terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Um texto que julgo interessante para a reflexão. Ele integra o livro de mesmo nome.

O CALDEIRÃO DE MEDÉIA*

O problema da soberania popular, da soberania estatal e das ciências, hoje.

Roberto Romano**


"As ciências constituem um fraco poder, porque elas não são reconhecíveis em qualquer homem de modo eminente, salvo num pequeno número, e, nestes últimos, sobre poucas coisas. A ciência é de uma tal natureza, que ninguém pode dar-se conta de sua existência, sem a possuir numa larga medida".(1) É assim que o grande teórico do Estado moderno, Thomas Hobbes, indica o dilema do saber científico e da política. Para que o povo aceitasse o conselho dos cientistas, seria preciso que ele mesmo fosse dono de saberes. Ora, o vulgo não é capaz disto. E o número dos sapientes é diminuto. E mesmo no campo erudito, os verdadeiros sábios se especializam, conhecendo corretamente poucas coisas. O grande número de populares ignorantes, de um lado, e a pequena quantidade dos cientistas de outro, impedem pensar que o mando seja mantido pelo conhecimento. Contrário à democracia, Hobbes busca em outros planos a força do Estado também recusando o axioma platônico do rei filósofo, ou do filósofo rei.

Mas o descarte das ciências e dos cientistas enquanto fontes de poder legítimo, em Hobbes, também passa pela crítica da idéia que autoridades e povo fazem do conhecimento. Quem é visto como verdadeiro conhecedor pela massa? Não o cientista, mas o que amplia o saber: "As artes de utilidade pública", segue o Leviatã, "como as fortificações, a fabricação de engenhos e instrumentos de guerra, constituem um poder, porque contribuem para a defesa e para a vitória. Embora sua mãe verdadeira seja a ciência, mais precisamente as matemáticas, como elas nasceram pelas mãos do artífice, são consideradas como dele saídas, passando a parteira por mãe aos olhos do vulgo".

A metáfora do parto, utilizada por Hobbes retoma a linha socrática do saber ocidental. O programa platônico, afastado num aspecto, retorna ao pensamento hobbesiano por outra via. O aristocratismo da República continua no pensador inglês. A multidão jamais constitui uma fonte de saber. Muito pelo contrário. O povo nunca deve ser ouvido nos assuntos científicos, porque se prende às aparências, não atinge a essência das coisas racionais. A medicina é arte difícil. A política socrática propõe-se enquanto medicina da polis. Sócrates, num outro diálogo platônico, mostra o que pensa do povo, ao propor o seguinte exercício: se grande número de crianças é posto diante do cozinheiro e do médico, ambos lhes dirigindo um discurso, qual dos dois será o escolhido como guia? O cuca dirá aos pequenos: "Eu preparo doces variados, enquanto ele, o médico, lhes força a fazer regime". O médico afirma: "Eu faço isto para o seu bem". O cuca será eleito.(2)

Na democracia, o povo/criança mal educada, pensa que sua vontade não pode encontrar nenhum obstáculo. Nela, o excessivo arbítrio dos indivíduos conduz à catástrofe do Estado, gerando o mando tirânico, o exato oposto da democracia. Estas páginas da República, o livro fundador da teoria do Estado no Ocidente, ecoam em Hobbes. Neste último, o povo deixa de ser "criança", e se torna, no De Cive, perigosa e estulta massa sempre prestes a subverter a república, porque seduzida pelos sofistas. Os demagogos seriam como a bruxa Medéia, a qual enganou as filhas de Peleu, rei da Tessália: "estas mal avisadas, querendo rejuvenescer o pai decrépito, o deceparam, o cozinharam esperando vê-lo inutilmente, renascer". O povo comum, continua Hobbes, "não é menos louco do que estas pobres filhas de Peleu, quando, desejando reformar o governo do Estado, persuadido por algum ambicioso(...), após dilacerar a república, a consome mais do que a reforma, por um fogo inextinguível".(3) Note-se as metáforas usadas por Hobbes. Elas foram extraídas de Platão, com modificações. No grego, o demagogo é cozinheiro que estraga o regime (o termo tem esta origem) político. Em Hobbes, o sentido da imagem é o mesmo. O estatuto do povo é sempre o de ignorância sobre a ciência e a política.

No século 18, duas atitudes foram tomadas pelos teóricos do Estado e da ciência. A primeira, avançada por Imanuel Kant, propõe a cidadania no plano moral, mas sem conceder ao povo o direito de ampliar sua iniciativa no governo da república das letras e da política. É célebre o dito kantiano sobre o nexo entre o vulgo, os cientistas, os demagogos (tanto os opostos quanto os defensores do governo): "o povo vai ao sábio, como se procurasse um mágico (...) entendido em coisas sobrenaturais. Porque o ignorante tem uma opinião excessiva do sábio, de quem espera algo. É fácil prever que se alguém tivesse a esperteza de se apresentar como taumaturgo, ganharia a preferência popular". Segue-se a frase brutal de Kant: "O povo quer ser dirigido, isto é, (na linguagem dos demagogos), ser enganado. Mas ele não quer ser dirigido pelos cientistas universitários (pois sua sabedoria é muito elevada para ele), mas pelos agentes do controle, pelos técnicos do governo, pelos funcionários da justiça, pelos médicos, pelos padres".(4)

Apesar de tudo o que separa Kant de Hobbes, nesse ponto ambos aprovam o socratismo: o povo só atinge a opinião na política e na ciência, a famosa "doxa". Ele quer resultados técnicos, sem penetrar nas aporias da pesquisa, a não menos famosa "epistême". Estamos, nesta senda, a um passo da violenta diatribe hegeliana contra a soberania popular, e do conseqüente desprezo votado ao povo no que diz respeito à ciência.(5) O homem do povo não precisa de razão científica ou tecnológica para ser livre. "Kant conclui que a liberdade moral não depende do saber e das luzes no sentido clássico do termo (...) a racionalidade (moral) pode se exercer sob forma imediata, sem inteligência e sem objeto: para ser livre e virtuoso, não é preciso ser cientista".(6)

A outra atitude foi assumida por Denis Diderot e Condorcet. O pai da Enciclopédia desejou ampliar os conhecimentos técnicos e científicos do povo. Seu "Plano de Universidade para a Rússia", escrito a pedido de Catarina II, insiste na idéia de que uma "universidade é uma escola cuja porta está aberta indistintamente para todos os filhos de uma nação, e onde mestres pagos pelo Estado os iniciam no conhecimento elementar de todas as ciências".(7) Seguidor de Francis Bacon, Diderot considera indispensável, para atingir o Estado onde a liberdade estivesse assegurada, um saber científico e técnico espalhado na massa do povo. Condorcet levou ao máximo a tese da educação do povo, para que este exerça corretamente a sua soberania. O cidadão, diz ele, deve "se perguntar se não é vítima de um escrutínio deformado ou cheio de truques. Todo votante deve saber que mesmo as opiniões majoritariamente verdadeiras podem ser, por efeito de procedimentos viciados, combinadas num resultado globalmente errôneo." Deste modo, não existe democracia real sem povo instruído, a começar pelo cálculo geométrico, terminando nas técnicas e nas artes.(8)

Para que nosso tema apresente uma latitude maior, passemos à questão da soberania popular em Rousseau e nos seus discípulos imediatos. Estes foram apontados como irracionais, dada a recusa rousseoista das técnicas e das ciências. A fenda aberta por Rousseau, entre natureza e artifício, empurrou a doutrina da soberania popular para os antípodas da razão de Estado, e da razão simplesmente. Rousseau e seguidores, após o triunfo provisório do terror, foram vistos como primitivos e inimigos da ciência. Mais importante do que esta vexata questio, até hoje matéria de muitas disputas acadêmicas, foi a doutrina sobre a soberania popular negada pelos contra-revolucionários. Descartando, contra Rousseau, a soberania do povo, os conservadores termidorianos afastaram ainda mais a massa e os cientistas. Mas recomecemos, seguindo etapas.

No terceiro ano da Revolução Francesa, foi escrito um discurso cuja tônica era a desconfiança no governo representativo. "A soberania é uma, indivisível e inalienável, e vós a dividís repartindo-a, e a perdeis, transmitindo-a. Os ilustres homens a quem chamastes para fazer uma nova Constituição não têm outros direitos do que vos submeter as suas idéias. Numa palavra, o poder dos representantes é como um raio de sol refletido num espelho. Vós sois esta luz, a qual eu comparo ao astro diurno, e os deputados são o cristal que reflete o poder que neles depositastes e que só iluminarão a terra graças ao fogo que de vós emana".

Continua nosso orador: "A autoridade do povo, reunida numa ou em várias mãos, eis o nascimento da aristocracia, eis os perigos da outorga de uma potência. Se os deputados podem prescindir de vós para fazer leis e a sua sanção lhes parece inútil, neste instante nascem os déspotas e vos tornais escravos... Como um mandatário público pode imaginar que o mero título de representante da soberania pode possuir o próprio direito da soberania? Como eles podem acreditar que a opinião da soberania que a eles é confiada por vós pode conter em si o direito de decisão absoluta? As piores desgraças vos esperam se não for resolvido este problema. Estais perdidos se eles vos impõem leis que não aprovastes".

O autor das frases acima é o Marquês de Sade. O texto se intitula "Idéias sobre o modo de sanção das leis". Recordemos a causa dessas palavras. Estamos em 1792. Fracassou a primeira Assembléia Legislativa. Surge a Convenção, supostamente eleita por sufrágio universal. Supostamente, porque dos votos estavam excluídos os monarquistas, de um lado, e a massa dos sem propriedade, de outro. Aos representantes, expressando certa minoria, foi concedido o papel de encarnar a Nação soberana seguindo nisto as doutrinas de Sieyes. Seus poderes, teoricamente, não tinham limites. Nenhuma força interna adversa poderia persistir. A primeira potência sob ameaça era a Comuna de Paris. Esta última, nas palavras de Soboul, "municipalidade insurrecional, estava ameaçada de desaparecimento ante a representação nacional". Esta vontade de aniquilar a cidade mais importante no processo revolucionário, até aquele momento, foi expressa por Lasource, um representante do interior: "É preciso que Paris seja reduzida em 83 por cento de sua influência, como cada um dos demais departamentos". (Cit. por Soboul).

Na Comuna de Paris brotavam, a cada instante, novas massas dos sans cullottes, reivindicando uma economia contra os dogmas da propriedade, guardados mesmo por jacobinos. Os Girondinos, para atenuar o poder de fogo da Comuna, apelavam para uma "federação", na qual o particularismo reinaria, através das administrações locais. Os Montanheses, deputados de Paris, seguiam relutantemente as forças populares da grande urbe.

Entre os dois "partidos", havia o centro, reunindo oportunistas que "temiam o povo, no fundo; a violência arbitrária e sanguinária lhes repugnava e, para eles também, a liberdade econômica tinha o valor de um dogma" (G. Lefebvre). Durante algum tempo, os Girondinos pareceram senhores da Convenção, baseados na desconfiança dos interioranos contra a Comuna e os sans culottes parisienses, o medo de massacres, a raiva contra as palavras de ordem nocivas à propriedade. Roland, representando esta facção burguesa, tudo fez para destruir a Comuna a qual, ao ser dissolvida, em novembro, havia perdido seus poderes excepcionais e suprimido seu Comitê de Vigilância. Roland, economista e ministro de plantão, na época, denunciava a "prodigalidade da Comuna, que mantinha o pão a 3 soldos, à custa dos contribuintes". Mesmo Saint-Just, radical em outros prismas, "como economista ortodoxo" no debate sobre o comércio dos cereais, "mostrou que o único remédio para a carestia era reprimir a inflação" (Lefebvre).

Voltemos às advertências de Sade. Os atos políticos lembrados, mostram que o discípulo de Rousseau soube, de modo certeiro, identificar a virada que se anunciava na Convenção. Mudança que surgiria, com toda plenitude, no Termidor, após a derrota da Comuna e de outras políticas cuja premissa era a soberania popular direta. Notemos a torção realizada por Sieyès, na própria idéia de soberania: esta, de "popular", passou a ser "nacional". O deslizamento precisa ser acompanhado nos textos de Rousseau e de Sieyès. Lembremos alguns traços conhecidos das duas teorias tão próximas e tão distantes.

Para Rousseau, a soberania é inalienável. Se há "pacto" para existir "governo" (gouvernement) o povo "perd sa qualité de peuple". Só o povo é legislador, mesmo que ele precise ser instruído por um sábio, porque nem sempre ele pode ver o bem que ele sempre deseja. Mas o sábio só propõe leis: "le peuple même ne peut, quand il le voudrait, se dépouiller de ce droit incommunicable". O que é o governo, sobretudo para os homens que o asseguram? "Um emprego no qual, enquanto simples funcionários (officiers) do Soberano, eles exercem em seu nome o poder de que são depositários, e que ele pode limitar, modificar ou retomar quando bem lhe aprouver, sendo a alienação de um tal direito incompatível com a natureza do corpo social e contrário ao fim da associação". Instituindo o Governo, o Soberano povo converte a Soberania "em Democracia". Cidadãos tornam-se magistrados, funcionários do Soberano. Reunido em Assembléia, o Soberano mostra-se onipotente, o poder executivo fica suspenso.

Toda Constituição é provisória, os "empregos" governamentais são revocáveis. Sempre que o administrador assume uma autoridade independente do soberano, ele viola o "traité social", dissolvendo o próprio Estado, constituindo um "novo Estado" só composto pelos próprios executivos, excluindo os cidadãos. Estes, a partir deste momento, retornam à liberdade natural, e não são obrigados, embora sejam constrangidos, a obedecer. "O soberano só pode ser representado por ele mesmo". Deste modo, deputados eleitos não podem ser "representantes" mas "comissários", ou "delegados". O que o Povo "en personne" não faz, não é lei. Povo "representado" não é povo, nem livre.

Sieyès, ao contrário, pensa os deputados como representantes, possuindo um mandato geral. Mesmo concedendo que este mandato está "ao dispor" de quem o concedeu — o povo — sendo revocável e limitado, Sieyès elogia o regime representativo. Tudo, diz ele, no estado social, é matéria de representação, e os homens aumentam sua liberdade quando concordam em serem representados tantas vezes quantas seja possível. O argumento é que, embora tenhamos uma só autoridade política — o próprio corpo social — existem diferentes órgãos daquela autoridade, baseados em diferentes comissões dadas pela sociedade. Trata-se de um "concurso de poderes". No Contrato Social encontramos a nota célebre de Rousseau sobre o direito de propriedade e a péssima administração: "sob os maus governos", a "igualdade é somente aparente e ilusória; serve só para manter o pobre na miséria e o rico na usurpação. Na realidade as leis são sempre úteis aos que possuem e prejudiciais aos que nada têm, donde se segue que o estado social só é vantajoso aos homens quando todos eles têm alguma coisa e nenhum tem demais".

A tese acima passou, na pena de muitos comentaristas, como um paradoxo de Rousseau. Mas o nexo entre apropriação legal e excludente, entre propriedade e tipo de governo, foi estratégico nas ações e doutrinas dos que escreveram sobre a vida política antes e durante a Revolução. Para ficar com o exemplo de Sieyès: nas suas "Observações sumárias sobre os bens eclesiásticos" (1789), ele afirma que os corpos morais (clero, cidades etc.) têm direitos sagrados no que tange à propriedade, bem como os indivíduos.

Em Rousseau, a propriedade só pode ser uma concessão do soberano, constituído no pacto social. O soberano, caso os particulares ricos sejam infiéis ao público, tem o direito de lhes retirar o direito sobre bens. O corpo político decide que haverá propriedade. Em sua edição do Contrato, M. Halbwachs chega a dizer que, em plena lógica do sistema rousseoísta, o soberano "poderia admitir que todos os bens permanecerão comuns e que, tal como estado de natureza, os frutos da terra são para todos, mas a terra não é para ninguém, ou, ainda, que a terra só pertence ao soberano". Rousseau indica o liame entre soberania popular, subordinação do governo a ela, limitações da propriedade e governos que a desviam, dando como resultado a desigualdade econômica e social. O pensador gerou a distinção, no pensamento jurídico e político, entre "soberano" e "governo".

Robert Derathé registra o fato de que essa distinção, com fortes conseqüências na feitura das leis, não existe na maioria dos países que hoje se julgam democráticos. Neles, "é raro que uma lei possa ser votada sem o assentimento do governo". Mantendo-se a desconfiança de Rousseau diante dos maus governos, autônomos face ao povo, podemos ter uma noção das imensas dificuldades, para os seus seguidores, na Convenção, quando eles precisaram administrar, ao mesmo tempo, a sacrossanta propriedade e os sans culottes parisienses, na Comuna. Indecisos entre a burguesia e as massas, os jacobinos terminaram num zigzag que os conduziu à guilhotina.

Tomemos Robespierre. Nos primeiros tempos da Revolução, ele sustentou a idéia, pouco ortodoxa em termos rousseoístas, da soberania dos deputados. Apenas depois de 1791, quando se convenceu de que a Assembléia Nacional não tinha força para vencer os inimigos da França, insistiu sobre a soberania popular. Mesmo assim, no discurso proferido em 24 de abril de 1793, sobre a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Robespierre, falando sobre a propriedade afirma: "Ao definir a liberdade como o primeiro dos bens humanos, o mais sagrado entre os direitos naturais, dissestes com razão que ela tinha como limite os direitos alheios. E por que não haveis aplicado tal princípio à propriedade, uma instituição social?". Entre as medidas avançadas por ele, esquecidas pelos convencionais, está "o princípio do imposto progressivo". Na "Declaração" escrita por Robespierre, lemos: "o direito de propriedade é limitado, como todos os demais, pela obrigação de respeitar os direitos dos outros". Para garantir este ponto, o artigo 16, do mesmo texto, termina afirmando que "o povo, quando lhe agrada, pode mudar o seu governo e os seus mandatários". No artigo 26 temos a doutrina sobre governo: "As funções públicas não podem ser consideradas como sinais de superioridade, nem como recompensa, mas como deveres públicos. Os delitos dos mandatários do povo devem ser severa e agilmente punidos. Ninguém possui o direito de se pretender mais 'inviolável' do que os outros cidadãos. O povo tem o direito de conhecer todos os atos dos seus mandatários; estes devem prestar contas fiéis da sua gestão e sujeitar ao seu juízo com respeito".

No discurso "Sobre a Constituição", pronunciado em 10 de maio de 1793, Robespierre coloca a aporia ainda hoje irresolvida nos Estados republicanos que se julgam democráticos: "Dar ao governo a força necessária para que os cidadãos respeitem sempre os direitos dos cidadãos; e fazer isto de um modo tal que o governo nunca possa violar estes mesmos direitos". O governo, continua, "é instituído para fazer a vontade geral respeitada. Mas os governantes possuem uma vontade particular: e toda vontade particular tenta dominar a outra". Qualquer constituição deve, segundo Robespierre, "defender a liberdade pública e individual contra o próprio governo". De modo rousseoísta, ele ataca: "o povo é bom e seus delegados são corruptíveis: é na virtude e na soberania do povo que precisamos buscar uma barreira contra os vícios e o despotismo do governo... A corrupção dos governos tem sua fonte no excesso do seu poder e na sua independência nos confrontos com o povo soberano". Robespierre invectiva a "velha mania dos governos de querer muito governar".

Apesar dessas proclamações, o político termina afirmando que "no governo representativo não existem leis constitutivas tão importantes quanto as que garantem a regularidade das eleições". E a solidez de uma Constituição se baseia "na bondade dos costumes, no conhecimento e no sentido profundo dos sagrados direitos do homem". Empurrado pelas massas e cercado pelos contra-revolucionários de todos os matizes, dentro e fora da Convenção, o setor jacobino encara, finalmente, o problema do governo comum e suas diferenças com o governo revolucionário. O primeiro conserva a República, o segundo funda a mesma. O governo revolucionário extrai sua legitimidade da "mais santa dentre as leis, a salvação do povo" e da necessidade. Governo revolucionário não significa "anarquia nem desordem. O seu fim é, pelo contrário, reprimir as duas coisas, para conduzir ao domínio das leis (...) quanto maior o seu poder, quanto mais sua ação é livre e rápida, tanto mais é necessária a boa fé para dirigi-lo". (Relatório apresentado em 25 de dezembro de 1793 à Convenção, em nome do Comitê de Salvação Pública). A mudança de "soberania popular" para "ditadura" é clara. A última salva o povo.

Mas, e se os ditadores usufruírem o poder para si apenas? A resposta de Robespierre desalenta: o ditador deve ser virtuoso. Já Diderot advertira o perigo do tirano amável e querido pelo povo. No mínimo, seus sucessores, ou ajudantes, eternizariam a escravidão voluntária das massas. Através de muitos meandros, finalmente, deu-se, na Convenção jacobina, o que temia Rousseau: o governo, para "instituir" a boa República, tornou-se "superior" à população. Este ensaio de autonomia dos "funcionários do universal", frutificou de muitos modos. Madame de Stael ressalta, nas Considerações sobre a Revolução Francesa, que após o Termidor, com o advento do governo militar e burocrático de Napoleão, foram mantidos vários prismas formais das Constituições revolucionárias, sobretudo os que forneceram ao Corso instrumentos para eliminar do campo político os seus adversários. Os sans culotte, nas Assembléias Populares, insistiam na idéia e na prática da soberania do povo e na revocabilidade tanto dos deputados (chamados por eles "mandatários") quanto dos funcionários públicos. Em 1º de setembro de 1792, a seção "Poissonière" declara: "considerando que o povo soberano tem o direito de prescrever aos seus mandatários a via a ser seguida para agir conforme a sua vontade", os deputados deveriam ser discutidos, aprovados ou reprovados pelas Assembléias primárias. A Assembléia Geral do "Marché-des-Innocents" decidiu, em 25 de agosto de 1792," que os deputados serão revocáveis por vontade de seu Departamento", bem como "todos os funcionários públicos".

Todas essas noções deixam de ser veiculadas e propostas, com a constituição do governo revolucionário e com a ditadura do Comitê de Salvação Pública, o qual "revocou" estas práticas de soberania popular.(9) Os ditadores, na empresa do Estado, "despediram o povo", como este podia despedi-los antes do governo "instituinte". Como disse, este ato de expulsar o povo da cena decisória, serviu para os que derrubaram Robespierre, e assim por diante, de golpe em golpe, passando pelo grande Napoleão, e pelo pequeno, até a época da Comuna de Paris, com o governo Thiers, fruto lídimo e máximo da contra-revolução Termidoriana.

Alain Badiou, em texto grave de conseqüências, escreveu recentemente sobre o conceito de "termidoriano".(10) Neste estudo, o autor discute certas idéias recebidas na historiografia habitual, incluindo a marxista de Soboul e outros, para quem o 9 Thermidor consistiu no "fim do Terror". Isto, argumenta Badiou, não é verdade. "A Convenção Termidoriana foi, ela mesma, fundada num massacre terrorista. Robespierre, Saint-Just, Couthon, foram executados no 10 Termidor, com dezenove outros, sem nenhum julgamento. Em 11 Termidor, a quantidade é de 71 mortos, a mais elevada de toda a revolução".

Ou seja: o procedimento do Terror não se confinou nas mãos dos jacobinos. Ele foi usado pela contra-revolução durante os anos 94 e 95. É preciso recordar a idéia de que a ditadura jacobina deveria estar em "boas mãos" virtuosas. Esta base subjetiva, comenta Badiou, expõe a precariedade desta política. Os Termidorianos, justamente, usaram o poder ditatorial à imagem da constituição do Ano 3. Nela, a Virtude foi substituída pelo "mecanismo estatal da autoridade dos proprietários, o que significou instalar a corrupção no coração do Estado". Não se faz nenhum segredo, naquele texto, da ruptura entre povo e dirigentes do Estado. No artigo 366, diz-se com clareza solar: "Toda tropa não armada deve ser dissolvida". As petições, segundo o artigo 364, devem ser estritamente individuais. "Nenhuma associação pode apresentar petições coletivas, a não ser as autoridades constituídas, e apenas para objetivos próprios às suas atribuições". E, finalmente no artigo 361: "Nenhuma assembléia de cidadãos pode se qualificar como sociedade popular". Com o Termidor, muda o alvo dos governantes terroristas. Ele, agora, são os que afirmam o caráter popular da soberania. A fonte do Terror é o Estado, baseado no censo dos proprietários. Não tem razão, pois, a historiografia que fala no "fracasso" jacobino e na irrupção da "verdadeira" essência burguesa, com a totalidade do processo revolucionário.

Não houve "fracasso", mas o "fim" de uma política, a jacobina. Citando Saint-Just: " o que desejam os que não querem nem virtude nem terror?". Os termidorianos, avança Badiou, não querem um Estado baseado na virtude, mas querem o terror estatal. A virtude foi substituída pelo interesse. Qual interesse? O dos proprietários e do mercado. Citando o termidoriano Boyssi d'Anglas, em discurso de 5 Messidor, ano 3: "Devemos ser governados pelos melhores (...) ora, com poucas exceções, só podemos encontrar semelhantes homens entre os que, possuindo uma propriedade, são apegados ao país que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva".

Enquanto a "virtude" era uma determinação subjetiva, "os melhores", dos termidorianos são uma figura objetiva da propriedade "condicionada absolutamente".(11) Para o termidoriano, o país não é, como para o jacobino, o lugar possível das virtudes. Ele é o receptáculo da propriedade. A lei, para o termidoriano, não é máxima derivada do nexo entre princípios e situação. Ela é apenas o que protege a propriedade. A insurreição, para o termidoriano, não é dever sagrado. A sua reivindicação principal é a tranqüilidade. Badiou traz a noção de "termidoriano" para nossos dias. "Meditar sobre a corrupção", diz ele, "não é hoje uma tarefa inútil". Um termidoriano, por definição política, é um corrompido. Ele é um "aproveitador da precariedade das convicções políticas. Mas em política só existem convicções (e vontades). "E historicamente, como indica corretamente Badiou, "os termidorianos são, o dossier é claro, corrompidos no sentido corrente. E não é por nada que eles vieram depois do Incorruptível. Citemos o dinheiro inglês, que eles receberam com abundância, o saque dos bens nacionais, o açambarcamento dos grãos. Citemos a pilhagem militar (Termidor também é a passagem da guerra republicana, defensiva e baseada em princípios, à guerra de conquista e rapina) e o mercado de fornecimento aos exércitos".

Ademais, Badiou lembra o conúbio termidoriano com os donos de escravos e das colonias. Ou seja, para todo termidoriano, "histórico ou de hoje, a categoria da Virtude é declarada sem força política". Para ter eficácia, é preciso que a política seja interesse do mercado. É isto o que Badiou chama o "fim" de uma política, com o velho oportunismo, incluindo pessoas "de esquerda" que vendem a alma por um cargo, no primeiro ou último escalão. "Um termidoriano é constitutivamente (como sujeito) alguém à procura de um lugar". O mais terrível, arremata Badiou, é que os "termidorianos históricos não foram aristocratas exteriores, restauradores, ou mesmo girondinos. Eles eram gente da maioria robespierrista da Convenção".

Os defensores da soberania popular são "irracionais", segundo os termidorianos. Boyssy d'Anglas, o mesmo que falava dos proprietários como os "melhores governantes", forneceu o exemplo em seu discurso: "Se forem dados a homens sem propriedade os direitos políticos, sem reserva, e se eles sentarem nos bancos legislativos, eles excitarão ou deixarão excitar agitações sem temer os efeitos; eles estabelecerão ou deixarão estabelecer taxas funestas ao comércio e à agricultura, porque não terão sentido, nem temido, nem previsto, as terríveis conseqüências, e eles nos precipitarão enfim nas convulsões violentas das quais estamos apenas saindo".(12)

Assim, mantendo a máquina estatal e afastando a soberania popular, os termidorianos, até e depois da Comuna, utilizaram a repressão, o terror, para garantir os proprietários e os "empregos governamentais" para os intelectos acadêmicos, ou suficientemente letrados para servir como escribas e racionalizadores do social. Após certo tempo, os "engenheiros da sociedade" foram submetidos aos "economistas", nova casta de infalíveis servidores do Estado e dos governos, grandes protetores da santíssima propriedade.

Com o Estado napoleônico, fruto do Termidor antidemocrático, refluiu definitivamente a tese da instrução do verdadeiro soberano, o povo, para que ele pudesse exercer suas prerrogativas. A partir daí, foram separados por um abismo os ideais democráticos e o saber. A maior parte das propostas de governo e de conhecimento científico apartaram o povo e os intelectuais. Para Augusto Comte, estratégico se quisermos entender o Estado, a ciência e a tecnologia em nosso país, a liderança política pertence aos cientistas e aos industriais. Ao povo destinam conhecimentos elementares.

Comte recusou a soberania baseada na opinião. A democracia, pensava ele, é um governo que apenas substitui o dogma da infalibilidade papal por outro, o da infalibilidade popular. Tais doutrinas desmembrariam "o corpo político, colocando o poder nas classes menos civilizadas". A forma democrática seria a "fonte das revoluções". "Nem a opinião dos reis, nem a opinião dos povos podem satisfazer a necessidade fundamental de organização que caracteriza os tempos atuais".(13) Mesmo avesso à soberania "das classes menos civilizadas", Comte propôs uma "Biblioteca do Proletário" cujo conteúdo até hoje seria considerado "utópico" por muitos que reduzem a educação das massas ao manejo técnico. Entre as obras a serem lidas pelos proletários, temos a Aritmética de Condorcet, a Álgebra e a Geometria de Clairaut, O Curso de Análise de Navier, as Reflexões sobre o Cálculo Infinitesimal de Carnot, A Teoria das Funções de Lagrange, etc.(14) Uma lista assim, em nossos dias, se atualizada, seria rara mesmo nos primeiros anos da graduação universitária.

Os positivistas brasileiros formularam o desejo de ampla educação técnica das massas, sob controle dos sociólogos. Lembremos o projeto de educação proletária, submetido ao Governo Provisório por Teixeira Mendes, através de Benjamin Constant (25.12.1889). "O aperfeiçoamento do homem, mesmo no ponto de vista exclusivamente material, é mais importante do que o melhoramento dos aparelhos industriais, por que (...) não houve nunca instrumento bom para o operário ruim. O desenvolvimento da indústria moderna vai exigindo do proletário cada vez maior instrução para bem manejar as máquinas. E, por outro lado, a vida republicana exigindo que cada cidadão cumpra espontaneamente o seu dever, vai impondo a cada um maior grau de moralidade e instrução para a prática e o conhecimento do mesmo dever. E como conseguir tudo isso enquanto o filho do proletário, isto é, a massa da nação futura viver na miséria e ao abandono de todos os recursos?".(15)

Apesar dessas noções comoventes, o programa positivista recusa a democracia eletiva, prega a ditadura dos intelectuais competentes, unidos aos empresários e banqueiros. Há em Comte uma tese que julgaríamos nova, caso a víssemos estampada nos jornais. Cito o teórico: "Em cada república particular o governo propriamente dito, isto é, o supremo poder temporal, pertencerá naturalmente aos três principais banqueiros, respectivamente dedicados de preferência às operações comerciais, manufatureiras, e agrícolas".(16)

Algo no programa positivista sobre o Estado é estratégico para a ciência e a técnica. Trata-se da eminência do Executivo contra os demais poderes. No positivismo, semelhante ditadura foi nuclear, herança mantida e ampliada ao longo de nossa história republicana. A versão menos rigorosa desta ditadura encontra-se nas fórmulas de Pierre Laffite, defendidas por Benjamin Constant: a "preponderância do Governo sobre as Assembléias, preponderância que se caracteriza sobretudo pela iniciativa; e, em segundo lugar, pela concentração numa única pessoa, dessa ação diretora governamental".(17) Esta noção se transformou em prática no Exército, onde o programa positivista encontrou larga audiência. A colaboração da Escola Politécnica no impulso aos batalhões de engenharia, e a aplicação direta de saberes por militares na defesa nacional deve-se a esta atitude centralizadora, baseada em conhecimentos científicos e técnicos.

Nada a estranhar se os engenheiros militares, com seus pares civis positivistas, êmulos de Luiz Pereira Barreto, tenham formado a espinha dorsal dos planos científicos e políticos, durante muitos governos republicanos, mesmo na ditadura Vargas, a qual abriu os primeiros espaços para uma experiência em grande escala de produção científica e técnica com bases nacionais. Como disse o Sr. Fernando Henrique Cardoso, os oficiais militares "constituiam um grupo educado que passava boa parte de sua formação nas cidades e que se define profissionalmente por sua relação com o Poder (...) sacerdotes de um culto que lhes era familiar, o do Estado".(18) Na consciência militar brasileira, temos as metas de concentrar a ciência e a técnica, conseguir a tutela do poder civil, impor a eminência do executivo, engendrando intelectuais que se definem pelo culto ao Estado e pelas iniciativas nestes planos.

Semelhante exame de várias doutrinas sobre a ciência e o Estado, sobre a opinião pública e os cientistas, leva aos seguintes itens:

1) Desde Hobbes, a ciência e a técnica são matérias do Estado. O povo deve obedecer e não tem forças para captar a ciência, e as suas diferenças face à mera aplicação utilitária, imediata.

2) Numa via, a kantiana, depois a hegeliana, o povo é ignorante em termos científicos, e não pode se arvorar em patrono do conhecimento. Este é propriedade do Estado, como a ciência, e não de uma suposta soberania popular.

3) O setor das Luzes mais democratizante, através da Enciclopédia e de Condorcet, lutou por uma formação ampla do povo, para que ele pudesse governar e decidir sobre todas as questões de seu interesse, dentre as quais a ciência e a técnica, ocupando lugar eminente. Em Rousseau e nos seus discípulos, foi acentuada a soberania popular, mas longe das ciências e das técnicas. Deste modo, soberania do povo e misologia foram identificados pelos conservadores, que indicaram no Terror o reino da ignorância popular, quando de fato trata-se de outros pontos diversos ao do saber. O fulcro real, efetivamente, era o controle social da propriedade.

4) Com o Termidor, ergueu-se a tutela dos intelectuais sobre o povo, e uma proteção especial do Estado, no tocante ao ensino e à pesquisa científica.

5) Afastada a soberania popular, o Estado tornou-se o sujeito, especialmente no Executivo, das ciências e das técnicas. Assim, ele foi posto acima da sociedade e das formas de pesquisa científica.

6) A mediação entre sociedade e universidade ou laboratórios de pesquisa deu-se por intermédio do Estado, especialmente do Executivo, uma vez que os Parlamentos e o Judiciário foram excluídos da iniciativa, na formulação das políticas científicas e tecnológicas.

7) Esta situação tem origens remotas, como vimos, mas indica uma curva lógica de Hobbes até os nossos dias. Ou os pensadores defendem a soberania do Estado (como Hobbes, enquanto paradigma), e nesse caso os cientistas e seus trabalhos são atributos estatais, ou eles defendem a soberania popular, sendo então os cientistas autônomos diante do Estado, apesar de receberem dele a remuneração, e ligam-se às nações e ao povo soberano (o paradigma aqui é a Enciclopédia francesa). O positivismo tentou unir formação técnica das massas, com a negação de sua soberania. Assim, reforçou a ditadura de um só homem, posto no ápice do poder Executivo, tendo a força da iniciativa em tudo o que se refere aos negócios públicos, especialmente no plano educacional e científico.(19)

A "mundialização" afetou a "iniciativa" do Executivo, no mesmo passo em que colocou em cheque os demais poderes do Estado, os Parlamentos e o Judiciário. Seja qual for o sentido desta palavra, é claro pelo menos que os atores sociais clássicos tendem a considerá-la sob vários prismas. Os políticos a enxergam como algo que supera o Estado nacional. Os sindicalistas nela encontram uma nova oposição entre capital e trabalho, induzida pela crescente importância do setor financeiro no capitalismo. Os intelectuais, em especial os economistas, nela encontram um novo crivo entre trabalho qualificado e trabalho não qualificado.(20)

Com a globalização,(21) ou contra ela, uma realidade espanta: hoje, a partilha de riquezas e de saber planetários é cada vez mais alarmante. Os 20% mais ricos do mundo guardam mais de 80% do PIB mundial. O número dos pobres cresce no ritmo da população da Terra, 2% ao ano. Estas cifras são apresentadas pela ONU e pelo Banco Mundial. Mas o nome e a propaganda não podem esconder por muito tempo um traço: os Estados Unidos e outros Estados nacionais supostamente moribundos, exportam hoje bens mais intensivos em trabalho do que os que eles compram no exterior. São mercadorias que exigem mais trabalho e menos capital as exportadas pelos países ricos. A vantagem destes últimos diante dos pobres reside na composição de sua mão de obra, a parte do trabalho nela qualificado.(22) E não existe trabalho nacional qualificado sem, antes, um pesado investimento em ciência e técnica.

Embora aceitando-se esse ponto, nota-se uma desvalorização do Estado nacional enquanto força da vontade política. Entre países que mantêm a soberania e se preocupam com a qualidade de sua mão de obra e a propaganda de uma reorganização territorial, uma "república mundial utópica", como pensar um mundo político onde o Estado não tenha o papel dirigente, a iniciativa em todos os campos?(23) Seja afirmando a debilidade do Estado nacional, seja negando-a é consenso indicar que, ao lado do papel cada vez mais amplo do capitalismo financeiro, neste processo tem-se a revolução técnica unida à informática, a qual afeta profundamente o nexo entre capital e trabalho. Indicam vários teóricos: os trabalhadores sem instrução técnico-científica empobrecem, enquanto os demais tornam-se mais ricos.(24) Como enuncia Daniel Cohen, este fenômeno deve-se menos à globalização do que a uma forte mudança tecnológica.

Este último autor mostra duvidar do possível preenchimento do abismo que se abre, mesmo nas economias fortes, entre os trabalhadores sem instrução tecnológico/científica e os que se qualificaram neste prisma. Neste campo, outros autores defendem a aplicação de recursos na mão de obra, tornando-a cara (à diferença das flexibilizações do trabalho, com seu barateamento, propostas entre nós e nos outros países intermediários entre o desenvolvimento e o atraso) com o fito de tender para a diminuição do deficit social. Trata-se de, via Estado, diminuir as desigualdades mais gritantes entre os trabalhadores, requalificando-se a mão de obra para o trabalho exigido pelas novas técnicas. Nas teses de um novo keynesianismo afirma-se que o sistema capitalista, se quer sobreviver a si mesmo, deve preservar o Estado providência e sua vontade de reduzir as desigualdades.(25)

Assim, após o Tratado de Maastricht, e o seu atual questionamento, após a vitória da esquerda na França, após o fim da URSS, com uma nova estratégia de defesa, e após as experiências neoliberais, se esboça a tendência de se redimensionar a soberania nacional, e mesmo velhas questões como a soberania do povo. Não se fala mais com certeza sobre o "fim" do Estado nacional.

Como todos os demais aspectos do Estado anterior ao neo-liberalismo (saúde, educação, comércio, indústria etc.), o plano da ciência e da técnica volta a ser algo que merece uma consideração, em termos de políticas públicas, estatais. Para conseguir uma vida mais segura, os países ricos da Europa e de outros continentes investem na educação de seu povo, fornecendo maior cuidado aos itens científicos e técnicos. Este aspecto define a hegemonia no próprio mercado planetário, locus de uma luta entre companhias com abrangência mundial, mas sediadas em determinadas nações, que delas recebem muito, mas que a elas também fornecem apoio tático armado e diplomático essenciais.

Não se trata de ignorar as teses que afirmam o fim do Estado nacional e da universidade idem. Mas importa não ficar mesmerizado pela propaganda, mesmo que sob aparência acadêmica, a qual avança, sem provas lógicas, históricas e outras, a idéia de que mesmo nos países ricos, como os europeus e nos EUA, sumiu o Estado nacional. Este diagnóstico mostra todo seu equívoco no trabalho de Bill Readings, The University in

Ruins.(26) Alí, o autor afirma que a universidade estadunidense atingiu a era do comércio absoluto, desvinculando-se do Estado nacional norte-americano. Os campi seriam algo assim como o shopping center do bairro, onde alunos buscam "mercadorias" — técnicas — adequadas para vencer no campo do trabalho, cada vez mais elitista pelas diferenças na formação dos indivíduos e grupos. O livro traz muitos aspectos verdadeiros, mas "esquece" alguns elementos básicos. Por exemplo, ele se cala sobre os investimentos estatais, combinados com os particulares, na pesquisa científica e técnica tendo em vista produzir, em universidades importantes, ciências que se traduzam em engenhos de guerra cada vez mais sofisticados. Se não há soberania nacional e hegemonia em escala do planeta, por que este setor é vivo, nos países ricos?(27)

As desigualdades entre os trabalhadores qualificados e os não qualificados tendem a se afirmar como desgraça inelutável, ou exigem o retorno (naturalmente com muito engenho e arte) do Estado à iniciativa das políticas educacionais, de ciência e tecnologia. Os desníveis nas sociedades ricas tornam-se espantosos quando eles são pensados comparando-se os habitantes dos países pobres e dos países ricos. Assim, é preciso redimensionar o Estado, trazendo à cena os outros poderes obnubilados ao longo dos séculos 19 e 20, os poderes Legislativos e Judiciários. Quando se fala em esgotamento político dos Estados nacionais deve-se dizer, com maior propriedade, esgotamento do modelo onde o Executivo, tendo à sua frente um homem e sua pequena equipe, adquirem nominalmente força demiúrgica excepcional. Os Legislativos, pela sua representatividade mais ampla e diversa e os Judiciários, desde que abram novas frentes de ação, além das velhas atitudes elitistas e do jargão que os separam dos povos, podem reinventar o político, recolhendo sugestões da sociedade mais ampla, ou abrindo frentes para harmonizar os interesses legais da produção e da força de trabalho.

Para isso, é mister que as universidades e institutos de pesquisa entrem, com os poderes políticos e com os mais amplos setores sociais, numa lógica nova do nexo entre sábios e povo ignorante. Não é mais possível aceitar o elitismo acadêmico que mantém os campi enquanto espaço de pureza e rigor científicos, como se a tarefa de educar os povos fosse tarefa imediata do Estado nas suas três faces, e como se a mediação universitária não fosse urgente. Por outro lado, não é mais possível, dada a crise do Executivo, crise projetada sobre o político em geral e sobre o Estado, de modo indevido, que a comunidade científica persista em manter relações quase unilaterais com este poder, ignorando os dois outros e a sociedade envolvente.

Torna-se importante rever a história do Estado e da ciência na idade moderna, procurando os projetos que se perderam, como é o caso dos Enciclopedistas, os re-orientando a partir dos avanços científicos atuais. A educação das massas torna-se um crivo de soberania. Os Estados que aplicarem verbas, engenhos e tempo nesta missão, podem ter esperanças de alguma relevância, inclusive comercial, nos próximos anos. Hobbes e Sócrates têm alguma razão: um povo não educado para a ciência, só percebe e só recebe aparência, sombras de riquezas, brilho de empréstimo. Intelectuais descomprometidos politicamente com seu país, podem ter a certeza, vã, de superioridade. Políticos que manipulam massas ignaras não possuem poder, mas ilusão de mando que pode se esfarelar ao primeiro sopro de uma crise mundial, em termos econômicos e políticos.

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* Foram citados de maneira habitual apenas os textos imprescindíveis. O autor considera perfeitamente conhecidos os trabalhos clássicos de Robert Derathe sobre Rousseau, os livros de Albert Soboul sobre a Revolução Francesa e outros.

** Professor de Filosofia da UNICAMP.

(1) The sciences are small Power; because not eminent: and therefore, not acknowledge in any man; nor are at all, but in a few; and in them, but of a few things. For Science is of that nature, as none can understand it to be, but such as in a good measure have attayned it. Leviathan, Chapter 10. Edited by C.B. Macpherson. London, Pelican Classics (Penguin Books) 1977, p. 151.

(2) Cf. Platão, "Gorgias" (521 C - 522 C). Trad. Leon Robin, Pleiade, Oeuvres Completes de Platon, v. 1.

p. 481-182.

(3) Hobbes, Thomas. Le Citoyen ou Les Fondements de la Politique. Trad. de Samuel Sorbiere (secretário de Hobbes em Paris), 1649. Uso a edição da Ed. Flammarion, Paris, 1982. p. 226-227.

(4) Das Volk will geleitet, d.i. (in der Sprache der Demagogen) es will betrogen sein. Es will aber nicht von den Fakultätsgelehrten (denn deren Weisheit ist ihm zu hoch), sondern von den-Geschäfsmannern derselben, die das Machwerke (savoir faire) verstehen, von den Geistlichen, Justizbeamtun. Arzten geleitet sein...". Note-se que a palavra mais frequente nesta passagem é o verbo "dirigir". O povo quer ser dirigido, deseja soluções prontas na religião, no direito, na medicina. É, deste modo, presa fácil dos milagreiros e demagogos. Cf. Der Streiten der Fakultäten, in Werkausgabe, F.A.M. Suhrkamp, 1977. T. 11, 1.

p. 294-295.

(5) Cf. "Fundamentos da Filosofia do Direito", § 317, quando Hegel opõe a "opinião pública" à ciência e cita Ariosto: Che'i volgare ignorante ogn'riprenda/ E parli piu di quelche meno intenda. In Werke in zwanzig Banden. F.A.M. Suhrkamp Verlag. 1970.

(6) Cf. Kintzler, Catherine. Condorcet L'Instruction Publique et la Naissance du Citoyen. Paris. Minerve/Folio. 1984, p. 44-45.

(7) Plan d’une Université. In Oeuvres (ed. L. Versini). Paris. Robert Laffont, 1995, T. 3, p. 411 e ss.

(8) Cf. Kintzler, Catherine. op. cit., p. 87 e ss. Esta autora desenvolve longamente o ideal condorcetiano do Homo suffragans, com base na instrução científica e técnica das massas. Seu livro é fundamental para todo debate sobre a instrução.

(9) Citações em Iring Fetcher, La Filosofia Politica di Rousseau. Per la Storia del Concetto democrático di libertà. Milano, Feltrinelli, 1972, p. 262-263.

(10) Qu’est-ce qu’un Thermidorien? In: La République et la Terreur, org. por Catherine Kintzler e Hadi Rizk, Paris, Kimé, 1995, p. 53-64.

(11) Cito sempre Badiou.

(12) Citado por Badiou, op. cit., p. 62.

(13) Cf. Plan des Travaux Scientifiques Nécessaires Pour Réorganiser la Societé (1822). Écrits de Jeunesse. Paris, Mouton, 1970, p. 248-253.

(14) Cf. Catéchisme Positiviste. Paris, Flammarion, 1966, p. 51-55.

(15) Documento citado e analisado por Ivan Lins, História do Positivismo no Brasil. São Paulo, Cia. Editora Nacional Coleção Brasiliana, v. 322, 1964, p. 364 e ss.

(16) Catéchisme Positiviste, ed. cit., p. 245.

(17) Citado e analisado em Lins, 1, op. cit., p. 330-331.

(18) F.H. Cardoso, Dos Governos militares a Prudente de Moraes. In: História da Civilização Brasileira. São Paulo, DIFEL, 1975, t. 3, v. 1, p. 30.

(19) Dados os limites do tempo e do espaço disponíveis, não analiso aqui as vertentes do poder e da ciência no campo socialista do século 20. A tríade Estado sujeito / intelectual tutelar / povo ensinado e dirigido, também imperou naquelas experiências políticas, não raro com resultados catastróficos. Basta lembrar a "abolição" dos enunciados de Mendel, por ideólogos como Lyssenko, mais ocupados em justificar os poderosos do que em definir o verdadeiro. As colheitas soviéticas se encarregaram de evidenciar a mentira daqueles procedimentos "científicos".

(20) Cf. Jean Pisani-Ferry, na revista Alternatives économiques (julho/agosto de 1996).

(21) Engelhard, Philippe: L’Homme mondial. Les sociétés humaines peuvent-elles survivre? Paris, Arléa, 1966, p. 113.

(22) Cf. Elie Cohen. La Tentation hexagonale. La souveraineté à l’épreuve de la mondialisation. Paris, Fayard, 1966, p. 38-39.

(23) Cf. Olivier Mongin, Les Tournants de la mondialisation. Revista Esprit. Novembro de 1996, Boa parte deste trabalho deve muito a este importante artigo.

(24) Cf. Cohen, D. Richesse des Nations, pauvreté du monde. Citado por Mongin no artigo mencionado acima.

(25) Olivier Mongin cita Jean-Paul Fitoussi, para esta tese.

(26) Cambridge, Harvard University Press, 1996.

(27) Para uma análise oposta à realizada por Bill Readings, cf. William I. Robinson: Promoting Polyarchi. Globalization, US Intervention, and Hegemony. Cambridge, 1996.