domingo, 1 de março de 2015

Laura Brandão (1891-1942)


          IDÍLIO DO PÃO DE AÇÚCAR



                                                                               Laura Brandão (1891-1942)



Março ainda floria e já frutificava:
O Estio, o moço audaz, deixava este hemisfério,
Cantando, sacudindo a cabeleira flava!

(No mesmo instante o Inverno, aquele monge
Sério,
Também partia lá de muito longe,
De muito longe, lá do outro hemisfério,
Soltando ao vento as cãns num gesto de mistério...)

Andava pelo espaço um fluído redolente,
Nuvens cor de ouro, cor de rosa e cor de lava
Mergulhavam no Oceano incandescente;
O Sol, o próprio Sol! também já mergulhava,
Na retirada
Austera,
Solenemente
Amargurada
-       Era o Outono, imitando a Primavera,
Era
O Poente
Imitando a Madrugada.

O Cais, há pouco em festa,
Na movimentação de carruagens levando
Moças formosas como essa formosa tarde,
Crianças em bando,
No alvissareiro alarde,
A cantar, a sorrir,
Propagando
O Porvir
-       O Cais, há pouco em festa,
O deslumbramento Cais!
Agora tinha uma expressão funesta:
Agora quase não havia ninguém mais.

E enquanto aquelas
Crianças e moças belas
E ricas, com certeza
Voltavam para os seus palácios, ali perto,
Ou lá distante,
Eu ficava sozinha, ouvindo o triste dobre
Do coração da Natureza,
Do Mar deserto
-       Na minha vida de poetisa errante,
Na minha vida de poetisa pobre.

O Pensamento, como as nuvens, como as vagas,
Num desleixo feliz, compondo uma obra prima,
Ia e voltava ao léu...
E, entre recordações e as imagens presagas,
Acendiam-se, num só tempo, em baixo e em cima,
As lâmpadas da Terra e as lâmpadas do Céu!

Já não havia
Mais esperanças de salvar o Dia!
Era a Noite: era a fada
Ao mesmo tempo desgraçada
E boa
-       Era a Noite completa, era a Noite em pessoa.

          No líquido volume, ora convexo,
Ora côncavo, e, raras vezes, plano,
Movimentavam-se o reflexo
De cada estrela... E, então, que formidando,
Que sobre-humano,
Que lúgubre cenário:
Covas se abrindo, covas se fechando,
Fogos fátuos correndo em sentido contrário
-       Dir-se-ia um cemitério o fantástico Oceano!

          As lâmpadas do Cais, numa impecável curva,
Formavam a mais bela, a mais triste coroa...
E o seu reflexo entrando a profundeza turva,
Provava,  ainda uma vez, que a Luz também ecoa!

Tive medo da Noite, e saudade do Dia...
Ah! quem me dera
Nesse momento, estar do outro lado da Esfera!
Ah! quem me dera
Poder estar durante a vida inteira
Junto à lareira
Do arrebol...
E eu sentia,
Contendo em doloroso grito,
Que no Espaço da minha alma trêmula e fria,
Não havia
Mais o menor vestígio da Alegria
-       Como no Espaço do Infinito
Não havia o menor vestígio mais do Sol!

E nesse mal-estar, nessa histeria, nesse
Medo,
Sentindo a Noite, a Morte, face a face,
Resolvi prosseguir na minha vida errante:
Andar, andar até muitíssimo distante,
Até de manhã cedo
-       Até que o dia renascesse,
Até que o Sol ressuscitasse!

Roçando a mão pela muralha
De pedra, áspera, embora umidecida
Pelo orvalho que chove,
Pela chuva que orvalha,
Eu movia o meu corpo e movia a minha alma
Assim como se move,
A toa, pelo Espaço, uma nuvem perdida,
Desesperada, aparentando calma,
Saudosa de outro corpo, e saudosa de outra alma...

Eu ia na curva extrema
Da muralha do Cais
Quando ouvi claramente
O rumor de quem rema
E ao mesmo tempo nada, ofegante, impaciente,
Na dúvida de não chegar a tempo mais!
Quis fugir, mas não pude... e parei sem querer,
Escutando, uma voz que ordenava implorando:

“Tu ficas, tu não vai:
Até quando
Eu viver,
Minha artista do Amor, serei o teu dever!”

Obediente e audaciosa,
Pensativa e sensível,
Eu chorava e sorria, assim como quem goza
A impressão de outro mundo, outra vida, outro nível!
Já descansando a fronte na muralha,
Aprofundei o olhar no infinito das águas:
E então vi logo um corpo de sereia,
Um gesto frágil
Que agasalha,
Que atrai, que devaneia,
Na languidez mais ágil,
Uma fisionomia toda cheia
Da volúpia feliz, diluindo em gozo as mágoas...

Era, provavelmente, a portadora
Daquela
Encantadora
Voz, tão bela
E clara,
Que, suplicando, me ordenara...

Era provavelmente, era sim, como certeza:
Que, agora,
De mais perto, eu distinguia
A mesmíssima voz, ainda mais sonora,
Embora
Acompanhada pela correnteza.

Ela sem me tocar, me olhava e me sorria...
Depois me perguntou, como quem se interessa:
“Porque tremes assim tão pálida e tão fria?”

Apontei para o Poente, a imensurável essa
E respondi fitando o Horizonte tarjado:
“Tenho medo da Noite, e saudade do Dia!”

Continuou a me olhar, e a me sorrir, mal grado
A minha dor; depois, num largo gesto lindo
De superioridade, afirmou calmamente:

“A Noite não é mais do que o Dia dormindo.”

Fitei de novo o Poente...
E solucei, contendo um fortíssimo abalo:
“A Noite não é mais do que o Dia dormindo...
Quem me dera acorda-lo!”

Teve pena de mim pelo ousado interesse,
E respondeu cantando: “Se eu quisesse
Acordaria
O Dia
Agora: se eu quisesse, agora,
Em plena meia-noite, a Aurora
Surgiria!

O Dia atrai a Luz, a Luz atrai o Som;
Há uma turba de notas e matizes!
E o borborinho desta turba
Não dá repouso à vista, ao ouvido perturba
Os momentos felizes
Em que a Imaginação sonha... Para acorda-la
Interrompe o silêncio triste e bom...
E depois, que saudades da Poesia
Que ela ouvia!
-       Porque o Silêncio fala
Muito mais alto do que o som.

A Terra que aqui vês, filha de toda a Terra,
Irmã das outras Terras todas,
É a filha predileta, a irmã sempre invejada,
Que no seio robusto e na alma acrisolada,
Nitidamente encerra
A lembrança feliz de incomparáveis bodas!

Numa população de diversas montanhas.
A princípio da mesma altura espiritual,
Surgiram duas notabilidades
Completamente estranhas,
Propagando ilusões, propagando verdades,
-       Verdades e ilusões unidas contra o mal.

          Eram dois vencedores
          Das blasfêmias dos temporões violentos,
E ao mesmo tempo dois consoladores
Dos soluços, das dores,
Dos gemidos
Das mais profundas tardes de tristeza
-       Eram dois monumentos,
Dois Colossos de Rhodes, esculpidos
Pela grande escultora, a grande Natureza!

Mas, conquanto
Viessem de um só princípio e fossem a um só fim,
Expandiam-se os dois de modos quase opostos:
Assim
Enquanto
Um vivia cantando, de olhos postos
No Céu, deixando o pranto

Rolar naturalmente,
E parecendo descuidado,
Indiferente
A tudo,
O outro vivia mudo,
Preocupado,
Recurvado,
Retraído no mais profundo estudo.

E as montanhas,
Interessadas já por ele,
Interessadas por aquele
Colosso de maneiras tão estranhas,
Todas deram-lhe o nome, então, de Corcovado,
E logo o outro, também, foi unanimemente,
Pelo nome de Pão de Açúcar batizado.

A profissão dos dois era definitiva.
Há aí um certeza espontânea, completa:
Numa alegria comunicativa,
A Gávea, a Urca, a Babilônia,
Lá bem longe a Tijuca, e, a mais longe ainda,
Incomparavelmente linda,
A idônia,
A predileta
Serra dos Órgãos aclamavam
O Corcovado, sábio, e o Pão de Açúcar, poeta!

Estava conquistada a popularidade:
Os dois nomes estavam
Gravados já de pedra em pedra,
De pedra em pedra viva, onde apenas se gravam
Os nomes em que o século não medra,
Que o Tempo não invade
-       Que têm do próprio Tempo a solidariedade!
E a Terra dedicada, a fiel progenitora,
A Madona do Amor, prodiigializadora
De si mesma, que dá tudo quanto conquista
No delírio nupcial de quando ao Sol se doura
-       Contemplava feliz, orgulhosa, idealista,
O filósofo-sábio e o filósofo-artista!

Com que interesse, com que encanto, com que enlevo
O Corcovado, aquela alta força titânica,
O Dia inteiro, a noite inteira,
Acompanhava, ampliava, adorava a Botânica,
Vendo desabrochar, subitamente, um trevo,
E um milímetro mais crescer uma palmeira.

Quanto mistério,
Quanta dúvida escura:
De um fenômeno vivido e funério,
De um leito, ao mesmo tempo um berço e sepultura,
Surpreender, definir, burilar toda a lógica
Erguendo um culto a ti, Ciência-Mineralógica!

E a vida ele passava então de simples mestre,
Completamente dedicada
Ao carinho materno, ao estudo terrestre.
Mas um dia, uma noite, uma alta madrugada
Em que a Terra o beijava agradecida,
Ergueu do colo dela a cabeça orvalhada,
Viu de repente o Céu, sonhou logo outra vida,
Achou que a Terra não valia nada, nada.

Menosprezou a cada dia mais,
Até que um dia desprezou-a
Completamente:
Animais, vegetais e minerais
Olhava do alto a baixo, a toa,
Indiferente...

Ah! pobres borboletas, pobres rosas,
Azuis, douradas, multicores.
Pobres pedras preciosas
Inferiores
-       Envergonhava-se de vê-las
          Depois de contemplar as lúcidas estrelas!

          Era o delírio da grandeza:
Embebedado de ópio,
Ele já se julgava excelso telescópio
De toda a Natureza!

E a Terra, sempre boa,
Sempre a mesma tal qual,
Soluçava no Poente,
Como quem se ressente
Mas perdoa:
“Ingratidão de pedra, ingratidão filial!”

Enquanto
Isto,
O Pão de Açúcar, lá do outro lado, distante,
Não maldizia a Terra, idealizava, no entanto,
Tornar a ver alguém que tinha visto
Um dia no Levante!

Alguém que lhe acenara um dia entre as neblinas
Que lhe eram como transparente
Véu...
Mostrando as formas peregrinas,
Languidamente
Meiga,
Ora da cor da Veiga,
Ora da cor do Céu!

Assim perdido na alta aspiração fazia
Estes versos de amor, como ninguém já fez:

          “Oh! Tu que surgiste ao ressurgir do Dia,
Muito mais bela do que a Aurora,
Entre o mistério e a limpidez,
És Deusa, estás em toda a parte:
Embora
Eu não te veja, posso amar-te
-       Embora eu não te veja, eu sei que Tu me vês!

          Não te vejo e me vês – portanto és testemunha
Dos meus atos, do meu segredo, do meu sonho,
De todo o meu amor!
Dos versos que eu compunha,
Dos versos que componho,
E dos versos que à vida inteira hei de compor!

Não te vejo e me vês...
Comova-te esta dor, esta aridez
De pedra que imagina,
Que guarda na retina
Da memória
A nuvem que envolvia a Estrela-Matutina,
A nuvem transitória
Que não há de
Ser a mesma a envolver a Estrela-Vespertina...
Comova-te esta dor de pedra que imagina
-       Que além de ter memória
Tem saudade!
Não sejas como a nuvem repentina
Que passa
Pelo Espaço...
Vem
Ser a minha eterna graça!
Olha, eu também
Daqui
Não passo;
Depois,
Muito mais preso ainda a Ti
Que à Terra hei de ser justo, fiel
-       E então,
Nós dois,
Enquanto as nuvens vem
E vão,
Formaremos o mais afetuoso painel!”

E foi assim que o Pão de Açúcar, o gigante,
Ele, o filho da Terra, apaixonou-se pela
Filha do Mar, a linda Guanabara!

Era de vê-lo procurando vê-la,
Ora gelado, ora febricitante
-       Naquela ânsia de amor que ampara e desampara...

          E ela, a filha querida, a filha predileta
Do grande Oceano Atlântico,
Escutava de longe o incomparável poeta
E aplaudia saudosa o belíssimo cântico!

Era grande a distância... ah! parecia infinda!
Mas que importava, se a Esperança
Era maior ainda?!
No amor, quando a saudade é bem correspondida,
O que é que não se alcança?
De que é que se duvida?

Embora o Mar proibisse à Guanabara,
Furioso, ríspido, medonho,
Transpor certo limite estreito que traçara;
Embora o Mar negasse
Ao Pão de Açúcar o alto sonho,
Era debalde que negava e que proibia,
Pois mais cedo ou mais tarde, ou de noite ou de dia,
Ou no Inverto mais branco, ou no Estio mais rubro,
Florisse Outubro,
Abril frutificasse,
Tinham que se encontrar, por voto da Poesia,
A Guanabara e o Pão de Açúcar face a face.

Ele, afinando sempre as fundas notas quérulas,
Implorava, de longe, a noiva triste e bela:
Confiava-lhe a existência, entregava-lhe a vida,
Dava-lhe as sensações mais fortes, uma a uma...
E assim, piedosamente
Comovida,
Languidamente
Embevecida,
Numa noite de luar
Ela
Fugiu do Mar,
Engrinaldada de corais e pérolas,
Tendo os cabelos,
Em novelos,
Empoados de alva espuma...
Como, depois da chuva, o Sol, o astro da vida,
Que se reflete
Nas nuvens, pinta sete
Cores,
Miraculosamente, o astro de Osíris,
A Lua, por seu turno,
No orvalho refletida,
Pintava as mesmas sete
Cores...
-       Era o anel conjugal, era a aliança, era o arco-íris,
Um arco-íris ao luar, um arco-íris noturno,
Uma aliança prendendo as almas superiores!

O Oceano todo estremeceu, vencido;
A Terra toda estremeceu, gloriosa;
O próprio Firmamento invejou a paisagem
Quase divina ainda que selvagem!
E aproveitando o raro colorido
Da Noite, numa vasta nebulosa,
A alma de Raphael
Reproduziu no Espaço o terrestre painel!

E quando amanheceu, quando os milhões de estrelas
Da Noite misteriosa
Desmaiaram a luz da Estrela-Singular
Do Dia
Positivo
Pelas ondas do manto e das madeixas
Da noiva, agora esposa, pelas
Ondas do corpo todo, langue,
Havia
Como que um desbotado sangue, um sangue
Cor de rosa,
E um fremido de queixas,
De leve, devagar,
Denunciando o motivo
Do êxtase superior,
Futuro atual e primitivo
Que se antegoza goza
E há de gozar,
Antes do amor, durante o amor, depois do amor!

A própria Natureza,
A autora de si mesma encantada, surpresa,
Que evolui que se expande,
Que alto valor revela,
Nunca se viu tão grande,
Nunca se viu tão bela!

E do idílio fecundo, alvissareiro
Do Pão de Açúcar e da Guanabara,
Nasceu esta Cidade inteligente e clara
-       A Cidade imortal do Rio de Janeiro!

          É uma Cidade ardente de Poesia
-       Nasceu em pleno estio em pleno meio-dia!

          Batizou-a, radiante,
O Sol a pino,
Ao badalar do velho sino
Distante:
Ao badalar
Do velho Mar.
Saudaram-na de longe,
Logo as montanhas todas, menos uma...
Era o celibário, o sábio, o monge,
O Corcovado, em suma.

Ah! quanto havia nisto de maldade,
Nem pode o Pão de Açúcar muito menos
A Guanabara, imaginar, sequer!

E ainda muito menos a Cidade
Que folgava inocente, em dias pelnos
De sonhos, livre de temor qualquer...

Uma noite, sem luar e sem estrelas, quando
O Pão de Açúcar, encoberto
Numa nuvem pesada, se esquecia
De que ela vinha prenunciando
Terrível temporal já muito perto,
E se entregava todo a idealizar Poesia,
A Guanabara viu gesticular um vulto
Que, se completamente não surgia,
Completamente não ficava oculto,
E este vulto falou com voz amarga e fria:
“Tendo quase mil metros de elevado,
Os fenômenos todos do Universo
Acompanho da minha extrema altura:

E neste afã de sábio que procura
Chamar a si tudo o que vê disperso
Para estudar, com calma e com cuidado.

Um dia te avistarei envolta em róseo véu,
Entre a esmeralda viva de além Mar,
E a pálida safira de além Céu!
Entre a esmeralda viva e a pálida safira,
Eras bem como a pérola vaidosa,
Ligeiramente cor de rosa,
Que, do profundo Mar à flor do Mar
Surgira
Devagar,
Num só tempo, a gemer, a rir, e a soluçar...

E o Pão de Açúcar, que não tem sequer
A metade da minha altura superior,
O Pão de Açúcar um cantor
Qualquer,
De mínimo valor,
Um trovador
Vulgar,
Porque um dia te viu, também ter quis amar!

E eu sonhava, confiava, esperava, naquele
Engano, acreditando uma justiça clara,
Um direito
Perfeito
O ideal que tinha em mira
Porque muito antes dele
Te ver eu já te vira.
-       Porque muito antes dele
Te amar eu já te amara!

Mas não tardaram
Meu desespero, minha desconfiança,
Meu desengano... Enfim, tudo o que sonho alcança,
Todos os bens que amparam,
Injustamente me desampararam!
E hoje acordou-me na memória,
Mais nítida talvez do que no próprio dia,
Aquela cena transitória
Que, já tendo passado, ainda principia.
Aumenta-me o desejo:
          Parece que te vejo
          Qual te via,
Inundando de luz líquida a Terra ansiosa...
E parecias mais ser uma nebulosa
Que uma simples baia,
Quase vieste...
Porque oh! divina Guanabara minha,
És muito, muito mais celeste
Que marinha!

E eu te aguardava ansiosa
Pelo gozo,
Quando
Vinhas entrando...

Mas oh! Destino malfazejo,
Impertinente,
Formidando,
Que pode mais que o meu forte desejo
Que hoje ainda me está mais forte latejando!
-       Não  chegaste até mim... paraste de repente...
No entanto é tempo ainda, é tempo agora:
Vamos! cega-te a mim... beija-me antes da Aurora!”

E a Guanabara,
Que se conservara
Sem o menor sinal de vida,
Respondeu simplesmente,
Sem alarde,
Honestamente
Comovida:
“É impossível:
É muito, é muitíssimo tarde!”

O vulto estremeceu, mudou de nível,
E assim bradou, como alta potestade:
“Não me fales em nada de impossível
-       Afoga a tua Filha! Inunda esta Cidade!

          Escuta, Guanabara: depois há de
Nascer do nosso amor outra Cidade
Muito mais linda
Ainda...”

Ela, então, respondeu definitivamente:
“Seja quem for o vulto estranho, que assim ousa
Tentar contra a virtude independente
Da minha alma em neblinas, que se expande
No Espaço, e do meu corpo em ondas, que repousa
Por estes limitados arredores
-       Saiba que se foi grande
O meu amor de noiva, são maiores
O meu amor de mãe e o meu amor de esposa!

Voltarei para o Mar, ficarei separada
Do Pão de Açúcar e da nossa Filha...
De dia há de zelar por ela o Sol que brilha,
E a Lua há de zelar de madrugada.
Depois, no leito que ora inundo,
Há de brotar uma Floresta
Santa, completamente alheia ao mundo;
E as auras hão de entoar uma canção funesta,
Num harpejo profundo...
E das árvores tristes, sepulcrais
Hão de desabrochar pérolas e corais,
Pelos dias de sol, pelas noites de lua...

          Voltarei para o Mar, mas nunca serei tua!
Nunca terás o meu amor,
Sejas quem for!”

E o vulto respondeu, raivoso, despeitado:
“Chamo-me Corcovado!
Estranho que o não saibas;
E mais estranho ainda que não caibas
Em ti de orgulho, quando és s/o fraqueza
-       Oh! força líquida! oh! capacidade presa!

Não queres por amor o meu amor sublime?
-       Te-lo-ás por ódio, embora seja um crime...
O meu crime primeiro,
A minha grande estréia!
Imagina o que nem por sombra imaginavas.
Hei de ser muito pior, muito pior que o Vesúvio!
Fui vencido no ideal, mas vencerei na idéia:
A Cidade do Rio de Janeiro
Há de ser sepultada num dilúvio
De cinzas e de lavas
-       Como foi Herculana e como foi Pompéia!

         
          No teu leito profundo hás de ferver de dor...
          E apagarás o incêndio, entregue ao meu amor!...”

          Desaba o Temporal inopinadamente!
Um Temporal de muitos temporais
Violentos,
Numa conflagraça os elementos
Todos
Naturais
Agiam como doidos!
-       E à voz do Temporal, covardemente
Cale-se o Corcovado de repente.

Nervosa, a Guanabara
Ergue-se em vagalhões de fria espuma clara:
Segreda tudo ao Pão de Açúcar, soluçando,
Gemidos, a princípio... enfim soluça em grito!
E ele, amorosamente
Brando,
Achando-a, incomparavelmente
Bela,
Ele confia muito no Infinito
-       E mais que no Infinito, ele confia nela!

          E como não confiar se ele escutara tudo
Que ela dissera ao Corcovado,
Comovido,
Extasiado,
Agradecido
Mudo?

E quando a Aurora veio, a pacificadora,
A portadora
De um formoso dia,
O Pão de Açúcar parecia
Um bloco
Azul, a Guanabara um verde floco.
E a Cidade, radiante e límpida sorria,
-       Esta Cidade, que eu, nem pelo Espaço, troco!

          Era como se não tivesse havido nada,
Era assim
Como agora,
O belíssimo fim
Da madrugada...”


Nisto a Visão se esvai, se expande, se evapora...
E desperta no Oriente o Relógio da Aurora
-       E a música da Luz rompe a Treva calada!

          E oh! minha alma, que então feliz sonhavas, foi-te
          Arrancando o áureo Sonho: acordaste chorando
-       Já no tédio do Dia, e saudade da Noite!

          E aliviada a aflição de quem desperta quando
Diminui o poder do Clorofórmio-Sonho,
Sorri, convalescente, ao Céu claro e risonho...

Depois olhando, ali perto da praia, ali
Quase na praia, a rua, a casa em que nasci,
Pensei na minha Mãe, nos meus Irmãos e em Ti!

E olhando ainda toda esta Cidade bela,
E ainda olhando todo o Corcovado,
Soberbamente alevantado,
Ajoelhei-me e pedi, soluçando por ela.

E contemplando toda a Natureza, enfim,
Que tem na minha Terra a preferida glória,
Pedi ao Céu que, após, a minha Terra, assim,
De injusta, me encurtar a vida transitória,
Um dia possa ter também glória de mim!
  

    
EM TEMPO:

Este poema, que homenageia o Rio de Janeiro, faz parte do livro Imaginação, lançado pela poeta Laura Brandão, em 1916, e que, agora, passado 100 anos, está no meu novo trabalho antológico da referida escritora e educadora.

Estou envidando, portanto. todos os esforços possíveis para a edição de uma pequena tiragem desse trabalho, com o título de “Poesias de Laura Brandão (Antologia)”, para ser distribuída graciosamente às bibliotecas públicas, centros de estudos, universidades e outros mais, no Rio de Janeiro, cidade natal da fantástica poeta.

O custo dessa edição está em torno de R$ 22.932,00 para a tiragem de 1000 exemplares, contendo 546 páginas.

Os que desejarem contribuir com o resgate da memória da ilustre carioca, com o seu patrocínio, com qualquer valor, poderão fazê-lo diretamente a Editora EME, de Capivari: orçamento@editoraeme.com.br

Qualquer dúvida, por favor, me contatar: J. R. Guedes de Oliveira – E-mail: guedes.idt@terra.com.br

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