espectador. Este espectador não participa da vida pública, mas se abriga para melhor observá-la. Pouco seguro de seus próprios sentimentos (…) este homem à diferença do homem do Antigo Regime tem sua realização pública não mais em seu ser social, mas em sua personalidade. Se ele se mantem disciplinado e sobretudo silencioso em público, ele viverá coisas que não pode viver por si mesmo”. O espectador, indivíduo isolado, ao se tornar passivo, espera sentir mais. “Olhar a vida que passa em silêncio, eis o que significa para este indivíduo a ´liberdade´ ”. Então, “observadores silenciosos freqüentam o espaço público (…) as necessidades projetadas sobre o ator se transmutam, os espectadores se fazem voyeurs. Eles se isolam uns aos outros e se liberam por uma espécie de fantasia ou sonho desperto, olhando a vida que passa na rua. Temos aqui, em germe, o paradoxo moderno do isolamento no interior da visibilidade”. ([25])

Em Ser e Tempo, não por acaso, a análise da existência cotidiana, onde se exerce o domínio do “se” sobre as vidas públicas e particulares, antes de entrar no domínio do falatório Heidegger examina o olhar. Como sempre, seu empréstimo não confessado a Platão e a Plutarco faz o leitor não perceber que se trata, no caso do olhar, do velho tema da vista curiosa, maldosa, que busca ver o que se passa na casa alheia, ignorando a própria. Em Plutarco, os olhos reúnem duas formas de atenção: a pesquisa (zetesis) e a curiosidade, a chamada polupragmosine. Enquanto o zetetés, o investigador, usa os olhos para captar o permanente e atinge um conhecimento dificilmente comunicável, o curioso atarefado recolhe informações sobre tudo e todos, sobremodo das coisas e atos sem relevância para o Bem. Ao redor da mesma imagem, vemos se produzir, na crítica do conhecimento e da moral, duas atitudes diferentes. A mente curiosa, afirma Plutarco, é como a Lâmia mitológica. “Quando dormia em sua casa, ela depositava os olhos num vaso. Saindo, Lâmia os colocava em seu rosto e podia ver”. Todos os homens, quando não se dedicam à pesquisa e à virtude, são Lâmias : “cada um de nós…pratica a indiscrição maldosa com o olho, esquecendo as próprias faltas e taras por ignorância (agnóia), porque não tem o meio de vê-las e de esclarecê-las”. (De Curiositate, 2).

A pesquisa leva ao descobrimento de tudo, trazendo para os olhos as formas permanentes das coisas. Enquanto isso, “curiosidade é a paixão de conhecer o escondido e o dissimulado. Mas ninguém esconde o bem que possui. Às vezes nos atribuímos um bem que não temos. O curioso, em seu desejo de saber o que vai mal entre os demais, é tomado pela maldade, irmã da inveja e da calúnia. Porque a inveja é a tristeza causada pelo contentamento alheio e a maldade é alegria pela sua infelicidade. Ambas nascem de uma cruel paixão, a ruindade” (De Curiositate, 6). Plutarco tem cura para a curiosidade : a própria pesquisa. Quem se acostumou ao mal curioso, deve curá-lo de modo homeopático. O tratamento consiste em “transferir a curiosidade, transformando-a em gosto da alma por assuntos honestos e agradáveis : seja curioso do que se passa no céu e na terra, nos ares e no mar, os segredos da natureza, pois esta não se enraivece quando eles são roubados…”. (De Curiositate, 5). ([26])

Como último elemento a ser tratado, recordo o imenso autoritarismo presente em todos os projetos de impor o silêncio aos que escapam ao controle da boa norma. Poderia falar sobre a censura, o segredo, molas da razão de Estado moderna, sempre com o fito de fornecer aos governantes maior força física, impostos, leis contra os governados. Carl Schmitt chama a burguesia de “classe discutidora” (26) retirando este epíteto de Juan Donoso Cortés, o famoso autor do Discurso sobre a Ditadura que inspirou não apenas o fascismo e nazismo ao modo de Schmitt mas também todas as ditaduras que infernizaram o século 20, em especial na América do Sul e no Brasil. Com os tanques, a discussão termina, vem o golpe de Estado “redentor”.

“Uma boa parte do prestígio de que gozam as ditaduras deve-se ao fato de lhes ser concedida a força concentrada do segredo, que nas democracias se reparte e se dilui entre muitos. Com sarcasmo diz-se que nas democracias tudo se dilui em palavrório. Todos falam demais, todos se intrometem em tudo, nada acontece que não se saiba previamente. Tem-se a impressão de que a queixa se origina da falta de decisão, quando na verdade a decepção tem sua origem na falta de segredo. Estamos dispostos a tolerar muitas coisas, desde que elas sejam impostas com violência e em segredo”. Estas frases tremendas de Elias Canetti são precedidas de outras, não menos temíveis no capitulo intitulado “O segredo”, de Massa e Poder : “uma das características do poder é a distribuição desigual do calar das intenções. O poderoso cala, mas não permite que os demais se calem. Ele mesmo deve ser o mais reservado de todos. Ninguém pode conhecer suas convicções nem suas intenções”. E adiante, ao falar dos tiranos antigos e modernos, diz Canetti que “o poder do silêncio sempre é altamente apreciado. Significa que se é capaz de resistir aos incontáveis motivos externos que nos induzem a falar (…) o silêncio pressupõe um conhecimento exato daquilo que não se diz. Como na prática não se emudece para sempre, faz-se uma opção entre o que se pode dizer e o que não se diz. Silencia-se o que melhor se conhece. É algo mais preciso e também mais precioso (…) o silêncio isola, quem cala está mais solitário do que os que falam. Assim, atribui-se a ele o poder da singularidade. Ele é o guardião do tesouro e o tesouro está dentro dele”. ([27])

Situada entre a mais tola curiosidade e o saber autêntico, a midia passa hoje por modificações graves, com a internet. Se na antiga cultura impressa existiu a figura do pedante, hoje o pedantismo assume amplitude inaudita. A repetição de slogans, os ataques às subjetividades para solidificar mandos políticos de partidos e de seitas, os plágios e a ausência do pensamento (pensar é pesar), tudo indica que a crise espiritual ainda gastará tempo para se atingir uma síntese nova na ordem teórica e prática. Os jornais passam por uma situação inédita, diante do aumento inusitado da comunicação eletrônica. Alguns deles se arrimam com “ajuda”governamental, reduzindo seu papel à mera propaganda dos governos. Como se fosse destino, eles retornam ao tempo em que Richelieu pagava seus jornais e jornalistas para combater os adversários do Estado absolutista. Sobram ilhas de crítica e de rigo intelectual na imprensa, mas é possível prever tempos escuros para as mentes lúcidas e honestas. Quem viver, verá.







[1] Recent research on the growth of the regular press has dispelled the belief that the German public was  primarily interested in literature and that intellectual discussion was restricted prior to the Enlightenment and the establishment of reading societies (Lesergesellschaften) and spread of free-masonry in the late eighteenth century. There were already at least sixty newspaper publishers in the Reich by 1700 had, and though their papers generally had limited print runs, each copy was read by ten or more people. A separate journal literature been growing since 1682 and by 1720 about 1,000 new journals and books were published each year, rising to 3,200 by 1791. Individual library holdings could be substantial, with that opened to the public in Ludwigsburg in 1765 containing 120,000 volumes by 1787 (or ten times the number at the nearby Tübingen university!). Though an estimated 3.5 million Germans (about 15 per cent of the total) could read by 1700, the main markets for these publications were the 80,000 educated intellectuals and 100,000 aristocrats.  Though small, these were influential groups and territorial governments expended considerable effort trying to convince them of the legitimacy and efficacy of their policies.” Cf. Peter H. Wilson : Absolutism in Central Europe (London, Routledge, 2000),  página 82. Nota bibliográfica do autor : “The problems of censorship are exemplified in P.S. Spalding, Seize the book, jail the author. Johann Lorenz Schmidt and censorship in eighteenth-century Germany (West Lafayette, 1998)”
[2] Cf. John Christian Laursen e Johan van der Zande : Early French and German Defenses of freedom of the press (Leiden/Boston, Brill Ed., 2003).
[3] Para todos os pontos mencionados, e também para muitos que serão referidos adiante, cf. E. Emery: História da Imprensa nos Estados Unidos (RJ, Editora Lidador. 1965).
[4] Emery, página 15.
[5] Emery, op. cit. p. 17. Notemos que o sinal positivo é posto exatamente no plano em que Carl Schmitt e todos os pensadores da Contra Revolução (especialmente Donoso Cortés) consideram o ápice da decadência moderna, ou seja, o liberalismo e a prática da discussão interminável. Donoso nomeia, o que é várias vezes recordado por Schmitt, a burguesia de “classe discutidora”, o que adia interminavelmente a decisão. Elias Canetti chama justamente de ditatorial o elogio das poucas palavras.
[6] Emery, página 18.
[7] Cf. Etienne Thuau : Raison d´ État et pensée politique à l ´époque de Richelieu (Paris, Albin Michel, 2000), página 166 e seguintes.
[8] Thuau, página 172.
[9] op. cit. página 174.
[10] Emery, páginas 34 e 35.
[11] Uso a tradução italiana do texto, saído na coletânea Morale e Criminalità (Milano, Rizzoli, 1976), página 71 e seguintes.
[12] Cf. Sein und Zeit ( Tübingen, Max Niemeyer Verlag, 1967), pp. 173 ss.
[13]  Peri adoleskias (De garrulitate). Uso aqui a edição das Moralia da Loeb Classical Library, Volume VI, Trad. W.C. Helmbold (Cambridge, Harcard university Press, 1970), páginas 396 e seguintes.
[14] Brincando com termos de medicina, Plutarco diz que o nome da doença do falador é asingesia, ou seja, impossibilidade de manter silêncio. O outro lado da mesma doença seria a anekoía, inabilidade para escutar. Resulta numa doença, também nomeada por Plutarco, a diarréousi, diarréia da lingua. Nota de Helmbold.
[15] Sobre o tema, a bibliografia é imensa. Não pretendo discutir tais pontos que exigem competência e cautelas próprias. Uma análise cuidadosa encontra-se nos textos de Pedro Lain Entralgo. Refiro-me especialmente ao seu livro : La Relación médico-enfermo. historia y Teoria (Madrid, Alianza Ed., l983), especialmente nas páginas 40, 88, e 3l3 ss. “…o silêncio é como o humus em que germinam e assumem sentido as palavras pronunciadas, quando estas são algo mais do que simples algaravia gárrula, quando a fala, Rede diria Heidegger, não se transformou em Gerede (palavrório)”. (página 3l3). Outro escrito do mesmo autor trata deste problema: La Curación por la Palabra en La Antiguedad Clásica (Barcelona, Editorial Anthropos, l987). Particular proveito para nosso tema fornecem as paginas l54 e ss. “…para Platão, o agente catártico que a ‘doença da alma’ requer é a palavra idônea e eficaz. Impondo evidências ou infundindo persuasões, a expressão verbal de quem saiba ao mesmo tempo ser professor e médico —’psicagogo’, diria Platão— é capaz de reordenar as almas que sofrem de ametria e reintegrá-las em seu verdadeiro ser”. (páginas l54-l55). Para a imagem, cf. Louis P. Les Métaphores de Platon (Rennes, Impriméries Réunies, l945): “Le Discours”. Também Taillardat, J. Les Images d’Aristophane (Paris, Le Belles Lettres, l965). “Le Flot des Paroles” e “Le Bavardage”.
[16]  Plutarco cita Aristóteles que, na Ética a Nicômaco (Livro IX, 1166 a31, 1170 b7) afirma “O homem bom experimenta vários sentimentos para consigo mesmo e porque ele sente para com o seu amigo do mesmo modo que sente por si mesmo (porque um amigo é um outro eu), a amizade também é pensado como consistindo em um ou outro desses sentimentos, e julga-se a posse deles como um teste de um amigo”. Uso a edição da Loeb Classical Library : Aristotle, Nicomachean Ethics, Volume XIX (Ed. H. Rackham), (London, Harvard University Press, 1990), página 535.
[17] Desse enunciado, uma tradução bem fundamentada encontra-se no Tractatus Logico-Philosophicus de Lugwig Wittgenstein : “Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen”. Na tradução de C.K. Ogden: “Whereof one cannot speak, thereof one must be silent.” Cf. no seguinte site : http://www.kfs.org/~jonathan/witt/tlph.html Para uma análise interessante, Cf. Sandra Laugier: “Le secret et la voix du langage ordinaire”, in Modernités, Dossier Dire le Secret (2002). Também no seguinte endereço eletrônico : http://formes-symboliques.org/article.php3?id_article=154#nh62 Cf. também, em outros parâmetros, Emmanuel Rouillé, «Le Secret et l’Aléthéia grecque», Le Portique, Recherches 2 – Cahier 2 2004, endereço eletrônico. http://leportique.revues.org/document465.html.
[18] “Aujourd’hui (…) il règne dans nos mœurs une vile et trompeuse uniformité, et tous les esprits semblent avoir été jetés dans un même moule : sans cesse la politesse exige, la bienséance ordonne : sans cesse on suit des usages, jamais son propre génie. On n’ose plus paraître ce qu’on est ; et dans cette contrainte perpétuelle, les hommes qui forment ce troupeau qu’on appelle société, placés dans les mêmes circonstances, feront tous les mêmes choses si des motifs plus puissants ne les en détournent. (…) Les soupçons, les ombrages, les craintes, la froideur, la réserve, la haine, la trahison se cacheront sans cesse sous ce voile uniforme et perfide de politesse, sous cette urbanité si vantée que nous devons aux lumières de notre siècle. On ne profanera plus par des jurements le nom du maître de l’univers, mais on l’insultera par des blasphèmes, sans que nos oreilles scrupuleuses en soient offensées. On ne vantera pas son propre mérite, mais on rabaissera celui d’autrui. On n’outragera point grossièrement son ennemi, mais on le calomniera avec adresse. Les haines nationales s’éteindront, mais ce sera avec l’amour de la patrie. A l’ignorance méprisée, on substituera un dangereux pyrrhonisme. Il y aura des excès proscrits, des vices déshonorés, mais d’autres seront décorés du nom de vertus ; il faudra ou les avoir ou les affecter.” Rousseau: no texto premiado pela Academie de Dijon (1750) : Si le rétablissement des sciences et des arts a contribué à épurer les mœurs. E na Carta a d´Alembert: “Si nos habitudes naissent de nos propres sentiments dans la retraite, elles naissent de l ´opinion d´auttrui dans la société. Quando on ne vit pas en soi, mais dans les autres, ce sont leurs jugements qui réglent tout, rien ne parait bon ni désirable aux particuliers que ce que le public a jugé tel, et le seul bonheur que la plupart des hommes connaissant est d´etre estimés heureux”. Pléiade, V. V (Paris, Gallimard, 1995), páginas 61-62. No Discurso sobre a desigualdade: “le sauvage vit en lui-même; l’homme sociable toujours hors de lui ne fait vivre que dans l’opinion des autres, et c’est, pour ainsi dire, de leur seul jugement qu’il tire le sentiment de sa propre existence”. Comentário: o homem social se esvazia nas multiplas opiniões. Cf. P. Burgelin : La philosophie del ´existence de J.-J. Rousseau (Paris, Vrin, 2005 ). Também, Hartle, A. : The modern self in Rousseau´s ´Confessions`. A reply to St. Augustine. (Indiana, University of notre Dame Ed., 1983).
[19] Exemplo excelente dessa parolagem é indicado por Tomas Hobbes : “Na maioria das pessoas (…) o costume tem um poder tão grande que se a mente sugere uma palavra inicial apenas, o resto delas segue-se pelo habito e não são mais seguidas pela mente. É o que ocorre entre os mendigos quando rezam seu paternoster. Eles unem tais palavras e de tal modo, como aprenderam com suas babás, companhias ou seus professores, e não têm imagens ou concepções na mente para responder às palavras que enunciam. Como aprenderam, ensinam a posteridade. Se levarmos em contra os enganos do sentido e como os nomes foram inconstantemente determinados, o quanto estão submetidos ao equívoco e o quanto se diversificam pela paixão (raramente dois homens concordam sobre o chamado bem e mal, o que é liberalidade, prodigalidade, valor ou temeridade) e o quanto os homens são sujeitos ao paralogismo ou falácia no raciocínio, posso concluir de certa maneira dizendo que é impossível retificar tantos erros de um só homem, como devem proceder daquelas causas, sem começar de novo dos verdadeiros fundamentos iniciais de todo conhecimento, os sentidos; e, em vez de livros, ler ordenamente as nossas próprias concepções; nesse sentido eu entendo o nosce teipsum”. The Elements of Law, 1, 5. “Of Names, Reasoning, and Discourse of the Tongue”. Electronic Text Center, University of Virginia Library. (http://etext.lib.virginia.edu/toc/modeng/public/Hob2Ele.html)
[20] De Platão até hoje, a opinião (doxa) deve ser combatida pela ciência. Em Hegel, a opinião pública (Die öffentliche Meinung) ao mesmo tempo carrega elementos verdadeiros e incertos, produtos da raciocinação sem profundidade (o famoso Räsonieren, forma inferior da Razão). Uma pessoa ponderada não leva a sério a opinião pública, pois a própria opinião pública engana a si mesma. É preciso apreciá-la, pensa Hegel, mas também desprezá-la. Para que algo verdadeiro ou grande seja feito, é preciso que o sujeito tenha independência (Unabhängigkeit) diante dela. Ligada à opinião pública, a imprensa é o lugar do limitado, contingente, com infinita diversidade de conteúdo e modos de falar. O modo científico rompe com as alusões, as palavras postas pela metade. Ele exige uma expressão sem equívoco. Cf. Grundlinien der Philosophie des Rechts in Werke in zwanzig Bänden (FAM, Suhrkamp Verlag, 1975), V.7, §§ 316 a 319, páginas 483 e seguintes. Trad. Robert Derathé, Principes de la philosophie du droit (Paris, Vrin,1975) páginas 318 e seguintes. Estamos a um passo da noção de ideologia e de opinião pública enquanto falsa consciência. Cf. Habermas, J.: Mudança Estrutural da Ordem Pública (RJ, Tempo Brasileiro Ed., 1984), página149. E também Norberto Bobbio : Saggi sulla scienza politica in Italia, (Torino, Laterza, 2 ed., 1996). Bobbio compara nesse livro as teorias da ideologia em Marx e Pareto.
[21] “À garrulice se apega um mal que não lhe é inferior, a curiosidade (periergia): deseja-se saber muito, para muito falar, São especialmente histórias de segredo e de coisas escondidas, das quais se deseja encontrar os traços enfiando as fuças em todas as direções (…) Diz-se que as enguias do mar e as víperas morrem ao dar a luz aos seus filhotes; assim, os segredos, ao escapar, arruinam e destroem os que não os guardam”. Cf. De garrulitate, 12 citado aqui em Plutarque Oeuvres Morales, TomeVII-1,Trad. Jean Dumortier (Paris, Les Belles Lettres, 1975), página 242
[22]  Op. cit. páginas 261 e seguintes.Além de Jean Dumortier, cf. Adkins, A. W. H. “Polupragmosune and ‘Minding One’s Own Business’: A Study in Greek Social and Political Values.” Classical Philology 71 (1976) páginas 301-27.
[23] “…hoia kleptousi toichôruchousi, ballantiotomousi, lôpodutousin, hierosulousin, andrapodizontai: esti d’ hote sukophantousin, ean dunatoi ôsi legein, kai pseudomarturousi kai dôrodokousin”. República, IX, 575 b. Uso o texto do site Perseus. Cf. a tradução francesa de Leon Robin, Oeuvres complètes de Platon (Paris, Gallimard, 1953), Coll. Pléiade, Volume I, página 1180.
[24] Todos esses pontos são extraídos de Richard Sennett, Les tyrannies de l´intimité (Paris, Seuil, 1979).
[25] Sennett, op. cit. página 152 e seguintes.
[26] Utilizo a edição Belles Lettres : De la Curiosité, traduzido por Dumortier, J. Cf. Plutarque Oeuvres Morales. T. VII, Première Partie, 1975, páginas 266 ss. Na Encyclopédie, o verbete “Curiosité” é quase todo extraido de Plutarco pelo Chevalier de Jaucourt: “A curiosidade inquieta de saber o que os demais pensam de nós, é o efeito de um amor próprio desordenado. O imperador Adriano que nutria ternamente esta paixão, deve ter sido um mortal muito infeliz. Se tivessemos um espelho mágico que nos revelasse a toda hora as idéias dos outros sobre nós seria bom quebrá-lo sem usá-lo. (Este enunciado repete Francis Bacon, RR).A curiosidade de algumas pessoas que sob pretexto de amizade informam-se com avidez sobre nossos assuntos, projetos, sentimentos, e segundo o poeta: Scire volunt secreta domûs, atque inde timeri…é um vicio vergonhoso.(..) Mas prefiro me fixar na curiosidade digna do homem e a mais digna de todas é o desejo de aumentar os conhecimentos, seja para elevar o espirito rumo às mais altas verdades, seja para torná-lo útil aos concidadãos”.
[27]  Massa e Poder (Brasilia, Ed. Universidade de Brasilia, 1986), página 326 e seguintes