IDÍLIO DO PÃO DE AÇÚCAR
Laura
Brandão (1891-1942)
Março ainda floria e já
frutificava:
O Estio, o moço audaz,
deixava este hemisfério,
Cantando, sacudindo a cabeleira
flava!
(No mesmo instante o
Inverno, aquele monge
Sério,
Também partia lá de muito
longe,
De muito longe, lá do
outro hemisfério,
Soltando ao vento as cãns
num gesto de mistério...)
Andava pelo espaço um
fluído redolente,
Nuvens cor de ouro, cor de
rosa e cor de lava
Mergulhavam no Oceano
incandescente;
O Sol, o próprio Sol!
também já mergulhava,
Na retirada
Austera,
Solenemente
Amargurada
-
Era o Outono, imitando a Primavera,
Era
O Poente
Imitando a Madrugada.
O Cais, há pouco em festa,
Na movimentação de
carruagens levando
Moças formosas como essa
formosa tarde,
Crianças em bando,
No alvissareiro alarde,
A cantar, a sorrir,
Propagando
O Porvir
-
O Cais, há pouco em festa,
O deslumbramento Cais!
Agora tinha uma expressão
funesta:
Agora quase não havia
ninguém mais.
E enquanto aquelas
Crianças e moças belas
E ricas, com certeza
Voltavam para os seus
palácios, ali perto,
Ou lá distante,
Eu ficava sozinha, ouvindo
o triste dobre
Do coração da Natureza,
Do Mar deserto
-
Na minha vida de poetisa errante,
Na minha vida de poetisa
pobre.
O Pensamento, como as
nuvens, como as vagas,
Num desleixo feliz,
compondo uma obra prima,
Ia e voltava ao léu...
E, entre recordações e as
imagens presagas,
Acendiam-se, num só tempo,
em baixo e em cima,
As lâmpadas da Terra e as
lâmpadas do Céu!
Já não havia
Mais esperanças de salvar
o Dia!
Era a Noite: era a fada
Ao mesmo tempo desgraçada
E boa
-
Era a Noite completa, era a Noite em pessoa.
No líquido volume, ora
convexo,
Ora côncavo, e, raras
vezes, plano,
Movimentavam-se o reflexo
De cada estrela... E,
então, que formidando,
Que sobre-humano,
Que lúgubre cenário:
Covas se abrindo, covas se
fechando,
Fogos fátuos correndo em
sentido contrário
-
Dir-se-ia um cemitério o fantástico Oceano!
As lâmpadas do Cais,
numa impecável curva,
Formavam a mais bela, a
mais triste coroa...
E o seu reflexo entrando a
profundeza turva,
Provava, ainda uma vez, que a Luz também ecoa!
Tive medo da Noite, e
saudade do Dia...
Ah! quem me dera
Nesse momento, estar do outro
lado da Esfera!
Ah! quem me dera
Poder estar durante a vida
inteira
Junto à lareira
Do arrebol...
E eu sentia,
Contendo em doloroso
grito,
Que no Espaço da minha
alma trêmula e fria,
Não havia
Mais o menor vestígio da
Alegria
-
Como no Espaço do Infinito
Não havia o menor vestígio
mais do Sol!
E nesse mal-estar, nessa
histeria, nesse
Medo,
Sentindo a Noite, a Morte,
face a face,
Resolvi prosseguir na
minha vida errante:
Andar, andar até
muitíssimo distante,
Até de manhã cedo
-
Até que o dia renascesse,
Até que o Sol
ressuscitasse!
Roçando a mão pela muralha
De pedra, áspera, embora
umidecida
Pelo orvalho que chove,
Pela chuva que orvalha,
Eu movia o meu corpo e
movia a minha alma
Assim como se move,
A toa, pelo Espaço, uma
nuvem perdida,
Desesperada, aparentando
calma,
Saudosa de outro corpo, e
saudosa de outra alma...
Eu ia na curva extrema
Da muralha do Cais
Quando ouvi claramente
O rumor de quem rema
E ao mesmo tempo nada,
ofegante, impaciente,
Na dúvida de não chegar a
tempo mais!
Quis fugir, mas não
pude... e parei sem querer,
Escutando, uma voz que
ordenava implorando:
“Tu ficas, tu não vai:
Até quando
Eu viver,
Minha artista do Amor,
serei o teu dever!”
Obediente e audaciosa,
Pensativa e sensível,
Eu chorava e sorria, assim
como quem goza
A impressão de outro
mundo, outra vida, outro nível!
Já descansando a fronte na
muralha,
Aprofundei o olhar no
infinito das águas:
E então vi logo um corpo
de sereia,
Um gesto frágil
Que agasalha,
Que atrai, que devaneia,
Na languidez mais ágil,
Uma fisionomia toda cheia
Da volúpia feliz, diluindo
em gozo as mágoas...
Era, provavelmente, a
portadora
Daquela
Encantadora
Voz, tão bela
E clara,
Que, suplicando, me
ordenara...
Era provavelmente, era
sim, como certeza:
Que, agora,
De mais perto, eu distinguia
A mesmíssima voz, ainda
mais sonora,
Embora
Acompanhada pela
correnteza.
Ela sem me tocar, me
olhava e me sorria...
Depois me perguntou, como
quem se interessa:
“Porque tremes assim tão
pálida e tão fria?”
Apontei para o Poente, a
imensurável essa
E respondi fitando o
Horizonte tarjado:
“Tenho medo da Noite, e
saudade do Dia!”
Continuou a me olhar, e a
me sorrir, mal grado
A minha dor; depois, num
largo gesto lindo
De superioridade, afirmou
calmamente:
“A Noite não é mais do que
o Dia dormindo.”
Fitei de novo o Poente...
E solucei, contendo um
fortíssimo abalo:
“A Noite não é mais do que
o Dia dormindo...
Quem me dera acorda-lo!”
Teve pena de mim pelo
ousado interesse,
E respondeu cantando: “Se
eu quisesse
Acordaria
O Dia
Agora: se eu quisesse,
agora,
Em plena meia-noite, a
Aurora
Surgiria!
O Dia atrai a Luz, a Luz
atrai o Som;
Há uma turba de notas e
matizes!
E o borborinho desta turba
Não dá repouso à vista, ao
ouvido perturba
Os momentos felizes
Em que a Imaginação
sonha... Para acorda-la
Interrompe o silêncio
triste e bom...
E depois, que saudades da
Poesia
Que ela ouvia!
-
Porque o Silêncio fala
Muito mais alto do que o
som.
A Terra que aqui vês,
filha de toda a Terra,
Irmã das outras Terras
todas,
É a filha predileta, a
irmã sempre invejada,
Que no seio robusto e na
alma acrisolada,
Nitidamente encerra
A lembrança feliz de
incomparáveis bodas!
Numa população de diversas
montanhas.
A princípio da mesma
altura espiritual,
Surgiram duas
notabilidades
Completamente estranhas,
Propagando ilusões,
propagando verdades,
-
Verdades e ilusões unidas contra o mal.
Eram dois vencedores
Das blasfêmias dos
temporões violentos,
E ao mesmo tempo dois
consoladores
Dos soluços, das dores,
Dos gemidos
Das mais profundas tardes
de tristeza
-
Eram dois monumentos,
Dois Colossos de Rhodes,
esculpidos
Pela grande escultora, a
grande Natureza!
Mas, conquanto
Viessem de um só princípio
e fossem a um só fim,
Expandiam-se os dois de
modos quase opostos:
Assim
Enquanto
Um vivia cantando, de
olhos postos
No Céu, deixando o pranto
Rolar naturalmente,
E parecendo descuidado,
Indiferente
A tudo,
O outro vivia mudo,
Preocupado,
Recurvado,
Retraído no mais profundo
estudo.
E as montanhas,
Interessadas já por ele,
Interessadas por aquele
Colosso de maneiras tão
estranhas,
Todas deram-lhe o nome,
então, de Corcovado,
E logo o outro, também,
foi unanimemente,
Pelo nome de Pão de Açúcar
batizado.
A profissão dos dois era
definitiva.
Há aí um certeza
espontânea, completa:
Numa alegria comunicativa,
A Gávea, a Urca, a
Babilônia,
Lá bem longe a Tijuca, e,
a mais longe ainda,
Incomparavelmente linda,
A idônia,
A predileta
Serra dos Órgãos aclamavam
O Corcovado, sábio, e o
Pão de Açúcar, poeta!
Estava conquistada a
popularidade:
Os dois nomes estavam
Gravados já de pedra em
pedra,
De pedra em pedra viva,
onde apenas se gravam
Os nomes em que o século
não medra,
Que o Tempo não invade
-
Que têm do próprio Tempo a solidariedade!
E a Terra dedicada, a fiel
progenitora,
A Madona do Amor,
prodiigializadora
De si mesma, que dá tudo
quanto conquista
No delírio nupcial de
quando ao Sol se doura
-
Contemplava feliz, orgulhosa, idealista,
O filósofo-sábio e o
filósofo-artista!
Com que interesse, com que
encanto, com que enlevo
O Corcovado, aquela alta
força titânica,
O Dia inteiro, a noite
inteira,
Acompanhava, ampliava,
adorava a Botânica,
Vendo desabrochar,
subitamente, um trevo,
E um milímetro mais
crescer uma palmeira.
Quanto mistério,
Quanta dúvida escura:
De um fenômeno vivido e
funério,
De um leito, ao mesmo
tempo um berço e sepultura,
Surpreender, definir,
burilar toda a lógica
Erguendo um culto a ti,
Ciência-Mineralógica!
E a vida ele passava então
de simples mestre,
Completamente dedicada
Ao carinho materno, ao
estudo terrestre.
Mas um dia, uma noite, uma
alta madrugada
Em que a Terra o beijava
agradecida,
Ergueu do colo dela a
cabeça orvalhada,
Viu de repente o Céu,
sonhou logo outra vida,
Achou que a Terra não
valia nada, nada.
Menosprezou a cada dia
mais,
Até que um dia desprezou-a
Completamente:
Animais, vegetais e
minerais
Olhava do alto a baixo, a
toa,
Indiferente...
Ah! pobres borboletas,
pobres rosas,
Azuis, douradas,
multicores.
Pobres pedras preciosas
Inferiores
-
Envergonhava-se de vê-las
Depois de contemplar as
lúcidas estrelas!
Era o delírio da
grandeza:
Embebedado de ópio,
Ele já se julgava excelso
telescópio
De toda a Natureza!
E a Terra, sempre boa,
Sempre a mesma tal qual,
Soluçava no Poente,
Como quem se ressente
Mas perdoa:
“Ingratidão de pedra,
ingratidão filial!”
Enquanto
Isto,
O Pão de Açúcar, lá do
outro lado, distante,
Não maldizia a Terra,
idealizava, no entanto,
Tornar a ver alguém que
tinha visto
Um dia no Levante!
Alguém que lhe acenara um
dia entre as neblinas
Que lhe eram como
transparente
Véu...
Mostrando as formas
peregrinas,
Languidamente
Meiga,
Ora da cor da Veiga,
Ora da cor do Céu!
Assim perdido na alta
aspiração fazia
Estes versos de amor, como
ninguém já fez:
“Oh! Tu que surgiste ao
ressurgir do Dia,
Muito mais bela do que a
Aurora,
Entre o mistério e a
limpidez,
És Deusa, estás em toda a
parte:
Embora
Eu não te veja, posso
amar-te
-
Embora eu não te veja, eu sei que Tu me vês!
Não te vejo e me vês –
portanto és testemunha
Dos meus atos, do meu
segredo, do meu sonho,
De todo o meu amor!
Dos versos que eu
compunha,
Dos versos que componho,
E dos versos que à vida
inteira hei de compor!
Não te vejo e me vês...
Comova-te esta dor, esta
aridez
De pedra que imagina,
Que guarda na retina
Da memória
A nuvem que envolvia a
Estrela-Matutina,
A nuvem transitória
Que não há de
Ser a mesma a envolver a
Estrela-Vespertina...
Comova-te esta dor de
pedra que imagina
-
Que além de ter memória
Tem saudade!
Não sejas como a nuvem
repentina
Que passa
Pelo Espaço...
Vem
Ser a minha eterna graça!
Olha, eu também
Daqui
Não passo;
Depois,
Muito mais preso ainda a
Ti
Que à Terra hei de ser
justo, fiel
-
E então,
Nós dois,
Enquanto as nuvens vem
E vão,
Formaremos o mais afetuoso
painel!”
E foi assim que o Pão de
Açúcar, o gigante,
Ele, o filho da Terra,
apaixonou-se pela
Filha do Mar, a linda
Guanabara!
Era de vê-lo procurando
vê-la,
Ora gelado, ora
febricitante
-
Naquela ânsia de amor que ampara e desampara...
E ela, a filha querida,
a filha predileta
Do grande Oceano
Atlântico,
Escutava de longe o
incomparável poeta
E aplaudia saudosa o
belíssimo cântico!
Era grande a distância...
ah! parecia infinda!
Mas que importava, se a
Esperança
Era maior ainda?!
No amor, quando a saudade
é bem correspondida,
O que é que não se
alcança?
De que é que se duvida?
Embora o Mar proibisse à
Guanabara,
Furioso, ríspido, medonho,
Transpor certo limite
estreito que traçara;
Embora o Mar negasse
Ao Pão de Açúcar o alto
sonho,
Era debalde que negava e
que proibia,
Pois mais cedo ou mais
tarde, ou de noite ou de dia,
Ou no Inverto mais branco,
ou no Estio mais rubro,
Florisse Outubro,
Abril frutificasse,
Tinham que se encontrar,
por voto da Poesia,
A Guanabara e o Pão de
Açúcar face a face.
Ele, afinando sempre as
fundas notas quérulas,
Implorava, de longe, a
noiva triste e bela:
Confiava-lhe a existência,
entregava-lhe a vida,
Dava-lhe as sensações mais
fortes, uma a uma...
E assim, piedosamente
Comovida,
Languidamente
Embevecida,
Numa noite de luar
Ela
Fugiu do Mar,
Engrinaldada de corais e
pérolas,
Tendo os cabelos,
Em novelos,
Empoados de alva espuma...
Como, depois da chuva, o
Sol, o astro da vida,
Que se reflete
Nas nuvens, pinta sete
Cores,
Miraculosamente, o astro
de Osíris,
A Lua, por seu turno,
No orvalho refletida,
Pintava as mesmas sete
Cores...
-
Era o anel conjugal, era a aliança, era o
arco-íris,
Um arco-íris ao luar, um
arco-íris noturno,
Uma aliança prendendo as
almas superiores!
O Oceano todo estremeceu,
vencido;
A Terra toda estremeceu,
gloriosa;
O próprio Firmamento
invejou a paisagem
Quase divina ainda que
selvagem!
E aproveitando o raro
colorido
Da Noite, numa vasta
nebulosa,
A alma de Raphael
Reproduziu no Espaço o
terrestre painel!
E quando amanheceu, quando
os milhões de estrelas
Da Noite misteriosa
Desmaiaram a luz da
Estrela-Singular
Do Dia
Positivo
Pelas ondas do manto e das
madeixas
Da noiva, agora esposa,
pelas
Ondas do corpo todo,
langue,
Havia
Como que um desbotado
sangue, um sangue
Cor de rosa,
E um fremido de queixas,
De leve, devagar,
Denunciando o motivo
Do êxtase superior,
Futuro atual e primitivo
Que se antegoza goza
E há de gozar,
Antes do amor, durante o
amor, depois do amor!
A própria Natureza,
A autora de si mesma
encantada, surpresa,
Que evolui que se expande,
Que alto valor revela,
Nunca se viu tão grande,
Nunca se viu tão bela!
E do idílio fecundo,
alvissareiro
Do Pão de Açúcar e da
Guanabara,
Nasceu esta Cidade
inteligente e clara
-
A Cidade imortal do Rio de Janeiro!
É uma Cidade ardente de
Poesia
-
Nasceu em pleno estio em pleno meio-dia!
Batizou-a, radiante,
O Sol a pino,
Ao badalar do velho sino
Distante:
Ao badalar
Do velho Mar.
Saudaram-na de longe,
Logo as montanhas todas,
menos uma...
Era o celibário, o sábio,
o monge,
O Corcovado, em suma.
Ah! quanto havia nisto de
maldade,
Nem pode o Pão de Açúcar
muito menos
A Guanabara, imaginar,
sequer!
E ainda muito menos a
Cidade
Que folgava inocente, em
dias pelnos
De sonhos, livre de temor
qualquer...
Uma noite, sem luar e sem estrelas,
quando
O Pão de Açúcar, encoberto
Numa nuvem pesada, se
esquecia
De que ela vinha
prenunciando
Terrível temporal já muito
perto,
E se entregava todo a
idealizar Poesia,
A Guanabara viu gesticular
um vulto
Que, se completamente não
surgia,
Completamente não ficava
oculto,
E este vulto falou com voz
amarga e fria:
“Tendo quase mil metros de
elevado,
Os fenômenos todos do
Universo
Acompanho da minha extrema
altura:
E neste afã de sábio que
procura
Chamar a si tudo o que vê
disperso
Para estudar, com calma e
com cuidado.
Um dia te avistarei
envolta em róseo véu,
Entre a esmeralda viva de
além Mar,
E a pálida safira de além
Céu!
Entre a esmeralda viva e a
pálida safira,
Eras bem como a pérola
vaidosa,
Ligeiramente cor de rosa,
Que, do profundo Mar à flor
do Mar
Surgira
Devagar,
Num só tempo, a gemer, a
rir, e a soluçar...
E o Pão de Açúcar, que não
tem sequer
A metade da minha altura
superior,
O Pão de Açúcar um cantor
Qualquer,
De mínimo valor,
Um trovador
Vulgar,
Porque um dia te viu,
também ter quis amar!
E eu sonhava, confiava,
esperava, naquele
Engano, acreditando uma
justiça clara,
Um direito
Perfeito
O ideal que tinha em mira
Porque muito antes dele
Te ver eu já te vira.
-
Porque muito antes dele
Te amar eu já te amara!
Mas não tardaram
Meu desespero, minha
desconfiança,
Meu desengano... Enfim,
tudo o que sonho alcança,
Todos os bens que amparam,
Injustamente me
desampararam!
E hoje acordou-me na
memória,
Mais nítida talvez do que
no próprio dia,
Aquela cena transitória
Que, já tendo passado,
ainda principia.
Aumenta-me o desejo:
Parece que te vejo
Qual te via,
Inundando de luz líquida a
Terra ansiosa...
E parecias mais ser uma
nebulosa
Que uma simples baia,
Quase vieste...
Porque oh! divina
Guanabara minha,
És muito, muito mais
celeste
Que marinha!
E eu te aguardava ansiosa
Pelo gozo,
Quando
Vinhas entrando...
Mas oh! Destino malfazejo,
Impertinente,
Formidando,
Que pode mais que o meu
forte desejo
Que hoje ainda me está
mais forte latejando!
-
Não chegaste
até mim... paraste de repente...
No entanto é tempo ainda,
é tempo agora:
Vamos! cega-te a mim...
beija-me antes da Aurora!”
E a Guanabara,
Que se conservara
Sem o menor sinal de vida,
Respondeu simplesmente,
Sem alarde,
Honestamente
Comovida:
“É impossível:
É muito, é muitíssimo
tarde!”
O vulto estremeceu, mudou
de nível,
E assim bradou, como alta
potestade:
“Não me fales em nada de
impossível
-
Afoga a tua Filha! Inunda esta Cidade!
Escuta, Guanabara:
depois há de
Nascer do nosso amor outra
Cidade
Muito mais linda
Ainda...”
Ela, então, respondeu
definitivamente:
“Seja quem for o vulto
estranho, que assim ousa
Tentar contra a virtude
independente
Da minha alma em neblinas,
que se expande
No Espaço, e do meu corpo
em ondas, que repousa
Por estes limitados arredores
-
Saiba que se foi grande
O meu amor de noiva, são
maiores
O meu amor de mãe e o meu
amor de esposa!
Voltarei para o Mar,
ficarei separada
Do Pão de Açúcar e da
nossa Filha...
De dia há de zelar por ela
o Sol que brilha,
E a Lua há de zelar de
madrugada.
Depois, no leito que ora
inundo,
Há de brotar uma Floresta
Santa, completamente
alheia ao mundo;
E as auras hão de entoar
uma canção funesta,
Num harpejo profundo...
E das árvores tristes,
sepulcrais
Hão de desabrochar pérolas
e corais,
Pelos dias de sol, pelas
noites de lua...
Voltarei para o Mar, mas
nunca serei tua!
Nunca terás o meu amor,
Sejas quem for!”
E o vulto respondeu,
raivoso, despeitado:
“Chamo-me Corcovado!
Estranho que o não saibas;
E mais estranho ainda que
não caibas
Em ti de orgulho, quando
és s/o fraqueza
-
Oh! força líquida! oh! capacidade presa!
Não queres por amor o meu
amor sublime?
-
Te-lo-ás por ódio, embora seja um crime...
O meu crime primeiro,
A minha grande estréia!
Imagina o que nem por
sombra imaginavas.
Hei de ser muito pior,
muito pior que o Vesúvio!
Fui vencido no ideal, mas
vencerei na idéia:
A Cidade do Rio de Janeiro
Há de ser sepultada num
dilúvio
De cinzas e de lavas
-
Como foi Herculana e como foi Pompéia!
No teu leito profundo
hás de ferver de dor...
E apagarás o incêndio,
entregue ao meu amor!...”
Desaba o Temporal
inopinadamente!
Um Temporal de muitos
temporais
Violentos,
Numa conflagraça os
elementos
Todos
Naturais
Agiam como doidos!
-
E à voz do Temporal, covardemente
Cale-se o Corcovado de
repente.
Nervosa, a Guanabara
Ergue-se em vagalhões de
fria espuma clara:
Segreda tudo ao Pão de
Açúcar, soluçando,
Gemidos, a princípio...
enfim soluça em grito!
E ele, amorosamente
Brando,
Achando-a,
incomparavelmente
Bela,
Ele confia muito no
Infinito
-
E mais que no Infinito, ele confia nela!
E como não confiar se
ele escutara tudo
Que ela dissera ao
Corcovado,
Comovido,
Extasiado,
Agradecido
Mudo?
E quando a Aurora veio, a pacificadora,
A portadora
De um formoso dia,
O Pão de Açúcar parecia
Um bloco
Azul, a Guanabara um verde
floco.
E a Cidade, radiante e
límpida sorria,
-
Esta Cidade, que eu, nem pelo Espaço, troco!
Era como se não tivesse
havido nada,
Era assim
Como agora,
O belíssimo fim
Da madrugada...”
Nisto a Visão se esvai, se
expande, se evapora...
E desperta no Oriente o
Relógio da Aurora
-
E a música da Luz rompe a Treva calada!
E oh! minha alma, que
então feliz sonhavas, foi-te
Arrancando o áureo
Sonho: acordaste chorando
-
Já no tédio do Dia, e saudade da Noite!
E aliviada a aflição de
quem desperta quando
Diminui o poder do
Clorofórmio-Sonho,
Sorri, convalescente, ao
Céu claro e risonho...
Depois olhando, ali perto
da praia, ali
Quase na praia, a rua, a
casa em que nasci,
Pensei na minha Mãe, nos
meus Irmãos e em Ti!
E olhando ainda toda esta
Cidade bela,
E ainda olhando todo o
Corcovado,
Soberbamente alevantado,
Ajoelhei-me e pedi,
soluçando por ela.
E contemplando toda a
Natureza, enfim,
Que tem na minha Terra a
preferida glória,
Pedi ao Céu que, após, a
minha Terra, assim,
De injusta, me encurtar a
vida transitória,
Um dia possa ter também
glória de mim!
EM TEMPO:
Este poema, que homenageia
o Rio de Janeiro, faz parte do livro Imaginação, lançado pela poeta Laura
Brandão, em 1916, e que, agora, passado 100 anos, está no meu novo trabalho
antológico da referida escritora e educadora.
Estou envidando, portanto.
todos os esforços possíveis para a edição de uma pequena tiragem desse trabalho,
com o título de “Poesias de Laura Brandão (Antologia)”, para ser distribuída
graciosamente às bibliotecas públicas, centros de estudos, universidades e
outros mais, no Rio de Janeiro, cidade natal da fantástica poeta.
O custo dessa edição está
em torno de R$ 22.932,00 para a tiragem de 1000 exemplares, contendo 546
páginas.
Os que desejarem
contribuir com o resgate da memória da ilustre carioca, com o seu patrocínio,
com qualquer valor, poderão fazê-lo diretamente a Editora EME, de Capivari: orçamento@editoraeme.com.br
Qualquer dúvida, por
favor, me contatar: J. R. Guedes de Oliveira – E-mail: guedes.idt@terra.com.br
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