Fanatismo e ideologia, as batalhas do marketing
ROBERTO ROMANO - O Estado de S.Paulo
04 Fevereiro 2015 | 02h 06
Dilma Rousseff, na primeira reunião ministerial, afastou
questões complexas da sociedade brasileira. Cito apenas a situação
indígena, que preocupa defensores nacionais e internacionais dos
direitos humanos. O silêncio da presidente sobre a substância é
compensado por adjetivos próprios à persuasão de massas. Trata-se de
ganhar a mente pública para esconder os "malfeitos" gestados no seu
mandato. Os apelos ao povo mostram esquizofrenia, porque o País não se
recuperou do espanto pela contradição entre a última campanha e planos
da nova equipe econômica. O paraíso, promessa da candidata,
contrapunha-se ao inferno atribuído à oposição. Hoje o Averno ameaça os
contribuintes e a chefe de Estado retoma a propaganda. Nenhuma novidade.
No século 18 Frederico da Prússia foi mais franco: organizou um
concurso para saber se "é útil enganar o povo" (Ist der Volksbetrug von
Nutzen?). Os governos brasileiros responderiam positivamente. Eles
seguem o dito de P. Bayle: "Como o povo quer ser enganado, assim seja".
A prática de iludir multidões tem sua gênese no próprio regime
democrático. Em Atenas, Sócrates ironiza: ao construir casas ou navios
as pessoas escolhem técnicos competentes, mas o Estado é entregue a
qualquer um! O povo, adverte ele, é como um tribunal de crianças que
julgam entre o médico e o mestre-cuca. O cozinheiro acusa o esculápio
que prescreve regimes, remédios amargos, disciplina. Mas ele, o cuca
amigo, oferece aos juízes infantis doces e folguedos. Condenar o clínico
"cruel" é certeza. (Górgias, 521e). O marketing político engrossa a
receita do mestre-cuca. Com a lisonja ele enreda os que, supostamente,
dominam o poder estatal. A plateia é eterno alvo dos adulões na
teatrocracia (termo de Platão) política.
A lisonja e a demagogia têm dois lados, hoje e no mundo antigo. Primeiro
vem o demagogo (ou seus técnicos na arte de ludibriar) e depois o
anônimo povo. Na modernidade foi dada atenção às massas, como em Elias
Canetti (Massa e Poder). Mas os teóricos do Estado já afirmam ser
perigoso entregar o poder decisório à plebe. O povo, com sua imprudência
- assassinatos, sacrilégios, etc. -, se guiado por crenças (hoje
diríamos "ideologias") é perigoso. Ele serve como "joguete dos
agitadores, oradores, políticos. (G. Naudé, Considerações sobre o Golpe
de Estado, 1640). As multidões apaixonadas por Hitler, Stalin e outros
comprovam o enunciado de Naudé.
Passemos aos mestres da lisonja. Os atuais "soberanos" são iludidos por
agências que asseguram eleições e cobram muito, incluindo recursos de
fonte corrupta, dos partidos. O marketing não tem ideologia. Ele
trabalha para qualquer candidato desde que o metal apareça. Em O Grande
Gatsby, de uma ricaça diz o autor que sua voz "soava dinheiro". Tal é a
língua das eleições. A liberdade some quando líderes geram certezas para
adeptos. Tal fato lembra W. Lippmann e a tática de "fabricar o
consenso" à socapa (Public Opinion, 1922). Bernays (sobrinho de Freud,
inspirador de Goebbels, que dele usa o livro Cristalizando a Opinião
Pública, de 1923) nega toda eficácia democrática à sociedade de massas. A
cidadania forma um rebanho que não decide com o próprio cérebro
(Propaganda, 1928).
Na Revolução Francesa os líderes fizeram propaganda da laicidade para
ganhar a opinião pública e impedir lutas sectárias. Católicos e
protestantes tinham duas tarefas: salvar a República e a própria alma.
Mas, para os descristianizadores, Salus populi significa destruir a
religião. Para eles, só o ateu seria patriota. Os demais? Supersticiosos
inimigos do povo. Resultado desastroso, porque banidos os crentes "a
Revolução congelou"(Saint-Just). O radicalismo foi corrigido pelo culto
do Ser Supremo, no fim da República. Ainda em 1793 a Convenção coíbe o
fanatismo dos ateus que destruía os vínculos políticos.
A língua chula dos descristianizadores os denuncia. Ao comentar o
decreto contra as procissões (1792) o Père Duchesne ataca os crentes
como cafards (baratas) e foutus cagots (gente sem valor), bougres de
bêtes e outros mimos. A denúncia, no jornal, conduz à guilhotina. Os
convencionais, apesar de tudo, exigem deter os sacrilégios "em nome da
paz civil". Eles reiteram que "não se manda nas consciências". No
decreto de 21/2/1795, "nenhum signo particular a um culto pode ser posto
em lugar público (...) mas quem usar da violência contra um culto
qualquer, ou ultrajar os seus objetos, será punido segundo a lei de 1791
sobre a polícia correcional". O texto prova que o elo entre
descristianizadores e racionalidade é falso. O fanatismo da razão gera a
propaganda do Terror. Assassinar suspeitos? Um baile ao som alegre do
Ça ira... O Charlie Hebdo nasceu dos descristianizadores.
O insulto às crenças está incluído no gênero "intolerância". Seu
escárnio contra a religião vem do medo - ou desprezo - de algo temido ou
odiado (Spinoza, Ética, 3, prop. 52). Se reduzo o próximo à idiotia,
rebaixo a humanidade em mim. O terrorismo, inclusive a ridicularização
alheia, é inaceitável e obsceno.
A propaganda serve aos governos e seus bajuladores, radicaliza o
fanatismo incivil. Nos espaços da internet reservados aos "leitores"
vigora o escárnio contra quem recusa a horda. A linguagem apodrecida é
ali usada contra os adversários, promovidos a inimigos que se deve
matar, primeiro moral, depois fisicamente. Calúnias espalham fétida
propaganda intimidatória. Militantes emulam Rousseff: urge, com a
virulência de Trasímaco, vencer a batalha da comunicação na qual o
marqueteiro é um avatar do sofista. Os linchadores da rede exalam ódios
que levam à ruptura civil. Neles, à direita e à esquerda, falam a
ideologia e a sarjeta. "Os celerados de Shakespeare se detinham na
dezena de cadáveres porque ignoravam a ideologia"(Soljenitsyn). Em vez
de cosmopólis, a "rede social" - um oxímoro - é uma cacopólis, barbárie
que se delicia na perversidade. Já declarava seu inspirador: "Queremos
ser bárbaros. É um título honroso" (Hitler).
*Roberto Romano é professor da Unicamp e autor de Razão de Estado e outros estados da razão (Perspectiva)