Reflexões Sobre o
terror
Roberto
Romano/Unicamp
Para dizer se fracassou
o combate ao terrorismo é preciso, antes, afastar a autoimagem (lisonjeira,
sempre) que as massas ocidentais fazem de si mesmas, de seu passado recente e das
alianças que seus líderes estabelecem com os donos do poder na Ásia e na
África. Para quem identifica “terror”e “islamismo” sem maiores matizes, temos de
início algumas perguntas: Theodore Kaczynski, doutor em matemática na
Universidade de Berkeley, o Unabomber, foi militante islâmico? Os terroristas que
espalharam gas sarin no metro de Tokyo pertenciam à seita Aum Shinrikyo, ou a
um setor xiita ou sunita ?
O terror surge no
intervalo entre o Estado (democrático ou não) e o poder de movimentos
pré-políticos ou pós-políticos, a religião alegada é apenas um item do
problema. O principal elemento é o medo como arma de controle e intimidação dos
povos. Meio de controle institucional de populações, da antiguidade aos nossos
dias, o terror estatal é uma realidade tão evidente quanto a dos grupos e
seitas que se candidatam a formar novos Estados, mesmo que os modelos para
aquela formação sejam arcaicos e abjetos, como é o caso do Estado Islâmico.
A pressão pelo terror
poderia, num território aberto pelas armas na Síria e no Iraque, gerar um
Estado Islâmico? Sejamos claros : toda célula terrorista é um Estado no plano embrionário. Ela se arroga
o direito absoluto aos três monopólios estatais designados tanto por Max Weber
quanto por Karl Marx. A organização terrorista
imagina ter o monopólio da lei (a sua lei deve imperar sobre todas as demais,
humanas ou divinas). Ela também se arroga o monopólio da violência física. E
julga-se no direito de arrancar finanças dos Estados já existentes ou de
particulares, uma espécie de imposto sob forma de chantagem. O movimento
terrorista projeta um poder absoluto. Ele não mantem relações dialógicas ou
diplomáticas com os poderes estabelecidos (governamentais, religiosos, civis)
mas segue à risca o enunciado de Clausewitz de que a guerra é a política
conduzida por outros meios. E que meios! Sequestros, bombas contra populações
inocentes, propaganda cruel. A diferença entre uma guerrilha terrorista e outra
é o grau de violência e brutalidade empregada para atingir seus alvos. Vale a
importância econômica e estratégica das vítimas potenciais ou efetivas. Matar
na França ou na Nigéria são atos de diferente importância para grupos
terroristas. Na França –ou nos EUA do 11 de setembro e do ataque ao Pentágono–
a repercussão midiática e o valor simbólico (enfraquecimento do poder estatal e
da segurança que ele proporcionaria) são maiores. Não é motivo de espanto,
pois, se milhares de vítimas africanas recebem segundos na TV mundial e poucas linhas
nos jornais, no mesmo lance em que semanas são dedicadas aos atentados nos
centros do mundo “cristão e ocidental”.
A propaganda do terror leva em conta, como instrumento poderoso, a irradiação
planetária da própria midia ocidental. Em 1978 um jornalista francês, ao escrever
sobre o terrorismo, criticava o jornalismo que dá notícias sem prudência ética
(em nome da liberdade de expressão) e amplia atos violentos. “Logo”, dizia ele,
“assistiremos decapitações nas telas da TV mundial”. (Laurent Dispot, La
Machine à Terreur, Paris, Grasset, 1978). Hoje, a decapitação na internet e na
TV são quase banais, integram o cardápio do jantar. “A imprensa”, eu mesmo adiantava em livro compreensívelmente atacado por
líderes do jornalismo brasileiro, “não raro é refém e cúmplice dos terroristas.
(...) A grande manobra da mídia capitalista é utilizar o terrorismo como fonte
de notícias que vendem os seus produtos aos bilhões de humanos, aumentando a
sua possibilidade de cobrança de anunciantes e dos governos, ao mesmo tempo em
que aumentando o potencial terrorista produz consenso ao redor dos ‘perigos’ que
rondam o mundo do mercado e da ‘liberdade’”. (O Desafio do Islã e outros
Desafios . São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 62). No Brasil temos análises que
merecem ser lidas sobre o tema, tanto no plano do terror de Estado quanto no
dos terroristas que pretendem se transformar em poder de Estado. Veja-se o
competente artigo de um especialista de direito internacional, Antonio Celso Alves Pereira, “Sobre
Terrorismos”in (Carta Mensal, número 644, nov. 2008, pp. 3 e ss).
Seria prudente ouvir os conselhos de um pensador político, entusiasta de
Maquiavel e democrata. Refiro-me a Spinoza. No jogo do poder, indivíduos e
povos seguem o ritmo da esperança e do desespero. Segundo Spinoza, “quando o nosso
esforço foi inteiramente bem sucedido, a esperança desembaraçada do medo
transforma-se em segurança; quando ele fracassa por inteiro, o medo desprovido
de esperança transforma-se em desespero”. (Matheron, A. : Individu et
communauté chez Spinoza. Paris, Minuit, 1988). O desespero é solo fértil para os grupos que
aderem ao terror. Não existe segurança diante da falta de escrúpulos que
aproveita o desespero de multidões.
Com a crise dos Estados
estabelecidos no mundo inteiro, é questão de tempo para que a fraqueza do
aparelho político oficial seja surpreendida mais duramente por assassinos que
usam a força física sem limites. E a saída dos governos ameaçados é o aumento do controle físico e espiritual dos
povos, com leis e procedimentos policiais que, inicialmente usados contra os terroristas,
implodem a democracia. A chamada Lei Patriótica é um enxerto autoritário na
Constituição norte-americana. Com ela surgem restrições gravíssimas à liberdade
de ir e vir, de expressão e de oposição real aos governantes. Tais agressões ao
direito público e privado, impostas ao povo norte-americano mostram, no
entanto, pouco sucesso no combate ao terrorismo. Geraldo Alves Teixeira
defendeu na Unicamp uma sólida tese de doutoramento, no prelo para ser
publicada: “Razão de Estado e política
antiterrorista nos Estados Unidos” (2011). Nela é exposta, com lógica e fartos documentos, a Lei Patriótica.
Na verdade, entramos, com a crise do Estado, em uma
situação que um jurista conservador, mas inteligente, diagnosticou como “a
guerra civil mundial”: o espalhamento
das guerrilhas em todos os continentes, seguidas pelas inauditas e truculentas
ações dos Estados que terminam por restringir as liberdades públicas. Remeto, com todas as cautelas, a Carl
Schmitt, cujo escrito, intitulado “Diálogo sobre o guerrilheiro”, de 1969,
deveria ser lido e meditado por todos os que se interessam pela questão
terrorista. (Carl Schmitt, La guerre civile mondiale, Paris, Ère Ed., S/D).
Em escala muito menor, mas
no mesmo ritmo do enfraquecimento do Estado nacional, observamos algo similar
no Brasil. Aqui, parcelas do território já estão sob controle de quadrilhas
armadas, contra as quais se arregimentam verdadeiros exércitos, como no Morro
do Alemão e em outros morros. E como
resposta, que outra lei, senão a marcial, reina naquelas periferias de nosso
país?
A crise do terrorismo é
concomitante à crise de soberania nacional e imperial. O fracasso dos governos
democráticos na luta contra ele situa-se, acima de tudo, no fracasso dos
Estados para manter serviços públicos, entre eles a segurança, para um número
inédito de cidadãos. Do século 19 até hoje a população planetária se moveu rumo
às cidades, o que concentrou carências que desafiam a máquina estatal, tanto burocrática
quanto economicamente (segurança, água, energia, alimentos, transportes,
educação, ciência e técnica, lazer, transportes, etc). A frustração das massas urbanas aumenta em
escala célere, mas as respostas do Estado são a cada dia menos precisas e
competentes, mais lentas. Surgem, nas periferias norte-americanas, londrinas,
parisienses, romanas, os potenciais
exércitos de reserva para movimentos terroristas que prometem vida em
abundância aos seus possíveis súditos, mesmo que o preço a ser pago seja o
emprego da força mais bestial.
Vejamos a genealogia dos
governos ocidentais. Os Estados em que eles se inscrevem se firmam por volta do
século 14 da era cristã. Nos tempos seguintes os povos que os integram iniciam
a sua expansão pelo Oriente e mares do mundo, até chegar ao extremo Oriente.
Eles criam uma rede mundial de hegemonia das culturas ocidentais, de suas
religiões, costumes, ordem política. Nos séculos 18 e 19 aqueles impérios
atingem o clímax, vertem sangue e sugam riquezas das gentes submetidas. As
revoltas sufocadas por metralhadoras (recordemos Kipling e seu obsceno “Gunga
Din”, ou a guerra do ópio na China), contra a supremacia “cristã e ocidental”,
produziram profundos ressentimentos, pouco percebidos ou arrogantemente
ignorados pelos conquistadores. George Orwell, profeta do anti-totalitarismo, na juventude
esteve na Polícia Imperial Indiana, em Rangum, onde testemunhou a truculência
dos inglêses para com os nativos. Aprendeu, por exemplo, que nos clubes para europeus
da Ásia eram proibidos nativos e cachorros. Notou as falhas genocidas da
cultura a que servia.
O modus operandi colonial
não variou muito entre os europeus na Ásia, no Médio Oriente, na África, na
Oceania. Tudo foi feito para dividir
povos, colocá-los sob o controle de tiranias tribais que disputavam corpos e almas. Os colonizadores
(com ajuda de missionários cristãos, católicos ou protestantes) mantiveram
imensas multidões humanas no mais abjeto primitivismo, sem técnica própria, sem
educação própria, sem autonomia e sem Estados próprios.
Choque de civilizações? Em
primeiro lugar, sem a matemática, a filosofia e a medicina gregas, boa parte do
saber árabe não existiria. E, de outro lado, sem a matemática (pensemos apenas
na álgebra, mas o campo é numeroso), a astronomia, a medicina árabes, boa parte
dos saber ocidental jamais chegaria à luz. O amálgama sutil que engendra formas
de pensar científico, linguístico, técnico, se apresenta na história mundial em
momentos e situações distintas. Existem autores, como Victor Davis Hanson,
estudioso das guerras –da grega às recentes– que unem saber técnico e
científico à democracia segundo o padrão ocidental. Deste modo, pensa ele, o
Ocidente sempre vence porque une ciência, técnica e democracia, síntese
inexistente em outras culturas. (Hanson, Victor Davis: Why the West has won,
carnage and culture from Salamis to Vietnam, 2002). Mas ele não explica as
conquistas européias do século 16 de modo satisfatório. Naquele período, até o
século 18, os Estados ocidentais não eram democráticos.
No século 20, o único meio
dos povos dominados conseguirem elaborar um Estado era seguir o modelo imposto
pelos europeus : poderes de força, comandados por dirigentes ferozes que, através
do terror impunham unidade a tribos e facções na Ásia e na África. Ainda no
mesmo século, dirigentes truculentos penderam ora a favor dos nazistas, da
URSS, e dos europeus ocidentais. Como
resultado surgiram os Nasser, os Kadafi, os Hassad, os Idi Amin, os Bokassa, e
toda uma fieira de tiranos que uniam os povos e negociavam com os dois poderes
saídos da Segunda Guerra, a URSS e os EUA. A primeira não conseguiu manejar as
lideranças islâmicas com maestria, seu fracasso retumbante no Afeganistão o
prova, mesmo tendo a sua invasão ao país sido garantida por um regime local
pró-União Soviética. No efetivo, as causas da invasão não eram ideológicas em
primeiro lugar. Como ainda hoje, o controle do petróleo estava na pauta.
Os EUA não puderam manter a
prática dos seus antecessores imperiais, os europeus, pois não conseguiram
controlar seus títeres pelo terror e pela manipulação do jogo de uns contra os
outros. No Irã eles ajudaram os interesses britânicos pelo controle do
petróleo, derrubaram o líder nacional Mossadegh e colocaram no poder uma tirania
coroada que reforçou o sentimento contrário aos americanos naquele país. A
derrubada de Mossadegh serviu como
ensaio para todas as ações golpistas norte-americanas no
mundo,especialmente na América do Sul e no Brasil. Leia-se o libelo de Stephen Kinzer : All the
Shah’s Men, an American Coup and the Roots of Middle East Terror (New Jersey,
John Wiley & Sons, 2003).
Assim, sem abertura para um Estado
(menos ainda para um Estado democrático) e sem modernidade técnica e indústrial
própria, sem evolução educativa própria (os herdeiros dos líderes e dos
abastados asiáticos e africanos estudam em Cambridge, Oxford, Paris, Berlim,
Harvard, a família Bin Laden é prova), sem autonomia política real, aos Estados
mantidos por soviéticos ou norte-americanos, restou a força bruta ditatorial
(inclusive na Arábia Saudita) que serve como estopim dos movimentos radicais e
regressivos, com o delírio de uma era ressuscitada de grandeza islâmica.
Sem maiores sutilezas antropológicas
e etnológicas, soviéticos e norte-americanos quiseram impor, via governos
aliados, formas de perceber a vida social, religiosa, política. Aquelas
potências, uma oficialmente atéia e a outra supostamente cristã, na verdade seguiam
a única religião da moderna ordem
política internacional : o culto da razão de Estado e o terror para alcançar a
hegemonia mundial. O Gulag, de um lado, seguido de intervenções virulentas como
as ocorridas na Hungria e na Tchecolosvaquia, as bombas sobre Hiroshima e
Nagasaki, o napalm no Vietnã, e outros feitos, mostram que o terror é algo bem
mais lancinante do que imaginam os mass midia.
Os soviéticos falharam
porque seu próprio modelo de Estado chegou à bancarrota. Os EUA, mesmo depois
da Coréia, do Vietnã, do Laos e do Camboja, insistiram em impor aos povos
orientais e africanos o seu modelo de governo. No Afeganistão, para derrotar a
URSS, eles se uniram a forças obscurantistas e corruptas que, depois, se transformaram no poder Taliban. Os
resultados foram catastróficos: uma guerra num país distante, do qual apenas agora os norte americanos retiram
os pés. No Iraque, as duas campanhas contra Sadam Hussein explodiram o arremedo
de Estado alí existente. Com a morte do ditador ficaram livres movimentos
guerrilheiros que não reconhecem poderes de Estado além do muçulmano, xiita ou
sunita. Na Líbia, o fim de Kadafi explodiu instituições que, apesar de tudo,
mimetizavam estruturas estatais. Veio o caos como resultado da “libertação”
européia contra os tiranos gestados no ventre da Guerra Fria. Na Síria, um
ditador cujo pai jogava com a URSS e os EUA dirige uma parte do país com apoio
velado da Rússia. A outra se estraçalha nas mãos dos guerrilheiros e manda
multidões para outros países, como a Turquia e o Líbano. As fraturas no mundo
ocidental, asiático, no africano, são profundas e superam a capacidade dos
poderes estatais para as atenuar. A semeadura está pronta para o terrorismo.
Vários dos enunciados acima,
extraio de um livro relevante sobre o suposto choque das civilizações. Trata-se
de um antigo diretor da CIA, Michael Scheuer, que advertiu desde longa data (2004), para as imagens enganosas que o
Ocidente faz do Islã e de seus movimentos guerreiros e terroristas. O nome e o
conteúdo do volume indica sua adequação ao problema das culturas: Imperial
Hubris, Why the West is Losing the War on Terror (Washington, Brasseys’s Ed.,
2004). “O ponto (…) é se existe uma falha na civilização islâmica, ou resultado
da transição de uma era do colonialismo europeu
–que plantou as sementes da modernização no Oriente Médio– para uma incansável tirania dos Estados e
regimes feitos para as anteriores
colônias européias”. As imagens que povoam as mentes ocidentais,
mantidas com muita propaganda, diz Scheuer, é que o “mundo islâmico
enlouqueceu, e nada do que foi feito pelos EUA tenha causado os ataques da
Alcaida, ou tenha gerado o amplo sentimento contrário à América no mundo
islâmico”.
Não são poucos os agentes da
CIA que percebem os erros estratégicos e táticos cometidos pelos EUA e aliados
na chamada guerra contra o terror. Para uma história relevante daquela Agência,
veja-se a publicação de John Prados, Safe for Democracy, the secret wars of the
CIA (Chicago, Ivan R. Dee, 2006), em especial o capítulo “The Mountains of
Allah”. Naquele capítulo, o autor mostra algo que tem passado na sombra em
análises sobre o Estado Islâmico e outros movimentos de guerrilha terrorista: o
aprendizado para a ação já começa, por exemplo, com grupos afegãos que, ao serem
recrutados em tribos e seitas, passam a lutar na Bósnia e no Azerbaijão, ainda
na época da URSS. “Há um relacionamento entre tais horrores e a guerra da CIA
no Afeganistão, nem tanto em termos de responsabilidade, mas certamente no
fortalecimento dos terroristas. Podemos discutir o grau, mas não o fato”
(Prados). Ou seja, nos estertores da Guerra
Fria, quase no colapso da URSS, os terroristas foram treinados pela CIA no
Afeganistão, onde aprenderam estratégias e táticas, auxiliando a luta dos EUA
contra a potência soviética que sucumbia. Os adeptos do terror continuaram a
agir na Federação Russa, como na Chechênia, mas a sua escola foi outra… Tais
setores se espalham pelo mundo. Hoje mesmo, com o nosso Estado em frangalhos e
a nossa democracia mais prometida do que realizada, eles podem manifestar seu poderio em qualquer
cidade brasileira. É apenas uma questão de tempo.
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