Domingo, 22 de maio de 2016
Justiça e misericórdia. 'O imperativo categórico kantiano serviu como guilhotina intelectual para cortar o divino misericordioso'. Entrevista especial com Roberto Romano
“A misericórdia e a graça
divina se enlaçam de modo misterioso. Façam os homens o que fizerem,
Deus está ao seu lado para oferecer vida, beleza, bondade”, destaca o
filósofo.
Foto: multiplotcinema.com.br |
Para o professor e filósofo Roberto Romano, em entrevista por e-mail à IHU On-Line,
o perdão pode ser tudo ao mesmo tempo: o bom, o mau, o pecador e aquele
que perdoa. “O perdão é um modo de ajustar comportamentos hostis, mas
cuja eficácia é incerta”, pontua. Assim, Romano compreende que o perdão “pode resolver pendências beligerantes na sociedade e no Estado”.
Entretanto, também e ao mesmo tempo, compreende que “a todo instante pode se transformar em vingança,
perseguição mútua de indivíduos, grupos, partidos, países, religiões”.
“Em plano micrológico, trata-se do comportamento notável em sacristias
onde beatos batem no peito e cobram retidão absoluta dos semelhantes,
sem notar que sua inflexibilidade gera malefícios sociais, políticos,
econômicos, religiosos”, explica.
Já a ideia de misericórdia supera essa potência multifacetada e se perfaz na ordem do divino, como algo sacro. Para Romano,
inclusive, o divino se manifesta de forma gratuita e abundante a quem
“se alimentou da misericórdia e tentou praticá-la plenamente”. “A
misericórdia e a graça divina se enlaçam de modo misterioso. Façam os
homens o que fizerem, Deus está ao seu lado para oferecer vida, beleza,
bondade. Deus não se ressente com a nossa maior perfeição, mas a
possibilita”, define o filósofo. Então, significa que a misericórdia é
algo de Deus, incapaz de ser alcançada no plano terreno? Para ele, o
laço que enreda o ser humano à misericórdia se materializa pelo perdão.
“Ele (Deus) se alegra no instante em que os humanos se perdoam
reciprocamente. Naquele momento eles são divinos.” Romano ainda vai além
e destaca a necessidade humana de misericórdia, pois para ele “a
misericórdia, graça divina, alimenta nossos corpos e almas, dá-nos
alento para ampliar a força da existência na terra”.
Roberto Romano
é professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas -
Unicamp, São Paulo. Cursou doutorado na École des Hautes Études en
Sciences Sociales - EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja
contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979),
Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997), Moral e
Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O
desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os
nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).
Confira a entrevista.
Foto: Portal Unicamp |
Roberto Romano - Diria que o perdão
é marca dos seres humanos, finitos e falíveis. Eles habitam os limites
entre vida e morte, vivem em tensões apaixonadas, medos, desejos,
vontade de potência, ganância, tudo o que define um ser dotado de
pensamento e usa tal força para sobreviver à custa dos semelhantes. Se
todos erram e ferem, sem perdão a existência coletiva seria impossível. É
por tal motivo que o pêndulo entre atentados aos demais e o perdão se
repete interminavelmente.
O magnífico poema de Louis MacNeice proclama em tom queixoso: “Wen all is told/We cannot beg for pardon” (The Sunlight in the Garden).
Presos ao tempo e espaço finitos, nossas inteligências e corpos se
chocam, geram dores recíprocas, e não poderia deixar de ser assim.
Todos, do mais humilde habitante das ruas aos doutores universitários,
lamentam a passagem dos instantes felizes, o que os lança nas horas em
que a acedia traz o desespero. Recordemos o Fausto: Und Schlag auf Schlag! Werd ich zum Augenblicke sagen: Verweile doch! du bist so schön! No átimo feliz o perdão
é mais fácil, nos momentos escuros da alma ele se torna quase
impossível. Vivemos hoje em clima de acedia cósmica, a melancolia invade
os corações sob camadas ruidosas de entretenimento e propaganda, risos
mentirosos e amizades artificiosas. Perdoar parece, em nossos tempos, um
ato desnecessário. E o planeta executa a dança da morte sem esperança.
Interminavelmente ferimos e somos
feridos. E nos queixamos das aflições a nós impostas, esquecemos as que
aplicamos aos outros. Falamos e falamos para nos justificar, acusamos os
demais, forjamos a consciência infeliz, longe da alma pacificada. O perdão
deveria ser silente, não palavroso, não ostensivo. Mas nos enredamos na
teia das palavras e não perdoamos de fato. Trata-se de matéria delicada
porque, desprovido da graça divina, tal “perdão” traz mais sofrimento
para o perdoado. A doença chamada sinceridade aproveita aquele gesto e,
num instante, revela indivíduos que supostamente perdoam, mas julgam
impiedosamente os fracos caídos. Alguém que perdoou, com muita
probabilidade produz o ressentido. Quando tudo foi dito e o semelhante está prostrado, não há perdão, mas um fardo existencial sem vida e seiva.
Cautela também com os perdoados: o seu ressentimento
pode estar embebido no desejo de vingança: se recebeu perdão é porque,
pensa, o que o perdoou o julga inferior, imperfeito, longe do bem e do
belo. E ressurge o desejo vingativo, implacável e que jamais perdoa. A
ingratidão do ressentido tem origem no gesto que ele
julga um insulto à sua altivez. Lúcifer não deseja ser perdoado porque
se afirma à altura do Altíssimo. Ele quer poder absoluto e vingança. A
leitura de O Paraíso Perdido ensina muito sobre a psicologia do perdão, do ressentimento e da vingança.
Misericórdia
A misericórdia difere do perdão. Só a
pode possuir um ser que não peca, pois é infinito e sem desejos ou
paixões. Do seu regaço eterno ele presenteia as criaturas com amor sem
limites, gratuito. A misericórdia e a graça divina
se enlaçam de modo misterioso. Façam os homens o que fizerem, Deus está
ao seu lado para oferecer vida, beleza, bondade. Deus não se ressente
com a nossa maior perfeição, mas a possibilita. Ele se alegra no
instante em que os humanos se perdoam reciprocamente. Naquele momento
eles são divinos.
Perdão e misericórdia
Entretanto, a tentação do orgulho e do ressentimento, não raro, transforma o perdão
em coisa diabólica . É quando ele adquire o conteúdo venenoso da
política, da troca econômica, do controle clerical. A mais clara imagem
da diferença entre perdão e misericórdia a temos no símile do casamento
entre Deus e o povo. Este último é
comparado à prostituta que é infiel ao amor divino. Mas Deus ama Israel,
está sempre disposto a lhe enviar vida e bênçãos. Uma prostituta pode
perdoar outra, um coletivo pode perdoar o seu concorrente, mas apenas
Deus traz o perdão que a todos pacifica, sem a ninguém humilhar porque a
todos transcende. Ser perdoado por outro ente humano pode produzir os
piores ressentimentos e a vingança. Ser perdoado por Deus traz alegria perene porque a diferença entre Ele e nós é incomensurável. Meditar sobre o livro de Jó também auxilia a perceber o vínculo entre criaturas finitas e falíveis e o Altíssimo.
“Sic et Pater meus cælestis faciet vobis, si non remiseritis unusquisque fratri suo de cordibus vestris”.
(Mateus, 18, 35). Quem consegue, dentre os filhos do homem, perdoar até
o mais fundo do coração? Quem deixa de lado considerações de justiça e vingança,
poder e riqueza, para perdoar sem condições? Nenhum. Há um abismo entre
o Pai celeste e os filhos rebeldes, justiceiros, apaixonados. A nossa misericórdia
tem limites, a divina é ilimitada. Assim, estamos perenemente
atemorizados pelo julgamento dos homens. Só podemos esperar misericórdia
na medida em que nossa misericórdia nos prepara para imitar a divina.
Estamos em pleno âmbito secreto da Graça e do amor pleno.
Justiça divina e misericórdia
Há um trecho de Blaise Pascal
que, apesar do exagero agostiniano, traz luzes para a compreensão do
nexo entre justiça divina e misericórdia. “Como as duas fontes de nossos
pecados são o orgulho e a preguiça, Deus nos mostrou duas qualidades
suas para nos curar: misericórdia e justiça. O próprio da justiça é abater o orgulho, por mais santas que sejam as obras: et non intres in judicium,
etc., e o próprio da misericórdia é combater a preguiça convidando para
as boas obras, segundo a passagem: a misericórdia divina convida à penitência, e esta outra dos Ninivitas: façamos penitência para ver se por ventura Ele terá piedade de nós.”
Pascal, no trecho mencionado, alude ao rito dos mortos quando a Igreja pede misericórdia em favor do falecido. E trata-se do Salmo 143, onde muito provavelmente Davi mostra desespero pela contenda com Absalão, uma tragédia familiar ligada ao poder. O fim do verso, silenciado por Pascal, é taxativo: “pois frente a ti nenhum vivente é justo” (na edição brasileira da Bíblia de Jerusalém). O trecho sobre Ninive e a misericórdia do Senhor,
também trazido à lembrança pelo filósofo, é mais do que estratégico. O
maior pecado contra a graça divina é o orgulho, apanágio de Satan (ainda
recordo o Paraíso Perdido), a misericórdia é inesgotável, gratuita. Tal
certeza é posta no Apocalipse: “Eu sou o Alfa e o
Ômega, o Princípio e o Fim; e a quem tem sede eu darei gratuitamente da
fonte da água viva. O vencedor receberá esta herança, e eu serei seu
Deus e ele será meu filho”. O perdão humano guarda o medo de todos
contra todos. O divino jorra, grátis, para quem se alimentou da
misericórdia e tentou praticá-la plenamente. O perdão pode ser
interesseiro, mesquinho, oportunista, coisas que a misericórdia jamais
será.
Perdão em Spinoza
Se existe pensador que não aceita o conceito de perdão, Spinoza é um deles . Mas seja para manter o ambiente de concórdia civil ou dar um exemplo de vida pacífica, o Tratado Teológico Político
(capítulo XIV) ao discutir a fé estabelece como base da mesma a certeza
de que Deus é soberanamente bom e misericordioso, modelo de vida
verdadeira (Deum, hoc est ens supremum, summe justum, & misericordem, sive verae vitae exemplar existere).
Além disso, Deus perdoa todas as faltas dos que se arrependem. Com efeito, continua Spinoza,
“ninguém pode evitar situações de pecado num instante qualquer da vida.
Se não fosse definido o perdão divino, todos desesperariam da salvação e
não veriam motivo algum para acreditar na misericórdia divina.
(…) Admitamos, pelo contrário, que alguém creia firmemente que Deus, na
sua misericórdia e em virtude de sua graça cujo reino se estende a
tudo, seja disposto a perdoar os pecados. Tal pessoa que por semelhante
razão ama Deus mais ardentemente ainda, conhece de modo verdadeiro o
Cristo segundo o Espírito e podemos dizer que o Cristo está nela”.
O princípio da vida política, portanto,
se falamos de cristãos, é a misericórdia divina, da qual brota o perdão
que permite o convívio.
IHU On-Line - Qual é a
importância do perdão e da misericórdia para a Modernidade e quais são
os principais limites para que eles se concretizem?
Roberto Romano - O perdão
é um modo de ajustar comportamentos hostis, mas cuja eficácia é
incerta. Ele pode resolver pendências beligerantes na sociedade e no
Estado, e também impulsiona tratos internacionais menos dominados pela
força física e mais pela diplomacia. O perdão a todo instante pode se
transformar em vingança, perseguição mútua de indivíduos, grupos,
partidos, países, religiões. O maior obstáculo para o perdão se encontra
na violência orgulhosa e justiceira de setores, crentes ou laicos, que
se imaginam donos do verdadeiro, do bem e do belo.
Em plano micrológico, trata-se do
comportamento notável em sacristias onde beatos batem no peito e, de
maneira farisaica, cobram retidão absoluta dos semelhantes, sem notar
que sua inflexibilidade gera malefícios sociais, políticos, econômicos,
religiosos. Tal comportamento de sacristia, justiceiro por definição, se
reforça em movimentos mais amplos que usam a fé como arma assassina. Por orgulho atroz, os que o praticam se colocam como se deuses fossem, mas sem a misericórdia, guardando apenas o que entendem como justiça,
a partir do metro estabelecido pelo seu delírio sectário. Eles agem
como se fossem mensageiros do ser divino, dele esquecendo a graça e a
misericórdia. Tal atitude mental encontra-se nos vários fundamentalismos
que assolam a humanidade, fundamentalismos supostamente islâmicos,
católicos, protestantes.
A não escuta ecumênica
Um sinal da hegemonia de semelhante mentalidade encontra-se naqueles setores, quando se levantam contra a própria ideia de ecumenismo.
Como se arrogam a posse da Palavra e do ser divinos, não admitem que os
outros tenham alguma razão e justificativa para adorar Deus de certo
modo e não como eles querem. Daí para o terror político estamos a um
passo. Quando as execuções ocorrem, como infelizmente acontecem por obra
do Estado Islâmico
inclusive contra os cristãos, aumenta o veto dos não islâmicos à fé
muçulmana. Aí, é fácil ouvir reclamos de todas as seitas, xiitas ou
sunitas, de que sua religião não é respeitada. Mas se colocam a justiça
divina, tal como a concebem, acima da misericórdia, como adquirir
respeito em vez de repulsa?
Fazer da guerra um instrumento de
conversão forçada vai contra o coração, sede da misericórdia. E vai
também contra a experiência medieval e da modernidade iniciante dos
próprios muçulmanos. O padre Joseph Lecler S.J. tem uma nota séria sobre o assunto. “Não é para converter o mundo que o Islã
partiu em guerra, mas para o sujeitar ao poder dos fiéis.” Desde as
origens as noções de conquista e conversão foram cuidadosamente
distinguidas pelos generais e doutores muçulmanos e cristãos. A
conquista visa dominar o país, não o fazer muçulmano ou cristão.
O domínio político não queria dizer imediatamente assimilação religiosa obrigatória dos vencidos. É certo que tanto nas Cruzadas quanto na Jihad existiram momentos de conversão forçada. Mas o caráter geral de ambas não é aquele. Elas visam ampliar a soberania. Ambos, cristianismo e islamismo,
possuem em comum o estreito vínculo entre religião e política. O que
ambos precisam enquanto mando político é de impostos para manter e
aumentar seu poderio.
No caso dos muçulmanos medievais, não era lucrativo o aumento de convertidos, pois os não fiéis (mas dihiminis, povos do Livro como os cristãos, judeus, zoroastristas) deviam pagar taxa (jizyah)
para sustentar o poderio dos líderes islâmicos. A rigorosa distinção
entre o plano religioso e o político permitiu, nos reinos árabes
hispânicos, o convívio de judeus, muçulmanos, cristãos.
Ausência de misericórdia e perdão
O que assistimos hoje, com o Estado Islâmico e outros agrupamentos guerreiros — vários mantidos por um país reacionário que recebe apoio incondicional dos EUA e de potências ocidentais, a Arábia Saudita
— é muito diferente do Islã histórico. Em tais movimentos são
valorizadas a conversão e a apostasia cristã feita à força, a degola dos
que pensam e agem diferente deles, a total ausência de misericórdia e perdão.
Com certeza tal modo de existir está longe do ser divino e da vida
abundante. Só o ponto mostra a relevância do perdão em nossos dias.
Seitas terroristas ignoram o perdão e distribuem sua justiça impiedosa
em nome do ser supremo. Resulta a desolação das terras e das gentes,
como ocorre na infeliz Síria.
Dívidas para com o pai
Santo Tomás de Aquino mostra toda sua atualidade ao comentar o Pai Nosso,
especialmente quando fala de nossas dívidas para com o Pai. A dívida é
quádrupla, afirma o santo. Em primeiro nós devemos a honra a Deus, algo
que consiste em três elementos: nossos deveres para com Deus, nossos
deveres para conosco, nossos deveres para com o próximo. Além disso,
para bem honrar, devemos imitar o ser divino (debemus ei imitationem, quia pater est). Tal mimesis exige que tenhamos amor e misericórdia, que devem se mostrar em obras. Depois vem a perfeição.
Note-se que São Tomás
insiste no título divino. Ele não é “meu” Pai, mas “nosso”, o que
determina deveres para com o próximo. Tal observação é renovada no
comentário do trecho “perdoai as nossas dívidas, como perdoamos os
nossos devedores”. Para conseguir o perdão divino precisamos perdoar “os
nossos” devedores. Quem pede não é um indivíduo isolado, quem recebe o
perdão também não é solitário. Quem reza “assim como nós perdoamos” e
não tem no coração o intento de perdoar, mente. Mesmo assim, ele não
está dispensado de dizer “como nós perdoamos nossos devedores”. Se ele
enuncia tal frase, não mente porque “non orat in persona sua, sed Ecclesiae, quae non decipitur: et ideo ponitur ipsa petitio in plurali” (não reza em seu nome, mas em nome da Igreja que não se engana. É por semelhante motivo que o pedido é expresso no plural).
Após tantos séculos de individualismo liberal, algo que contaminou a Igreja, reconforta a leitura comunitária de São Tomás.
Ela orienta o sentido coletivo do perdão e da misericórdia. O perdão e a
mimesis da misericórdia divina permitem a síntese dos opostos sociais,
políticos, doutrinários. Sem eles, temos a guerra perene, a quebra da
vida civil, o desrespeito à lei, a violência contra os fracos. É o
panorama tremendo que verificamos nas relações internacionais e no
interior de muitos países.
IHU On-Line - Em um mundo no qual cresce a intolerância, a perseguição, os ódios étnicos, qual é o papel da misericórdia?
Roberto Romano - A misericórdia
não tem um papel apenas, visto que ela orienta todos os planos da vida
humana, coletiva ou individual. Longe dela edificamos o pandemônio na
terra. A misericórdia, graça divina, alimenta nossos corpos e almas,
dá-nos alento para ampliar a força da existência na terra. Sem ela,
reina sobre o planeta a sombra de Lúcifer, a morte de milhões.
Porque muito se intelectualizou a fé,
estamos perdendo a capacidade de receber humildemente a misericórdia,
caímos no orgulho mais primitivo e truculento. A misericórdia divina se
torna a cada passo imperceptível entre nós, o que diminui a força para a
mimetizar e depurar nossas paixões. Sem perceber a misericórdia divina,
se enfraquece nossa capacidade de Christomimesis, o que nos faz pequenos, mesquinhos, raivosos, ressentidos, diabólicos.
IHU On-Line - Por que o
relativismo fere tanto a humanidade? Como consequência, qual é a
importância da misericórdia num mundo relativista?
Roberto Romano - O relativismo
é um retorno ao estado de natureza, onde não existe verdadeiro ou
falso, bem ou mal, belo ou feio. Ele acolhe a lei da sobrevivência à
custa dos outros. Tanto faz matar ou roubar um semelhante, pois,
inclusive, a noção de ser igual ou semelhante desaparece. Vale o que
serve como instrumento para satisfazer as minhas necessidades, ou as do
meu grupo. Some qualquer traço objetivo, tudo se regula pelo meu desejo e
consciência.
Tenho dúvidas se o mundo se tornou
completamente relativista. Para começar, a ciência não pratica tal
dogma, pois se pauta pela busca do mensurável, observável, controlável.
Idem a técnica. O campo do relativismo por excelência é a política, a
economia neoliberal, a ideologia. Com as premissas do relativismo, não
tem sentido falar em crime, atentados às pessoas, dignidade humana. O
egoísmo define elos entre… egoístas. E, por definição, nenhuma sociedade
pode existir se os apelos imediatos da egoidade superam absolutamente
os nexos entre indivíduos, famílias, países.
Os resultados do relativismo surgem em crises gerais das sociedades, como ocorreu na quebra da Bolsa em 1929 , na crise financeira recente dos EUA
e do mundo. Para se ter ideia do vínculo entre relativismo, sobretudo
ético, e as comoções que abalam mercados e sociedades, basta assistir ao
excelente documentário “Inside Job”,
no qual acadêmicos importantes não mostram nenhuma vergonha ao ganhar
dinheiro com a destruição somática e espiritual de milhões.
IHU On-Line - Somos
verdadeiramente livres e, portanto, responsáveis pelo bem e pelo mal
cometidos? Nesse contexto, como podemos compreender a misericórdia e o
perdão?
Roberto Romano - Bem,
aí a pergunta conduz para o oceano sem fundo dos debates sobre o livre
arbítrio, a liberdade, determinismo, etc. Quando citei Spinoza,
por exemplo, a referência é a um filósofo que não aceita o livre
arbítrio, como, aliás, por outros motivos, também não o aceitam Lutero, Pascal, Hobbes, Diderot,
etc. Importa que muitos autores não deixam de procurar, de um modo ou
de outro, formas para designar o bem e o mal, o certo e o errado, o
ético e o antiético.
Eles entendem que, segundo a fé dos
crentes, deve existir perdão e misericórdia. E aceitam tal ponto para
garantir o convívio entre os entes humanos. Se é apenas tática política
daqueles teóricos, artifício para fazer ignorar o mal (como defende Leo Strauss),
ou se admitem o perdão e a misericórdia acreditando que eles ajudam a
suportar o nosso vizinho, é um assunto complicado na história da
filosofia.
IHU On-Line - Que nexos podem ser estabelecidos entre a misericórdia, o perdão e a filosofia política em nosso tempo?
Roberto Romano - Após os regimes totalitários,
nos quais a justiça foi uma farsa que serviu para esmagar povos aos
milhões, o desafio do perdão aumentou de maneira exponencial. Como
perdoar juízes que aplicavam leis como as raciais impostas pelo nazismo?
Como perdoar juízes e promotores que protagonizaram espetáculos
obscenos como nos Processos de Moscou? Como perdoar Treblinka, Auschwitz, Gulag e os campos da morte no Camboja? Como perdoar a morte de milhões durante o “Grande Salto à Frente” liderado por Mao Tsé-Tung?
Em nosso continente, como perdoar as ditaduras no Chile, na Argentina, na Bolívia, no Paraguai no Uruguai e no Brasil? Como perdoar Salazar e Franco , como perdoar os coronéis gregos, os que impuseram o Apartheid na África do Sul? O bispo Desmond Tutu deu algumas indicações preciosas, mas infelizmente de pouco fôlego. Como perdoar o golpe contra Mossadegh no Irã e a entronização do sanguinário Pavlev? Como, de outro lado, perdoar os atentados do 11 de setembro nos EUA? E agora em outra reviravolta, como perdoar as torturas autorizadas em Guantánamo?
A Igreja de olhos fechados
Como disse acima, a sombra de Satã
cobriu o século XX e nem sempre as igrejas souberam lutar contra o
demônio à altura. Como perdoar a Concordata de Império entre o Vaticano e Hitler , que Pio XI tentou justificar numa Encíclica
tremenda, justamente quando os ares pestilentos do nazismo sufocavam a
vida cristã na Europa? Estou me referindo, claro, ao documento ao mesmo
tempo corajoso e prova do pecado cristão, a Mit Brennender Sorge. A Concordata,
explica o pontífice o inexplicável, veio “para assegurar à Alemanha a
liberdade da missão beneficente da Igreja e a cura e salvação das
almas”. O Vaticano ignorava quem eram os nazistas? Pouco antes de sua
morte, o mesmo pontífice preparou outra Encíclica denunciando os
procedimentos racistas de Hitler e seus asseclas. Ela
não foi publicada. Mas uma instituição com profundos saberes
diplomáticos e também encarregada de pregar o convívio caridoso entre os
homens poderia ignorar a natureza do nazismo? Como perdoar tal passo? E
como perdoar o abraço de João Paulo II em Pinochet,
no mesmo instante em que uma jovem queimada pela tortura foi ignorada
na porta do palácio presidencial chileno? O episódio é narrado por Marco Politi e Bernstein em sua biografia do pontífice.
Como perdoar o realismo de uma instituição que herdou o trabalho do Cristo, o de ser crítica do poder político? “Vade Satana: Scriptum est enim: Dominum Deum tuum adorabis, et illi soli servies” (Mateus, 4:10). Como perdoar se em vez de Jesus muitos bispos na Alemanha, na França, na Itália, na América do Sul ouviram o Grande Inquisidor? Sim, tivemos os bravos Romeros, Câmaras, Arns, Casaldáligas, Balduinos. Mas eles foram um pequeno grupo profético, como ocorreu na Alemanha nazista com bispos como Preysing, Frings, von Galen, os quais honram a Igreja na exata medida em que cardeais como Innitzer da Áustria
a envergonham diante da Humanidade e do Altíssimo. Um escritor
agnóstico do século XIX dizia o seguinte: “a Igreja é mesmo divina, caso
contrário os homens já a teriam destruído”. A nossa crença é que “tu es Petrus, et super hanc petram ædificabo Ecclesiam meam, et portæ inferi non prævalebunt adversus eam”. Os hierarcas que negligenciaram tais sentenças teriam perdão?
Filosofia política
A filosofia política não pode escapar do abismo cruel aberto pelos totalitarismos
e deve ajuizar, com prudência e serenidade é certo, o alcance e a
profundidade de tais políticas no sentido de desnaturar os entes
humanos. O totalitarismo ainda mostra frutos venenosos na Europa com o
antissemitismo, o racismo, a recusa de imigrantes. O totalitarismo não
morreu, ele dormita. E cabe aos cristãos, agora, lutar contra ele em
nome de Jesus.
IHU On-Line - Qual é o significado do Jubileu da Misericórdia para a Igreja hoje e para a sociedade que a acolhe?
Roberto Romano - Não
tenho certeza de que a sociedade — por exemplo a brasileira, na qual não
existe perdão ou misericórdia para os pobres — acolherá o Jubileu.
Os presídios brasileiros mostram a consciência infernal e impiedosa dos
nossos líderes políticos, judiciais, religiosos. Mesmo aqui, no
entanto, aquele evento poderá trazer a metanoia que modificará o
comportamento pouco cristão imperante entre nós. Num mundo à beira da
fome, das doenças, catástrofes, guerras, fanatismos, indiferença,
corrupção, o apelo da Igreja pela misericórdia é uma onda de oxigênio
contra a intoxicação do ódio. Depois dele, os impenitentes serão ainda
mais culpados diante de Deus e dos homens. E, talvez, percam a
oportunidade única do perdão.
IHU On-Line - As matrizes do
mundo ocidental estão assentadas sobre compreensões que mencionam a
“guerra de todos contra todos” (Hobbes), a “luta pela sobrevivência”
(Darwin) e a “vontade de poder” (Nietzsche) . Para além das apreensões
equivocadas de tais conceitos, quais são os tensionamentos que surgem
para a construção de uma cultura da paz e, portanto, da misericórdia?
Roberto Romano - Aqueles pensadores escrevem do mundo para o mundo. Os que têm fé em Cristo aceitam o enunciado de João: “Sic
enim Deus dilexit mundum, ut Filium suum unigenitum daret: ut omnis qui
credit in eum, non pereat, sed habeat vitam æternam. Non enim misit
Deus Filium suum in mundum, ut judicet mundum, sed ut salvetur mundus
per ipsum”. ("Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único,
para que não morra quem nele acredita, mas tenha a vida eterna. Porque
Deus não enviou o seu Filho para condenar o mundo, mas para que o mundo
seja salvo por meio dele" João, 3, 16-17 - Nota da IHU On-Line).
Em Hobbes, Darwin, Nietzsche
há uma percepção do mundo sem Deus. Eles teorizam com os dados trazidos
pelos homens que, desde a Queda, são assassinos e lobos uns dos outros.
Mas o mal que eles podem causar é pequeno perto dos contratestemunhos
dos que batem no peito e afirmam seguir os mandamentos divinos.
Desde Erasmo de Rotterdam a Igreja conta com pensadores que lutaram por uma cultura de paz, sem fanatismos e dissimulações. Reler hoje em dia a Querela pacis de Erasmo
vale mais do que expor críticas aos filósofos ateus ou agnósticos. Eles
resultam de um mundo odioso, maltratado por quem deveria semear trigo e
não o joio, ou seja, os cristãos.
IHU On-Line - Em que medida
praticar a misericórdia se aproxima de uma das formulações do imperativo
categórico kantiano de tratar as pessoas sempre como um fim em si
mesmas, e nunca como um meio?
Roberto Romano - Tenho a
opinião de que se existe enunciado que não deixa lugar algum para a
misericórdia, o Imperativo categórico kantiano é um deles. O “du sollst” é impiedoso, frio e justiceiro, de uma justiça sem apego aos Evangelhos. Entre a justiça humana e a misericórdia divina, Kant
escolheu a primeira. Se desaparece a justiça, diz ele, não há mais
nenhum valor no fato de os homens viverem sobre a terra. O imperativo
categórico serviu como guilhotina intelectual para cortar o divino
misericordioso. Penso como Péguy: “o kantismo tem as mãos puras; por infelicidade ele não tem mãos”.
Por Márcia Junges | Edição João Vitor Santos