Maria Sylvia Carvalho Franco: Violências
Violências proliferam: nos poderes de Estado e na política, na polícia,
no trânsito, no assalto a pessoas e propriedades, nos conflitos rurais;
nas milícias fascistas, nas torcidas de futebol, nas sevícias
domésticas, nos assassinatos intrafamiliares, nos nascituros postos no
lixo, nos jovens delinquentes criminalizados por quem deveria educá-los.
Esses episódios saltam à vista, mas são fragmentos de um sistema
hegemônico, onde outras práticas e áreas sociais nutrem barbárie menos
visível, mas não menor.
Tais feitos abalam a crença no "homem cordial", celebrizado por Buarque
de Holanda em "Raízes do Brasil", mito cujo exame excede estas notas.
Basta notar que, a contrário, evocou-se a violência transferida por
grupos rurais para a metrópole. Contudo, uma ética só vigora em solo
fértil à sua reiteração.
Nos grupos por mim estudados ("Homens Livres na Ordem Escravocrata"), a
conduta violenta emana dos nexos entre capitalismo e escravidão, que
talharam a população marginalizada, o caipira solitário, andarilho,
bravio.
Hoje, as formas sociais mudaram, alterando-se a gênese e os modos da
violência, mas preservando-se o seu núcleo: uma cultura autoritária e o
princípio do lucro.
Desse foco irradiam tiranias. As corporações financeiras seduzem,
endividam, julgam e aniquilam países, submetidos a dívidas e à gangorra
acionária. Indústrias açambarcam os mercados, entre as quais avultam as
petroquímicas: alimentos, bebidas, higiene, mobiliários, artefatos,
vestuários, cosméticos, lentes e telas, medicamentos, embalagens, tudo é
dominado pelos derivados de petróleo, componentes tóxicos que,
ignorados pelos usuários, os prejudicam de imediato e atingem, como uma
maldição, as gerações futuras. Hoje, perder as guerras do petróleo não é
só perder fontes de energia; mais, é perder seus onipresentes resíduos,
que já deixaram de ser resquícios para tornarem-se alvos de produção.
Belicismo, fraudes, alianças vis, tudo vale para assegurar poder na
trágica "civilização do petróleo".
Despóticos, os monopólios de transporte coletivo em simbiose com
instâncias governamentais lesam o direito de ir e vir. Prepotentes,
certas lojas agridem os sentidos com perfumes invasivos e músicas
tonitruantes.
O lobby gastronômico mundial impõe a autocracia do chefe e a tagarelice
do pseudoenólogo, fixando preços fantásticos a simulacros de alimento.
Nessa aura de insensatez, o juízo do cliente é desdenhado, a cortesia é
ultrajada pela jactância reinante. A moda aniquila o senso de proporção:
sapato grotesco, salto desmesurado, bolsa gigantesca esmagam a graciosa
minissaia, arriscam a saúde e a marca da humanidade, o aprumo.
Lamentáveis, tais usos invadem as ruas. Nada é refletido, tudo é
mimetizado com automatismo.
Alarcão | ||
São abalados os direitos civis e o exercício da consciência:
sensibilidade, inteligência, vontade são anuladas por autocracias
insidiosas, cujo aliado é a sofística publicitária, chave na
uniformização de ideários conservadores.
O sofisma acentua a ditadura embutida nos comportamentos, obliterando a
mente, invertendo valores. Nessa perda de si, as relações de trabalho
são cruciais: nelas, o equívoco chega à renúncia do espaço e do tempo,
subtraídos à vida privada e entregues às corporações como se fosse um
ato espontâneo, benéfico para quem o faz. Debalde a servidão voluntária
foi denunciada pelos séculos afora, desde os pensadores da Grécia antiga
até os atuais críticos da repressão entranhada na cultura.
Apreendendo a violência ínsita na vida moderna –no fulcro do sistema,
nas práticas, no ideário–, atinamos com a gênese das atuais formas de
agressão, desde as tópicas –como a dos policiais que arrastaram a mulher
presa até matá-la, igualando-se a ladrões que assim também levaram um
menino à morte– até as institucionais, como as prisões desumanas. Junto à
força bruta, prospera a incivilidade geral.
Em aparência, os exemplos acima são de somenos importância face aos
assassinatos, prisões, torturas. Contudo, essa ferocidade visível nasce
de um caldo de cultura subjacente, pervasivo, que gesta, nutre e
naturaliza um cotidiano perverso –gera uma ética–, matriz violenta que
legitima movimentos fascistas (como as marchas da família), histerias
anticomunistas, projetos, alianças e financiamentos dos golpes de
Estado.
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO é professora titular aposentada de filosofia da USP e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
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