Os efeitos na atualidade
Cicatrizes do autoritarismo
Quase três décadas
após o fim do regime militar, país ainda sofre com as consequências da
ditadura na educação, na segurança pública e, principalmente, na cultura
política dos brasileiros
06/04/2014 | 00:17 | Rogerio Waldrigues Galindo
Nenhum
país passa impunemente por duas décadas de ditadura. Mesmo depois de
restabelecida a democracia, as marcas do período de exceção se espalham
por várias áreas e por muitos anos. No caso brasileiro, nem mesmo quem
nasceu depois da Constituição de 1988 está totalmente livre dos efeitos
do golpe de 1964: eles estão presentes na educação, na segurança e,
principalmente, na cultura política dos brasileiros.
E
embora haja muitos que ainda considerem o período da ditadura como um
tempo com menos escândalos políticos ou como uma época mais segura – até
em função de a censura ter barrado à época notícias que não
interessavam ao regime –, os índices de corrupção e de insegurança de
hoje podem ter sido causados em grande medida devido às decisões tomadas
naquela época. A desmobilização da sociedade, a divisão cada vez mais
forte entre governados e governantes e a crença de que só o poder
central poderia resolver os problemas da nação levaram o país a ter uma
sociedade civil fraca e impotente – incapaz de fazer os políticos agirem
como devem e de cobrar medidas para melhorar os serviços públicos.
Ivonaldo Alexandre/ Gazeta do Povo
Ampliar imagem
Daniel Medeiros, historiador e doutor em Educação pela UFPR
Apagando as marcas
Desde a fase final do regime militar, o país foi eliminando aos poucos o aparato legal que permitiu os abusos da ditadura1978 - Depois de dez anos de vigência, o Ato Institucional nº 5, baixado pelo presidente Costa e Silva, deixa de valer. Sua eliminação foi um dos passos dados pelo presidente Ernesto Geisel rumo à “abertura”.
1979 - O presidente João Figueiredo assina, ainda no primeiro ano de seu mandato, a Lei de Anistia, que garante que crimes políticos cometidos durante o regime não serão punidos. A anistia permitiu a volta ao país de esquerdistas, a libertação de presos políticos e também garantiu a impunidade a agentes do regime que cometeram abusos.
1988 - O país promulga a sua nova Constituição, que substituiu a anterior, de 1967, e elimina os traços ditatoriais da revisão constitucional de 1969, que havia incorporado vários itens importantes do AI-5.
- Saiba mais
- Salvadores da pátria
“Criou-se uma ética da servidão”, resume Roberto Romano,
professor de Ética e de Ciência Política da Unicamp. Nesse sistema, quem
tem o poder recebe as garantias de que, faça o que fizer, ninguém
poderá lhe cobrar nada. E quem não governa sabe que, se tiver “juízo”,
meramente obedecerá. A cultura do autoritarismo sempre existiu no país.
Mas, segundo Romano, intensificou-se e se centralizou com as duas
ditaduras do século 20 – a de Getúlio Vargas e a dos militares. “Antes, o
medo era do coronel da região. Depois, passou a haver temor físico do
Estado central.”
Nesse modelo ético, o povo deixa de assumir a responsabilidade por
seus atos, delegando soluções para quem ocupa cargos e posições. O outro
lado, porém, também perde responsabilidade, e até os servidores menos
importantes, amparados na impossibilidade de fiscalização, agem como
quiserem. “O vice-presidente Pedro Aleixo definiu magistralmente a
situação quando lhe disseram que o presidente Costa e Silva não abusaria
do AI-5. O problema, disse ele, não era o presidente, mas o guarda da
esquina”, diz Romano.
Na sala de aula
A desmobilização da sociedade não se deu apenas em razão da ausência
de eleições ou da postura autoritária dos governos. Foi criada também
dentro das salas de aula. Segundo o professor Ângelo de Souza, do Núcleo
de Políticas Educacionais da UFPR, a desmobilização na escola não
ocorreu devido a um projeto consciente dos militares. “Simplesmente era
um regime que não tinha uma proposta educacional. Não era importante
para eles”, afirma.
Souza aponta três consequências duradouras do ciclo ditatorial que
ainda permanecem vivas. Uma foi a fusão de dois ciclos completamente
diferentes naquilo que hoje se chama ensino fundamental. Outra, a falta
de um projeto para o ensino técnico, que num momento era visto como algo
a ser separado da área de Humanidades e em outro voltava a fazer parte
de um ensino mais amplo. E a terceira foi a perda de um sentido para o
ensino médio – até hoje, ninguém sabe exatamente qual deveria ser a
principal função dos anos que antecedem a entrada na universidade.
Outras reformas feitas na ditadura trouxeram consequências na
educação. Retiraram-se do currículo disciplinas como Filosofia e puseram
outras destinadas a ensinar assuntos relacionados à política de uma
maneira menos profunda, como a Educação Moral e Cívica e a Organização
Social e Política do Brasil (OSPB). “Era uma educação tecnicista.
Faltava aquilo a que a filósofa Hannah Arendt se referia como amor
mundi, o amor à humanidade”, afirma Daniel Medeiros, historiador e
doutor em Educação pela UFPR. Segundo ele, criou-se uma geração de
“ignorantes políticos”. “Quando a democracia voltou, achávamos que tudo
estaria resolvido e nos surpreendemos quando descobrimos que também num
regime democrático havia pessoas em altos cargos que não estavam
interessadas em fazer o bem comum. Como víamos um mundo apenas de
mocinhos e vilões, nos tornamos ingênuos. Viramos fiscais do Sarney,
imagine!”
Ordem? Que ordem?
Na área de segurança, os males causados pelo período pós-64 são
muitos. Há casos em que a origem do problema é controversa. Exemplo é a
tese de que presos políticos, deixados em cadeias junto com presos
comuns, teriam ensinado pessoas ligadas ao tráfico a se organizar, o que
teria redundado na criação de facções como o Comando Vermelho – a
teoria é contestada; antes mesmo desse convívio, havia criminosos que
praticavam os assaltos a banco que lhes teriam sido ensinados pelos
guerrilheiros, por exemplo.
Em outros aspectos, a herança é mais visível. Cada vez que um
policial sai fardado às ruas, por exemplo, fica evidente a militarização
da segurança. A Polícia Militar foi usada pelo regime como parte de sua
doutrina de segurança. A derrocada do regime não pôs fim à
militarização das polícias. “Na área da segurança, o instrumento que era
realmente definidor do regime de 1964 continua praticamente intocado”,
afirma Pedro Bodê, do Núcleo de Estudos da Violência da UFPR. É claro
que os exemplos mais radicais de interferência das Forças Armadas no
policiamento sumiram, como os DOIs – órgãos de repressão política
comandados pelo Exército. Mas isso não impede que a militarização siga
seu curso.
Bodê diz que as PMs assumem cada vez mais tarefas e passam a ter um
projeto para o país, o que classifica como “muito perigoso”. “Neste ano,
Goiás repassou o controle de dez escolas públicas para a PM por
acreditar que havia muita violência lá. Militares não servem para
resolver nem mesmo problemas de segurança entre civis, quanto mais para
dar educação”, diz o professor.
Outra cicatriz deixada pelo regime na segurança foi a politização da
Justiça Militar, encarregada de julgar quem cometesse crimes dentro das
Forças Armadas e da PM. O direito a que os militares fossem julgados
unicamente por seus pares levou a uma espécie de acordo tácito em que
ninguém punia ninguém, criando um ciclo violência. Isso traz
consequências até hoje – basta ver as inúmeras acusações de truculências
que pesam contra as polícias.
“Os excessos se devem à impunidade dos excessos anteriores”, diz
Edson Fachin, professor de Direito da UFPR. “O que se quer é a garantia
de que a ordem será feita dentro da liberdade. Mas, do jeito como as
coisas estão postas hoje, nem está se garantindo a liberdade nem se
garante a ordem.”
A ordem a que Fachin se refere era um dos sonhos da Constituição que
sepultou o regime autoritário, em 1988. O documento registrou a vontade
de um povo não só de sair da ditadura como de garantir direitos. Como
qualquer lei, é imperfeita, e não resolveu todos os problemas criados a
partir de 64 – mesmo porque isso não se faz a canetadas. Vinte e seis
anos depois, porém, continua sendo a base da jovem democracia
brasileira, e a garantia de que os erros de 50 anos atrás não se repitam
nunca mais.