terça-feira, 23 de dezembro de 2008

CORREIO POPULAR DE CAMPINAS, 24 DE DEZEMBRO DE 2008

Publicada em 24/12/2008


Boas festas

Roberto Romano

A semana é de paz e beleza. Deixo para mais tarde a publicação da feia herança oferecida por Carl Schmitt. Continuaremos com o doutrinário após o Natal. Hoje recordo a passagem do Eterno ao tempo, o retorno do finito ao infinito, efetivados na Encarnação do Verbo. De todas as metáforas para mostrar o revelado pela fé (o porquê Deus se fez homem) a figura da tradução é preciosa na cultura ocidental. Ela já se apresenta no Evangelho de João : “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, a Palavra era Deus (...) Nele estava a vida, a vida era a Luz dos homens. E a luz brilhou nas trevas, e as trevas não a compreenderam”. O termo grego usado pelo evangelista para designar a fonte da Palavra é arkhé, cujas conotações trazem as idéias de poder, fundamento, origem. O Cristo, uno com o Pai, penetra no mundo (as trevas) na aparência de suma fragilidade, como se fosse desprovido de toda potência. Semelhante tradução é ininteligível para os não crentes, visto que eles ignoram o texto original, a Palavra. A julgar apenas pelos sentidos humanos, Jesus é antítese do ser divino.

Comentário bonito o de Erasmo no Adágio Sileni Alcibiadis: todos conhecem o trecho platônico no qual, segundo Alcibíades, Sócrates seria como as estatuetas vendidas no mercado, nas quais por fora surgiam sátiros feios e desprezíveis. Por dentro, no entanto, os artistas esculpiam seres belíssimos. Para chegar ao sublime seria preciso abrir a capa hedionda. Olhem um pouco o Sileno Jesus, diz Erasmo: no exterior nada poderia ser mais pobre, desprezível. “Sua casa? Muito modesta. O homem? Um deserdado. Os genitores? Gente sem meios. Os discípulos? Poucos e sem recursos. Quando ele os chamou, não estavam nos palácios dos grandes, nos púlpitos dos fariseus, nas escolas filosóficas, mas nas redes dos pescadores”. Sob a carcaça feia encontrava-se a pérola rara, na “profunda abjeção, uma altura vertiginosa, na extrema pobreza a riqueza imensa, na fragilidade, força incrível”. Cristo poderia se instalar no trono de monarca universal, possuir um cortejo maior do que Xerxes, amealhar riquezas maiores do que o opulento Creso, calar todos os filósofos. Mas sua doutrina era oposta a todas as filosofias e políticas, oposta às regras mundanas. Assim, quem não via a sua face com a base no livro divino, não lia o texto correto, ficava apenas na capa, não traduziria para a lingua humana o verbo eterno.

Outra figura da tradução encontra-se em John Donne. Refiro-me ao trecho aproveitado por Hemingway no romance Por quem os sinos dobram?. Ali, Donne proclama que nenhum homem é uma ilha: “a morte de todo homem me diminui, porque estou envolvido pela humanidade, e portanto nunca procure saber por quem os sinos dobram; eles dobram por você”. (Meditatio n Xvii, in The Works of John Donne, v. 3, Londres, John W. Parker, 1839, pp. 574-575).

Mas a grande metáfora do poeta Donne no trecho, encontra-se antes da insular. “A Igreja é católica, universal, como as suas ações; tudo o que ela faz a todos pertence. Quando batiza uma criança, aquele ato me toca; porque a criança doravante se une à cabeça que é também a minha cabeça, está presa ao corpo do qual sou membro. Quando a Igreja enterra um homem, aquele ato me toca; toda a humanidade tem um só autor e forma um só volume; quando alguém morre, um capítulo não é arrancado do livro, mas traduzido em linguagem melhor; e todo capítulo deve ser traduzido; Deus emprega vários tradutores; alguns trechos são traduzidos pela velhice, outros pela doença, alguns pela guerra, outros pela justiça; mas a mão de Deus está em toda tradução, e sua mão unirá novamente nossas folhas rasgadas, porque naquela biblioteca todo livro deve permanecer aberto um ao outro”. Beiramos o abismo de uma crise sem precedentes na história. Lembremos que o nascimento de Cristo marca a passagem do divino ao humano e deste à sua fonte perene. Que amanhã possamos traduzir misérias humanas em força divina, com auxílio da Palavra. Boas Festas para os leitores e profissionais do Correio!