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Roberto Romano: milagrosa normalidade
"Fatos mostram à saciedade o quanto é anômalo o funcionamento de nossas estruturas políticas"
Quadro de Justus Sustermans representando Galileu Galilei
Foto:
Wikicommons / Reprodução
* Roberto Romano é professor titular de Ética e Filosofia Política da Unicamp. Escreve quinzenalmente.
O Brasil, dizem alguns, tem instituições democráticas garantidas.
Elas, repetem as mesmas vozes, funcionam em plena normalidade. Atrapalho
o foguetório e afirmo que estamos longe da norma na ordem democrática.
Basta pensar nos bilhões subtraídos dos cofres públicos. A Petrobras é
uma empresa estatal a mais no rol dos roubos cometidos por lobistas e
políticos. O dinheiro foi usado em campanhas políticas. As contas
partidárias receberam aprovação da justiça eleitoral. O “normal” seria o
controle rigoroso que não abençoasse números espúrios, marcas do
submundo que Norberto Bobbio chama de “anti-Estado”.
Se for lida a Constituição, ela manda ser o exercício dos cargos, nos
três poderes, impessoal. Como aceitar que o presidente da Câmara dos
Deputados “rompa pessoalmente” com o Executivo e ofenda o Judiciário?
Fatos mostram à saciedade o quanto é anômalo o funcionamento de nossas
estruturas políticas. Basta pensar nas esdrúxulas coalizões partidárias,
nos apadrinhamentos para cargos “de confiança”, na indignação de quem
paga impostos, na ruína da fé pública. A normalidade alardeada indica
que a prática desmente o idioma do encantamento publicitário, feito para
enganar os incautos que ainda restam na vida pública.
Tais mentiras piedosas me fazem recordar uma história do século 17
mas atualíssima, dados os aproveitadores da crendice geral. A narrativa é
de Gabriel Naudé, pensador importante sob Richelieu e Mazarino –
cardeais astutos, verdadeiros ditadores truculentos e impiedosos –,
homens que moldaram o Estado moderno. Naudé usa a religião, mas
desconfia das batotas encenadas pelo clero para engambelar as massas.
Com base na política religiosa, ele publica o clássico Considerações
Políticas Sobre o Golpe de Estado (1640).
Diz ele que encontrou certo dia o padre Melchior Inchofer, jesuíta
que escreveu o livro intitulado Veritas Vindicata (“A Verdade
Defendida”). Vários panfletos da época traziam tal título, dada a
discórdia na Igreja Católica e a guerra de religião que atingia a fé
mística e a confiança pública, arruinando reputações de intelectuais.
Pois bem, o bom padre Inchofer defendia a veracidade de uma carta
remetida diretamente pela Virgem Maria às pessoas da Sicília. Naudé
apresentou ao padre razões pelas quais a missivista não poderia ser a
mãe de Jesus. E ficou espantado (ou fingiu espanto) quando o autor
declarou saber perfeitamente que se tratava de uma fraude. Mas escrevera
assim mesmo o texto “para agradar e obedecer os superiores que lhe
haviam mandado fazer tal coisa e, ademais, ele nada acreditava de tudo o
que estava contido na referida carta”. Medita Naudé : “Eis como se
espalham no mundo os erros e os abusos; eis como os espíritos simples
são enganados todos os dias”. Quantos intelectuais de hoje, ao se
tornarem militantes, escrevem ao modo do padre Melchior!
O nome completo do livro escrito por Maquiavel, perdão, pelo jesuíta,
é o seguinte: Epistolae B. Virginis Mariae ad Messanenses Veritas
Vindicata (Messina, J. Matarozii Ed., 1619). Outra informação valiosa: o
padre embusteiro é membro da Comissão que examina o Diálogo Sobre os
Dois Sistemas do Mundo, de Galileu. Ele justifica a condenação do
pensador e de seu livro num opúsculo intitulado Tractatus Syllepticus
(1633). Mentira em dose dupla, no caso da Virgem e da ciência. Numa
instituição milenar que cometera tantas fraudes – a Doação de
Constantino foi uma delas – o engodo a mais seria “normal”.
Termino: as falas sobre a “normalidade institucional” no Brasil são
tão verazes quanto a carta da Virgem aos sicilianos. Entre a fé pura e a
mistificação, não raro, a distância é pequena. Cabe à prudência julgar e
bem agir.
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