sábado, 25 de julho de 2015

Um prefácio meu para a Anistia Internacional

Educando para a Cidadania
Os Direitos Humanos no Currículo Escolar
PREFÁCIO
A presente coletânea destaca temas elevados do espírito humano, dando-lhes tratamento respeitosos. Da língua à biologia, passando pela química, sistemas filosóficos, alma religiosa, desvelam-se camadas do intelecto, dobras do coração. Tudo isso convida à tarefa de refletir. Cada um dos artigos aqui reunidos – breves, decorosos – gira ao redor do fato educativo. Como levar nossa gente, em especial a juventude, até o respeito pelos direitos humanos?

Esta tarefa tem sido o alvo da Anistia Internacional, movimento a quem o mundo deve pouco do ânimo e da bondade que ainda lhe restam. Os homens e mulheres comprometidos com a Anistia atenuam, todos os anos, com seus relatórios e denúncias, os efeitos da bestialidade estatal tirânica, reforçada neste fim de século. Com isso, milhares e milhares de vidas são resgatadas para a esfera da vida pública, beneficiando lares, igrejas, partidos das mais diversas atitudes doutrinárias. Se existe um setor realmente democrático em nossa terra, este é a Anistia Internacional.

A coletânea é fiel a esse espírito eminente. Todos os trabalhos preocupam-se com a falta de base, nas políticas convencionais, ou a falha ética afirmada com a desmedida valorização do ser humano no interior do cosmos. O orgulho luciferino dos engenhos finitos fez com que eles esquecessem o fundamento natural que os une aos demais seres. Combatendo o privilégio arrogante da razão cartesiana, disse um dia Espinosa em sua Ética: “os que escrevem sobre as paixões e a conduta da vida humana parecem, na maior parte, tratar não de coisas naturais, seguindo as leis comuns da natureza, mas de coisas exteriores à natureza. Na verdade, eles concebem o homem de fora da natureza, como um império dentro de outro império” (Ethica, Pars Tertia, De Origine et Natura Affectuum).

A separação entre homem e cosmos ajuda na tarefa de justificar – no plano social – os sistemas de força. O cogito extra-natural, milagrosa propriedade de alguns gênios, é, para Espinosa, produto do imaginário auto-centrado. Quem se julga dono da natureza e do Estado (e das Igrejas) está pronto para qualquer aventura despótica, contra o “comum dos mortais”.

Todos os arautos de sua própria eminência – diminuindo os semelhantes – seguem, céleres, para a negação da cidadania e dos postulados democráticos. Deste modo, “eles imaginam realizar uma obra sublime, atingindo a mais alta sapiência, ao elogiarem uma natureza fictícia, acusando sem piedade aquela existente. Pois eles não concebem os homens tal como eles são, mas pelo modo pelo qual sua filosofia quer que eles sejam. Ao invés de uma ética, eles escreveram uma sátira” (Tratado da Autoridade Política). Espinosa foi o filósofo da alegria. Todo o seu pensamento se dirige no sentido de assegurar a posse comum do conhecimento pelos homens numa democracia política não repressiva.

Comentando as perturbações políticas e as guerras de seu tempo, nosso filósofo diz sempre com humor lúcido: “Se o famoso personagem que ria de tudo viesse ao nosso tempo, ele morreria de rir, com certeza. Quanto a mim, essas violências não me incitam nem ao riso nem às lágrimas; pelo contrário, elas excitam em mim o desejo de filosofar, melhor observando a natureza humana”. Tese estratégica: “os homens, como os outros seres, são apenas uma parcela da natureza”. Como o todo desta última é desconhecido por nós, julgamos absurdas muitas coisas que podem ser perfeitamente normais. Daí a intolerância face à alteridade, base da raiva aristocrática contra a democracia. Qual o princípio de Espinosa, neste plano? “Deixo cada um viver segundo sua própria compleição e consinto que cada um, se o desejar, morra por aquilo que acredita ser o seu bem, desde que me seja permitido viver para a verdade” (Carta XXX, a Oldenburg).

Lição dura de ser assumida, convenhamos. Normalmente, nossa “tolerância” não se pauta pelo  veraz, mas pelo que nós consideramos “normal”, sagrado, ético. Nega-se, deste modo, qualquer direito à alteridade, destruindo-se, ipso facto, a noção de direitos e deveres universais, abalando a própria idéia democrática. Contra essa corrosão do respeito mútuo, que gera os Estados policiais, as torturas, as mortes dos adversários políticos, o confinamento de indivíduos que pertencem a etnias minoritárias e todo rol de barbáries praticadas no cotidiano de nossas sociedades, ergue-se até hoje o ensino espinosano, sobretudo no Tratado Teológico – Político.

Citarei apenas alguns trechos desse último e nobre monumento à democracia moderna. “Dos fundamentos do Estado, tal como o explicamos, resulta com evidência máxima que seu fim último não é a dominação: não é para manter o homem no medo, e pelo medo, fazendo-o pertencer a um outro, que o Estado é constituído; pelo contrário, é para liberar o indivíduo do medo, para que ele viva tanto quanto possível em segurança, isto é, conserve, quando puder, sem danos para outrem, seu direito natural de existir e agir. Não, eu repito, o fim do Estado não é o de conduzir os homens da condição de seres racionais para o de bestas feras, ou autômatos, mas pelo contrário, o Estado é instituído para que suas almas e seus corpos cumpram com segurança todas as suas funções, para que eles usem uma razão livre, para que eles não lutem apenas por ódio, cólera ou astúcia, para eles suportarem uns aos outros, sem maldade”.

A busca de alvos semelhantes faz da Anistia Internacional uma herdeira dos mais nobres sonhos filosóficos. Enquanto isso, nosso povo, incitado por fascistas que não ousam dizer o próprio nome, irrita-se contra a defesa dos direitos humanos. Há ignorância nesse ponto, mas também má-fé espantosa. Pelo rádio, televisão, imprensa escrita, repetem-se slogans assassinos e sofísticos que marcam a consciência dos mais humildes. Para eles, o próprio vocábulo “direitos” tornou-se um sinônimo de conivência com o crime. A par do não saber, temos a demissão coletiva dos educadores na escola primária, secundária e no terceiro grau. Em parcas ocasiões os nossos engenhos universitários pronunciam-se coletivamente, verberando o estupro da liberdade e da igualdade, quando se trata dos “negativamente privilegiados”. Mesmo nas igrejas isso ocorre. Além de poucos heróis, como na Comissão de Justiça e Paz, tudo se dirige para manter a aparência de normalidade, dentro da pior violência.

Os escritos aqui reunidos podem ser um início da pedagogia mais necessária para nosso tempo: a descoberta da nobreza que reside em toda vida. Sem cidadania universal, ninguém está seguro. Ou todos se transformam, como temia Espinosa, em autômatos a serviço deste ou daquele tirano. Porém, além de autômatos, os entes humanos podem regredir à condição de feras. Olhemos os dados sobre os assassinatos de crianças, no Brasil e na América Latina. Aristóteles costumava afirmar que um indivíduo isolado ou é Deus, ou uma fera. Os ajustamentos políticos que por eufemismo chamamos “Estado”, em nosso continente e no mundo, provam que as feras se reúnem. O diálogo racional, compreendido agora no plano da educação para os direitos, pela Anistia Internacional , oferece uma esperança de metanóia em nossos estudantes – futuros dirigentes – e nos partícipes da coletividade mais ampla. O livro foi feito para ser discutido. Assim, merece o respeito de todas as mentes democráticas e livres. Sem o seu concurso, e o de outras formas de melhorar o panorama axiológico pátrio, a palavra “ética”, com o seu correlato “direitos” (também “deveres”), corre o risco de ser um termo vazio, ou de se reduzir ao simples prisma do slogan.

Esperemos, portanto, que estas páginas, editadas pela Anistia Internacional, sejam estudadas nas salas de aula, nos debates públicos, nas reuniões informais e cotidianas. O pensamento prudente vale mais, a longo prazo, do que a propaganda que tende para o repetitivo e carente de espírito. Esta é uma aposta vital para quem preza a dignidade e a sublime elevação do homem no interior de uma natureza respeitada.

Roberto Romano