quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Reflexões Sobre o terror , Roberto Romano, Revista Congresso em Foco, Ano 4, número 15, fevereiro de 2015. páginas 40 a 41.

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Reflexões Sobre o terror
Roberto Romano/Unicamp

Para dizer se fracassou o combate ao terrorismo é preciso, antes, afastar a autoimagem (lisonjeira, sempre) que as massas ocidentais fazem de si mesmas, de seu passado recente e das alianças que seus líderes estabelecem com os donos do poder na Ásia e na África. Para quem identifica “terror”e “islamismo” sem maiores matizes, temos de início algumas perguntas: Theodore Kaczynski, doutor em matemática na Universidade de Berkeley, o Unabomber,  foi militante islâmico? Os terroristas que espalharam gas sarin no metro de Tokyo pertenciam à seita Aum Shinrikyo, ou a um setor xiita ou sunita ? 

O terror surge no intervalo entre o Estado (democrático ou não) e o poder de movimentos pré-políticos ou pós-políticos, a religião alegada é apenas um item do problema. O principal elemento é o medo como arma de controle e intimidação dos povos. Meio de controle institucional de populações, da antiguidade aos nossos dias, o terror estatal é uma realidade tão evidente quanto a dos grupos e seitas que se candidatam a formar novos Estados, mesmo que os modelos para aquela formação sejam arcaicos e abjetos, como é o caso do Estado Islâmico.
A pressão pelo terror poderia, num território aberto pelas armas na Síria e no Iraque, gerar um Estado Islâmico? Sejamos claros : toda célula terrorista é  um Estado no plano embrionário. Ela se arroga o direito absoluto aos três monopólios estatais designados tanto por Max Weber quanto por Karl Marx. A organização terrorista  imagina ter o monopólio da lei (a sua lei deve imperar sobre todas as demais, humanas ou divinas). Ela também se arroga o monopólio da violência física. E julga-se no direito de arrancar finanças dos Estados já existentes ou de particulares, uma espécie de imposto sob forma de chantagem. O movimento terrorista projeta um poder absoluto. Ele não mantem relações dialógicas ou diplomáticas com os poderes estabelecidos (governamentais, religiosos, civis) mas segue à risca o enunciado de Clausewitz de que a guerra é a política conduzida por outros meios. E que meios! Sequestros, bombas contra populações inocentes, propaganda cruel. A diferença entre uma guerrilha terrorista e outra é o grau de violência e brutalidade empregada para atingir seus alvos. Vale a importância econômica e estratégica das vítimas potenciais ou efetivas. Matar na França ou na Nigéria são atos de diferente importância para grupos terroristas. Na França –ou nos EUA do 11 de setembro e do ataque ao Pentágono– a repercussão midiática e o valor simbólico (enfraquecimento do poder estatal e da segurança que ele proporcionaria) são maiores. Não é motivo de espanto, pois, se milhares de vítimas africanas recebem segundos na TV mundial e poucas linhas nos jornais, no mesmo lance em que semanas são dedicadas aos atentados nos centros do mundo “cristão e ocidental”.
A propaganda do terror leva em conta,  como instrumento poderoso, a irradiação planetária da própria midia ocidental. Em 1978 um jornalista francês, ao escrever sobre o terrorismo, criticava o jornalismo que dá notícias sem prudência ética (em nome da liberdade de expressão) e amplia atos violentos. “Logo”, dizia ele, “assistiremos decapitações nas telas da TV mundial”. (Laurent Dispot, La Machine à Terreur, Paris, Grasset, 1978). Hoje, a decapitação na internet e na TV são quase banais, integram o cardápio do jantar. “A imprensa”, eu mesmo adiantava em livro compreensívelmente atacado por líderes do jornalismo brasileiro, “não raro é refém e cúmplice dos terroristas. (...) A grande manobra da mídia capitalista é utilizar o terrorismo como fonte de notícias que vendem os seus produtos aos bilhões de humanos, aumentando a sua possibilidade de cobrança de anunciantes e dos governos, ao mesmo tempo em que aumentando o potencial terrorista produz consenso ao redor dos ‘perigos’ que rondam o mundo do mercado e da ‘liberdade’”. (O Desafio do Islã e outros Desafios . São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 62). No Brasil temos análises que merecem ser lidas sobre o tema, tanto no plano do terror de Estado quanto no dos terroristas que pretendem se transformar em poder de Estado. Veja-se o competente artigo de um especialista de direito internacional,  Antonio Celso Alves Pereira, “Sobre Terrorismos”in (Carta Mensal, número 644, nov. 2008, pp. 3 e ss).

Seria prudente ouvir os conselhos de um pensador político, entusiasta de Maquiavel e democrata. Refiro-me a Spinoza. No jogo do poder, indivíduos e povos seguem o ritmo da esperança e do desespero. Segundo Spinoza, “quando o nosso esforço foi inteiramente bem sucedido, a esperança desembaraçada do medo transforma-se em segurança; quando ele fracassa por inteiro, o medo desprovido de esperança transforma-se em desespero”. (Matheron, A. : Individu et communauté chez Spinoza. Paris, Minuit, 1988).  O desespero é solo fértil para os grupos que aderem ao terror. Não existe segurança diante da falta de escrúpulos que aproveita o desespero de multidões.

Com a crise dos Estados estabelecidos no mundo inteiro, é questão de tempo para que a fraqueza do aparelho político oficial seja surpreendida mais duramente por assassinos que usam a força física sem limites. E a saída dos governos ameaçados é  o aumento do controle físico e espiritual dos povos, com leis e procedimentos policiais que,  inicialmente usados contra os terroristas, implodem a democracia. A chamada Lei Patriótica é um enxerto autoritário na Constituição norte-americana. Com ela surgem restrições gravíssimas à liberdade de ir e vir, de expressão e de oposição real aos governantes. Tais agressões ao direito público e privado, impostas ao povo norte-americano mostram, no entanto, pouco sucesso no combate ao terrorismo. Geraldo Alves Teixeira defendeu na Unicamp uma sólida tese de doutoramento, no prelo para ser publicada:  “Razão de Estado e política antiterrorista nos Estados Unidos” (2011). Nela é exposta, com lógica e  fartos documentos, a Lei Patriótica.

Na verdade,  entramos, com a crise do Estado, em uma situação que um jurista conservador, mas inteligente, diagnosticou como “a guerra civil mundial”:  o espalhamento das guerrilhas em todos os continentes, seguidas pelas inauditas e truculentas ações dos Estados que terminam por restringir as liberdades públicas.  Remeto, com todas as cautelas, a Carl Schmitt, cujo escrito, intitulado “Diálogo sobre o guerrilheiro”, de 1969, deveria ser lido e meditado por todos os que se interessam pela questão terrorista. (Carl Schmitt, La guerre civile mondiale, Paris, Ère Ed., S/D).

Em escala muito menor, mas no mesmo ritmo do enfraquecimento do Estado nacional, observamos algo similar no Brasil. Aqui, parcelas do território já estão sob controle de quadrilhas armadas, contra as quais se arregimentam verdadeiros exércitos, como no Morro do Alemão e em outros morros.  E como resposta, que outra lei, senão a marcial, reina naquelas periferias de nosso país?

A crise do terrorismo é concomitante à crise de soberania nacional e imperial. O fracasso dos governos democráticos na luta contra ele situa-se, acima de tudo, no fracasso dos Estados para manter serviços públicos, entre eles a segurança, para um número inédito de cidadãos. Do século 19 até hoje a população planetária se moveu rumo às cidades, o que concentrou carências que desafiam a máquina estatal, tanto burocrática quanto economicamente (segurança, água, energia, alimentos, transportes, educação, ciência e técnica, lazer, transportes, etc).  A frustração das massas urbanas aumenta em escala célere, mas as respostas do Estado são a cada dia menos precisas e competentes, mais lentas. Surgem, nas periferias norte-americanas, londrinas, parisienses, romanas,  os potenciais exércitos de reserva para movimentos terroristas que prometem vida em abundância aos seus possíveis súditos, mesmo que o preço a ser pago seja o emprego da força mais bestial.

Vejamos a genealogia dos governos ocidentais. Os Estados em que eles se inscrevem se firmam por volta do século 14 da era cristã. Nos tempos seguintes os povos que os integram iniciam a sua expansão pelo Oriente e mares do mundo, até chegar ao extremo Oriente. Eles criam uma rede mundial de hegemonia das culturas ocidentais, de suas religiões, costumes, ordem política. Nos séculos 18 e 19 aqueles impérios atingem o clímax, vertem sangue e sugam riquezas das gentes submetidas. As revoltas sufocadas por metralhadoras (recordemos Kipling e seu obsceno “Gunga Din”, ou a guerra do ópio na China), contra a supremacia “cristã e ocidental”, produziram profundos ressentimentos, pouco percebidos ou arrogantemente ignorados pelos conquistadores. George Orwell,  profeta do anti-totalitarismo, na juventude esteve na Polícia Imperial Indiana, em Rangum, onde testemunhou a truculência dos inglêses para com os nativos. Aprendeu, por exemplo, que nos clubes para europeus da Ásia eram proibidos nativos e cachorros. Notou as falhas genocidas da cultura a que servia.

O modus operandi colonial não variou muito entre os europeus na Ásia, no Médio Oriente, na África, na Oceania. Tudo foi feito para  dividir povos, colocá-los sob o controle de tiranias tribais que  disputavam corpos e almas. Os colonizadores (com ajuda de missionários cristãos, católicos ou protestantes) mantiveram imensas multidões humanas no mais abjeto primitivismo, sem técnica própria, sem educação própria, sem autonomia e sem Estados próprios.

Choque de civilizações? Em primeiro lugar, sem a matemática, a filosofia e a medicina gregas, boa parte do saber árabe não existiria. E, de outro lado, sem a matemática (pensemos apenas na álgebra, mas o campo é numeroso), a astronomia, a medicina árabes, boa parte dos saber ocidental jamais chegaria à luz. O amálgama sutil que engendra formas de pensar científico, linguístico, técnico, se apresenta na história mundial em momentos e situações distintas. Existem autores, como Victor Davis Hanson, estudioso das guerras –da grega às recentes– que unem saber técnico e científico à democracia segundo o padrão ocidental. Deste modo, pensa ele, o Ocidente sempre vence porque une ciência, técnica e democracia, síntese inexistente em outras culturas. (Hanson, Victor Davis: Why the West has won, carnage and culture from Salamis to Vietnam, 2002). Mas ele não explica as conquistas européias do século 16 de modo satisfatório. Naquele período, até o século 18, os Estados ocidentais não eram democráticos.

No século 20, o único meio dos povos dominados conseguirem elaborar um Estado era seguir o modelo imposto pelos europeus : poderes de força, comandados por dirigentes ferozes que, através do terror impunham unidade a tribos e facções na Ásia e na África. Ainda no mesmo século, dirigentes truculentos penderam ora a favor dos nazistas, da URSS, e dos europeus ocidentais.  Como resultado surgiram os Nasser, os Kadafi, os Hassad, os Idi Amin, os Bokassa, e toda uma fieira de tiranos que uniam os povos e negociavam com os dois poderes saídos da Segunda Guerra, a URSS e os EUA. A primeira não conseguiu manejar as lideranças islâmicas com maestria, seu fracasso retumbante no Afeganistão o prova, mesmo tendo a sua invasão ao país sido garantida por um regime local pró-União Soviética. No efetivo, as causas da invasão não eram ideológicas em primeiro lugar. Como ainda hoje, o controle do petróleo estava na pauta.

Os EUA não puderam manter a prática dos seus antecessores imperiais, os europeus, pois não conseguiram controlar seus títeres pelo terror e pela manipulação do jogo de uns contra os outros. No Irã eles ajudaram os interesses britânicos pelo controle do petróleo, derrubaram o líder nacional Mossadegh e colocaram no poder uma tirania coroada que reforçou o sentimento contrário aos americanos naquele país. A derrubada de Mossadegh serviu como  ensaio para todas as ações golpistas norte-americanas no mundo,especialmente na América do Sul e no Brasil.  Leia-se o libelo de Stephen Kinzer : All the Shah’s Men, an American Coup and the Roots of Middle East Terror (New Jersey, John Wiley & Sons, 2003).

Assim, sem abertura para um Estado (menos ainda para um Estado democrático) e sem modernidade técnica e indústrial própria, sem evolução educativa própria (os herdeiros dos líderes e dos abastados asiáticos e africanos estudam em Cambridge, Oxford, Paris, Berlim, Harvard, a família Bin Laden é prova), sem autonomia política real, aos Estados mantidos por soviéticos ou norte-americanos, restou a força bruta ditatorial (inclusive na Arábia Saudita) que serve como estopim dos movimentos radicais e regressivos, com o delírio de uma era ressuscitada de grandeza islâmica.

Sem maiores sutilezas antropológicas e etnológicas, soviéticos e norte-americanos quiseram impor, via governos aliados, formas de perceber a vida social, religiosa, política. Aquelas potências, uma oficialmente atéia e a outra supostamente cristã, na verdade seguiam a única religião  da moderna ordem política internacional : o culto da razão de Estado e o terror para alcançar a hegemonia mundial. O Gulag, de um lado, seguido de intervenções virulentas como as ocorridas na Hungria e na Tchecolosvaquia, as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki, o napalm no Vietnã, e outros feitos, mostram que o terror é algo bem mais lancinante do que imaginam os mass midia.

Os soviéticos falharam porque seu próprio modelo de Estado chegou à bancarrota. Os EUA, mesmo depois da Coréia, do Vietnã, do Laos e do Camboja, insistiram em impor aos povos orientais e africanos o seu modelo de governo. No Afeganistão, para derrotar a URSS, eles se uniram a forças obscurantistas e corruptas que,  depois, se transformaram no poder Taliban. Os resultados foram catastróficos: uma guerra num país distante, do  qual apenas agora os norte americanos retiram os pés. No Iraque, as duas campanhas contra Sadam Hussein explodiram o arremedo de Estado alí existente. Com a morte do ditador ficaram livres movimentos guerrilheiros que não reconhecem poderes de Estado além do muçulmano, xiita ou sunita. Na Líbia, o fim de Kadafi explodiu instituições que, apesar de tudo, mimetizavam estruturas estatais. Veio o caos como resultado da “libertação” européia contra os tiranos gestados no ventre da Guerra Fria. Na Síria, um ditador cujo pai jogava com a URSS e os EUA dirige uma parte do país com apoio velado da Rússia. A outra se estraçalha nas mãos dos guerrilheiros e manda multidões para outros países, como a Turquia e o Líbano. As fraturas no mundo ocidental, asiático, no africano, são profundas e superam a capacidade dos poderes estatais para as atenuar. A semeadura está pronta para o terrorismo.

Vários dos enunciados acima, extraio de um livro relevante sobre o suposto choque das civilizações. Trata-se de um antigo diretor da CIA, Michael Scheuer, que advertiu desde longa data  (2004), para as imagens enganosas que o Ocidente faz do Islã e de seus movimentos guerreiros e terroristas. O nome e o conteúdo do volume indica sua adequação ao problema das culturas: Imperial Hubris, Why the West is Losing the War on Terror (Washington, Brasseys’s Ed., 2004). “O ponto (…) é se existe uma falha na civilização islâmica, ou resultado da transição de uma era do colonialismo europeu  –que plantou as sementes da modernização no Oriente Médio–  para uma incansável tirania dos Estados e regimes feitos para as anteriores  colônias européias”. As imagens que povoam as mentes ocidentais, mantidas com muita propaganda, diz Scheuer, é que o “mundo islâmico enlouqueceu, e nada do que foi feito pelos EUA tenha causado os ataques da Alcaida, ou tenha gerado o amplo sentimento contrário à América no mundo islâmico”.  

Não são poucos os agentes da CIA que percebem os erros estratégicos e táticos cometidos pelos EUA e aliados na chamada guerra contra o terror. Para uma história relevante daquela Agência, veja-se a publicação de John Prados, Safe for Democracy, the secret wars of the CIA (Chicago, Ivan R. Dee, 2006), em especial o capítulo “The Mountains of Allah”. Naquele capítulo, o autor mostra algo que tem passado na sombra em análises sobre o Estado Islâmico e outros movimentos de guerrilha terrorista: o aprendizado para a ação já começa, por exemplo, com grupos afegãos que, ao serem recrutados em tribos e seitas, passam a lutar na Bósnia e no Azerbaijão, ainda na época da URSS. “Há um relacionamento entre tais horrores e a guerra da CIA no Afeganistão, nem tanto em termos de responsabilidade, mas certamente no fortalecimento dos terroristas. Podemos discutir o grau, mas não o fato” (Prados).  Ou seja, nos estertores da Guerra Fria, quase no colapso da URSS, os terroristas foram treinados pela CIA no Afeganistão, onde aprenderam estratégias e táticas, auxiliando a luta dos EUA contra a potência soviética que sucumbia. Os adeptos do terror continuaram a agir na Federação Russa, como na Chechênia, mas a sua escola foi outra… Tais setores se espalham pelo mundo. Hoje mesmo, com o nosso Estado em frangalhos e a nossa democracia mais prometida do que realizada,  eles podem manifestar seu poderio em qualquer cidade brasileira. É apenas uma questão de tempo.