segunda-feira, 7 de abril de 2014

Jornal da Unicamp uma dissertação a ler com atenta solicitude. O tema é mais do que relevante.

Campinas, 04 de abril de 2014 a 13 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 593

Dissertação revela caos na regulação fundiária no país

Estudo do Instituto de Economia analisa ocupação de terras no Brasil após 1964

Em raríssimo esforço no combate aos problemas fundiários no Brasil, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) desencadeou um processo de mapeamento das terras públicas e de combate à grilagem que culminou no cancelamento de mais de 10 mil títulos de terras, referentes a uma área de 500 milhões de hectares. O dado correspondente ao período 2007-2010 é ainda mais assombroso quando comparado com o próprio território do Pará, 125 milhões de hectares, quatro vezes menor. Existe também a estimativa de que 30 milhões de hectares estejam nas mãos de grileiros, que utilizam esses documentos falsos, muitos deles forjados em cartórios de registros de imóveis, para se apossar de terras públicas.

O estudo do caso do Pará recheou de números a pesquisa de mestrado de Vitor Bukvar Fernandes, cujo objetivo é demonstrar que o Estado brasileiro não tem controle sobre suas terras (devolutas), desconhecendo inclusive a extensão e localização das mesmas; e que o fenômeno jurídico da posse, especialmente sobre estas áreas não demarcadas, amplifica o caos em matéria de regulação fundiária ao permitir a privatização de patrimônios públicos. A dissertação “Passado não resolvido: a histórica falta de regulação na ocupação de terras no Brasil após 1964” foi orientada pelo professor Bastiaan Philip Reydon e apresentada em fevereiro no Instituto de Economia (IE) da Unicamp.

“O trabalho aborda um padrão de apropriação de terras que se repete desde a descoberta do Brasil e que considero perverso por se sustentar em uma estrutura agrária altamente concentrada, mantendo-se até hoje em essência”, afirma Vitor Fernandes. “Em minha opinião, este padrão de expansão com a apropriação territorial na fronteira está diretamente ligado a mazelas como base fundiária concentrada, degradação ambiental (sobretudo desmatamentos), grilagem de terras, conflitos violentos e trabalho escravo no campo. E agora, como no passado, temos os indígenas entrando em choque com esta frente de expansão que ameaça as reservas na Amazônia.”

Para definir seu projeto de pesquisa, o economista se inspirou na tese de doutorado de uma historiadora, Lígia Osório Silva, autora do livro “Terras devolutas e latifúndio”, em que ela resgata a história da apropriação territorial da chegada dos portugueses até 1930. “Gostei do tema e me apropriei da ideia central da autora no intuito de mostrar que aquele padrão se mantém, pois sempre houve uma distância muito grande entre a letra da lei e a forma como se dá a apropriação efetivamente. Meu recorte para o período anterior e posterior a 1964 se deve ao fato de que o golpe militar abortou todos os esforços de intelectuais e de movimentos populares para resolver a questão agrária.”

Vitor Fernandes recorda que a sesmaria – instituição jurídica portuguesa trazida para normatizar a distribuição de terras brasileiras – foi dominante até meados do século 19. Tratava-se de uma concessão mediante a contrapartida de que áreas mínimas fossem destinadas à produção, sob o risco de retomada da terra. “Era este o sentido das sesmarias em Portugal, mas não funcionou assim no Brasil, que sempre praticou uma agricultura itinerante e que deixa para trás a terra desgastada. Era informalmente aceito que o beneficiário utilizaria apenas parte da extensa área concedida, até desgastá-la e passar a outra parte, sucessivamente. Como sempre houve necessidade de expansão da fronteira interna, a demarcação de terras devolutas não era politicamente interessante.”

Segundo o autor da dissertação, o golpe de misericórdia contra o sistema de sesmarias se deu com a primeira Lei de Terras, em 1850. A proposta era que o Estado assumisse o controle de suas terras e os interessados passassem a comprar os títulos, proibindo-se o apossamento. “Na prática, porém, os posseiros continuaram invadindo e se apossando das terras públicas que o governo não conseguia demarcar, para depois regularizá-las, transformando-as em patrimônio privado. Não falo necessariamente do grande posseiro, mas como o apossamento se dá principalmente pela força, o pequeno pode ser expulso pelo primeiro, e não o contrário. Tivemos a Independência, a Proclamação da República, a Constituição, e este padrão se mantém em essência.”

Fernandes ressalta que, talvez excetuando a Holanda, o Brasil é o único país a possuir uma instituição de tipo paraestatal como os cartórios de registro de terras, que mesmo sendo idôneos em maioria, contribuem para o caos na regulação fundiária abrindo margem para a grilagem. “Os Estados Unidos, por exemplo, adotam uma legislação agrária denominada Homestead Act, assinada por Abraham Lincoln em 1862 dentro do esforço para ocupar o oeste americano. Em troca de uma quantia simbólica, os aventureiros recebiam lotes de terras federais [65 hectares] que já ficavam demarcados; não havia esta flexibilidade do Brasil, que até hoje não controla a maior parte das terras devolutas.”
O registro de entrada no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), conforme o economista, indica a localização e dimensão da terra, mas menos de 5% das propriedades estão georreferenciadas. “É preciso considerar ainda as propriedades que contam com ‘vários andares’, ou seja, vários registros de terras no mesmo lugar (ou com intersecções entre elas). Pouco se repara no detalhe de que o Brasil é um dos últimos países onde a fronteira interna continua em expansão; e que a permanência deste padrão de apropriação territorial depende exatamente da existência de terras reservas, como vemos no oeste do Pará. Os grandes proprietários vão se apropriando e reconcentrando a base fundiária, enquanto os pequenos acabam expulsos para as franjas.”

Expectativa abortada

Vitor Fernandes vê a década de 1950 até 1964 como o momento de maior expectativa de mudanças na estrutura agrária, devido à efervescência dos movimentos sociais (Ligas Camponesas obviamente incluídas) e de intelectuais como Caio Prado Junior, Alberto Passos Guimarães e Ignácio Rangel na discussão das reformas de base. “Na época, a maioria da população já morava nas cidades, mas ainda existia margem para uma distribuição de terras. Apesar de especificidades apontadas por cada autor, prevalecia o consenso de que a concentração da base fundiária era arcaica, um problema a ser resolvido. Mas o movimento foi abortado pelo golpe.”

Na opinião do pesquisador, contribuiu decisivamente para a manutenção do padrão fundiário o peso político exercido nos anos 80 e 90 pela UDR [União Democrática Ruralista], representante de uma oligarquia rural que, por sua vez, foi um dos pilares de sustentação dos governos militares. “Um fato irônico é que o Estatuto da Terra foi promulgado em 1964 e, lendo a lei, notamos uma regulação bastante progressista, com figuras até então inexistentes como da desapropriação por interesse social e da necessidade de cobrança do Imposto Territorial Rural.”

Fernandes acrescenta que igualmente irônico foi o fato de que a aprovação do Estatuto da Terra com uma redação tão progressista se deu por influência direta dos EUA. “Logo depois da revolução cubana criaram a Aliança para o Progresso, por temor de um possível levante comunista caso não se promovesse alguma distribuição de terras dentro dos países da América Latina. Para o Brasil interessado em recursos que financiassem seus projetos de desenvolvimento, a solução veio no jeito malandro de fazer passar o estatuto, mas postergando a sua aplicação, que nunca ocorreu a pretexto da necessidade de aprovação de dispositivos específicos.”

Estratégia semelhante, conforme observa o economista, foi empregada na Constituição de 88, que em relação ao campo resultou em texto bem mais retrógrado que do Estatuto da Terra. “José Gomes da Silva, que participou da elaboração das questões agrárias no anteprojeto da Constituição de 88, possui dois livros – ‘Caindo por terra’ e ‘Buraco negro’ – mostrando que todos os assuntos problemáticos, que criavam impasse, foram jogados no buraco negro e abafados. E, tanto nos governos neoliberais como nos mandatos de Lula, persistiu o total descontrole sobre as terras devolutas, não se registrando o menor esforço para arrecadá-las.”

O pesquisador informa que uma breve exceção se deu no Pará, na gestão da petista Ana Júlia Carepa (2007-2010), e justifica a escolha deste estudo de caso por se tratar de um Estado territorialmente extenso e que experimenta a expansão da fronteira interna há 40 anos. “Nesta fronteira, os problemas gerados pela falta de regulação e pela apropriação de terras devolutas através do apossamento se tornam exponenciais. De fato, o Pará é o Estado que registra mais mortes em conflitos fundiários, mais trabalho escravo e um dos mais altos índices de desmatamento. Ao mesmo tempo, como o Brasil é o país dos paradoxos, o governo paraense fez um esforço político que resultou em 500 milhões de hectares de títulos cancelados, na demarcação de terras indígenas e na regularização de propriedades de pequenos posseiros. Não se deu sequência a este esforço a partir de 2010, mas ele trouxe uma luz, mostrou o melhor caminho.”

Na visão de Vitor Fernandes, o melhor caminho é a reorganização institucional para que os órgãos que lidam com as questões da terra – Incra, ministérios, Funai, Institutos da Terra, municípios, cartórios – se comuniquem. Nesse sentido, ele revela que já trabalha como assistente de pesquisa do professor Bastiaan Reydon, seu orientador, que vem articulando esforços em busca de melhorias na governança fundiária, tanto em projetos com o Banco Mundial quanto em iniciativas recentes ao lado do Ministério do Desenvolvimento Agrário. “O primeiro passo é consolidar um cadastro único [cada órgão possui o seu] para que uma instituição não invada a área da outra, com a sobreposição de responsabilidades e interesses. A assimetria de poder, diante dos que se opõem a mudanças na estrutura fundiária, ainda é enorme. E hoje, com a modernização da agricultura, o latifundiário não é mais o coronel, é quem tem escritório na Paulista e atua em nome de um grupo que mistura terra com capital financeiro, gerando outro tipo de embate.”

Publicação
Dissertação: “Passado não resolvido: a histórica falta de regulação na ocupação de terras no Brasil após 1964”
Autor: Vitor Bukvar FernandesOrientador: Bastiaan Philip ReydonUnidade: Instituto de Economia (IE)

Dissertation reveals chaos in the regulation of land in the country

Study by the Institute of Economics examines land occupation in Brazil after 1964
In rare effort in combating land problems in Brazil, the Land Institute of Pará (Iterpa) triggered a mapping of public lands and combat illegal occupation which culminated in the cancellation of over 10,000 land titles, for an area 500 million hectares. The data for the period 2007-2010 is even more staggering when compared to the territory itself Pará, 125 million acres, four times smaller. There is also estimated that 30 million hectares are in the hands of squatters, who use these false documents, forged in many offices of real estate records, to get hold of public lands.
The case study of Pará has filled a number of master's research Bukvar Vitor Fernandes, whose goal is to demonstrate that the Brazilian government has no control over their land (vacant), including ignoring the extent and location of same; and that the legal phenomenon of possession, especially on these areas not demarcated, amplifies the chaos in the field of regulation of land to allow for the privatization of public assets. The dissertation "Past unresolved: the historical lack of regulation in the occupation of land in Brazil after 1964," was supervised by Professor Philip Bastiaan Reydon and presented in February at the Institute of Economics (IE) of Unicamp.
"This paper addresses a standard land grab that repeats since the discovery of Brazil and I consider perverse because they sustain in a highly concentrated agrarian structure, keeping up to date in essence," says Vitor Fernandes. "In my opinion, this pattern of expansion with the territorial border ownership is directly linked to ailments such as concentrated land base, environmental degradation (especially deforestation), land grabbing, violent conflict and slave labor in the field. And now, as in the past we have indigenous entering into conflict with this expansion front that threatens the reserves in the Amazon. "
To define your research project, the economist was inspired by the thesis of a historian, Ligia Silva Osorio, author of "vacant land and large estates," she recalls the history of territorial appropriation of the arrival of the Portuguese until 1930. "I liked the theme and appropriated the central idea of ​​the author in order to show that this pattern holds, because there has always been a very big gap between the letter of the law and how it gives ownership effectively. My cutout for the period prior and subsequent to 1964 is due to the fact that the military coup aborted all efforts of intellectuals and grassroots efforts to resolve the agrarian question. "
Vitor Fernandes recalls that allotment - Portuguese legal institution brought to normalize the distribution of Brazilian land - was dominant until the mid 19th century. It was a concession by the consideration that minimum areas were used for production, at the risk of resumption of land. "It was this sense of allotments in Portugal, but just did not work in Brazil, which has always practiced a shifting cultivation and leaves behind the worn earth. Was informally accepted that the recipient would use only part of the extensive area granted to wear it and spend the other part, successively. As always there was a need to expand the internal border, the demarcation of vacant land was not politically interesting. "
According to the author of the dissertation, the final blow against the system of land grants occurred with the first Land Law in 1850. The proposal was for the state to take control of their lands and interested to buy the bonds passed, forbidding the apossession. "In practice, however, the settlers continued invading and taking over the public lands that the government could not demarcate, and then regularize them, turning them into private equity. Not necessarily speak of the great squatter, but as apossession occurs mainly by force, little can be expelled by the first, and not the opposite. We Independence, the Proclamation of the Republic, the Constitution, and this pattern holds in essence. "
Fernandes points out that, excepting perhaps the Netherlands, Brazil is the only country to have a parastatal institution type as land registries, even being suitable in most contribute to the chaos in the regulation of land grabbing for opening border. "The United States, for example, adopt an agrarian legislation called Homestead Act, signed by Abraham Lincoln in 1862 in the effort to occupy the American West. In exchange for a nominal sum, the adventurers received lots of federal land [65 acres] were already demarcated; there was this flexibility of Brazil, which has not yet controls most of the public lands. "
The registry entry INCRA (National Institute of Colonization and Agrarian Reform), as an economist, indicates the location and size of land, but less than 5% of the properties are georeferenced. "It is necessary to consider the properties that have 'multi-storey', ie various land records in the same place (or intersections between them). Notices the little detail that Brazil is one of the last countries where internal border continues to expand; and the permanence of this pattern of territorial ownership depends exactly the existence of land reserves, as we see in western Pará The landlords will reconcentrating and appropriating the land base, while small end up driven to the fringes. "
Aborted expectancy
Vitor Fernandes sees the decade from 1950 to 1964 as the moment of greatest expectation of changes in the agrarian structure, due to the effervescence of social movements (Peasant Leagues obviously included) and intellectuals as Caio Prado Junior, Alberto Passos Guimarães and Ignacio Rangel in the discussion of basic reforms. "At the time, most of the population already living in cities, but there was still scope for land distribution. Although specifics outlined by each author, the prevailing consensus that the concentration of land base was archaic, a problem to be solved. But the move was aborted by the coup. "
In the opinion of the investigator, contributed decisively to the maintenance of the land pattern political weight exercised in the 80s and 90s by UDR [Rural Democratic Union], representative of a rural oligarchy which, in turn, was one of the pillars of the military governments . "An ironic fact is that the Land Act was promulgated in 1964, and reading the law, we noticed a quite progressive regulation, with figures that did not exist as of expropriation for social interest and need for charging the Rural Land Tax."
Fernandes added that also ironic was the fact that the adoption of the Statute of the earth with such a progressive writing occurred by direct U.S. influence. "Immediately after the Cuban revolution created the Alliance for Progress, for fear of a possible communist uprising if not promote any land distribution within countries of Latin America. For Brazil interested in resources that would finance their development projects, the solution came in the way of rogue passing the statute, but delaying its implementation, it never occurred under the pretext of the need for approval of specific devices. "
Similar strategy, as noted economist, was used in 88 of the Constitution, in relation to the field that resulted in far more retrograde text of the Land Statute. "José Gomes da Silva, who participated in the preparation of land issues in the draft of the Constitution of 88, has two books - 'fell to the ground' and 'black hole' - showing that all problematic issues that created deadlock, were thrown in the hole black and muffled. And as far as the neoliberal governments of Lula in mandates, the total lack persisted over the unoccupied lands, not registering the slightest effort to collects them. "
The researcher reports that a brief exception occurred in Pará, in the management of PT Ana Julia Carepa (2007-2010), and justifies the choice of this case study because it is a territorially extensive state and experiencing the expansion of internal border there 40. "On this frontier, the problems caused by lack of regulation and the appropriation of public lands through apossession become exponential. Indeed, Pará is the state that registers more deaths in land conflicts, more labor, and one of the highest rates of deforestation. At the same time, as Brazil is the country of paradoxes, the Pará government made a political effort that resulted in 500 million hectares of titles canceled, the demarcation of indigenous lands and regularizing properties of small landholders. He gave no result of this effort from 2010, but he brought a light, showed the best way. "
In view of Vitor Fernandes, the best way is the institutional reorganization for organs that deal with land issues - Incra, ministries, Funai, Institutes of the Earth, municipalities, notaries - to communicate. In this sense, he reveals he has worked as a research assistant professor Bastiaan Reydon, your advisor, which is coordinating efforts to seek improvements in land governance, both in projects with the World Bank in recent initiatives as part of the Ministry of Agrarian Development . "The first step is to consolidate a single register [each organ has its] for an institution that does not encroach on the area of ​​the other, with overlapping responsibilities and interests. The asymmetry of power, before those who oppose changes in land ownership, is still huge. And today, with the modernization of agriculture, the landowner is not the colonel's who has an office in São Paulo and acts on behalf of a group that blends earth with financial capital, generating another kind of struggle. "
Publication
Dissertation: "Past unresolved: the historical lack of regulation in the occupation of land in Brazil after 1964"
Author: Vitor Fernandes Bukvar
Advisor: Philip Bastiaan Reydon
Unit: Institute of Economics (IE)