quarta-feira, 23 de abril de 2014

Golpes, Roberto Romano

Golpes

12 de abril de 2014 | 2h 05

ROBERTO ROMANO - O Estado de S.Paulo
 
Estado e golpes de Estado integram um só bloco histórico e teórico. Desde Richelieu a máquina política sofre correções para operar continuamente. Os golpes bem-sucedidos mudam a instituição sem tropas nas ruas. Os que não conseguem tal feito usam a violência e geram a desconfiança dos governados. Golpes brancos deixam traços invisíveis na vida dos povos, os sangrentos marcam a memória das gentes. A Noite de São Bartolomeu, um golpe de Estado, soma-se às odiosas quarteladas. Mas todos os golpistas lembram Charon: "É preciso agir antes dos que desejam nos surpreender!". Se existe Estado, o golpe é iminente. Quando Napoleão anunciou o seu, alguém questionou: "E a Constituição?". Resposta: "A Constituição é invocada por todas as facções e desprezada por todas. Ela não serve mais como instrumento de salvação, pois ninguém a respeita".
Segundo Gabriel Naudé, os golpes definem "atos extraordinários que os príncipes são constrangidos a executar contra o direito comum, quando os negócios se tornam difíceis ou desesperados, sem observar nenhuma ordem ou forma de justiça" (Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado, 1640). 

Golpes invertem o direito, a economia, os valores. Neles "a tempestade cai antes dos trovões, a execução precede a sentença, (...) um indivíduo recebe o golpe que imaginava dar, outro morre quando se imaginava seguro, um terceiro recebe o golpe que não esperava". O governante que perdeu é punido e depois sentenciado pelos vencedores. A repugnância contra a truculência golpista faz os seus agentes usarem a dissimulação, até mesmo para indicar o nome da coisa.

Foi o que ocorreu com o Ato Institucional n.º 1 (AI-1). Aposentadas as noções de legitimidade e de soberania vigentes, o texto proclama: "A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. (...) Ela edita normas jurídicas sem que nisto esteja limitada pela normatividade anterior à sua vitória".

Já devíamos a Francisco Campos, inspirador ou mesmo coautor do AI-1, a "Polaca" de 1937. Ele conhecia bem os enunciados do jurista Carl Schmitt. O autor de A Ditadura, das Origens da Ideia Moderna de Soberania à Luta de Classes Proletárias (1921) expõe a lógica do golpe. É dele a fórmula do golpismo: "Soberano é quem decide sobre o estado de exceção". Crítico dos Parlamentos, ele acentua o poder do presidente, posto acima da legalidade. O importante, nos textos de Schmitt que se refletem em 1964, encontra-se na defesa da exceção, supostamente mais realista do que a regra defendida pelos liberais. A ditadura, remédio para as convulsões políticas, não precisa da antiga legitimidade. Dada a crise geral, as instituições jurídicas estabelecidas não garantiriam o Estado. Sem as urnas, os atores do golpe invocam a exceção no AI-1: "A revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma".

Logo, o próprio Parlamento e a ordem jurídico-política recebem sua razão de ser do novo soberano. São deduzidas, assim, como crimes de lesa-majestade, as cassações de parlamentares e catedráticos, a censura, etc. 1964 foi uma evidente usurpação da soberania popular. E os golpes imperaram ao longo do regime. Os atos institucionais, do AI-1 ao AI-5, foram impostos sob a égide de lideranças civis, corporações jurídicas, oligarquias regionais e mesmo da CNBB, que apoiou a ditadura.

1964 não foi excepcional na História brasileira. Desde o início de nosso Estado tivemos muitos golpes. Lembremos o de Pedro I ao fechar o Parlamento, o dos militares que derrubam a monarquia, o de Getúlio Vargas que instalou uma ditadura feroz. Após a morte de Vargas o Brasil sofreu façanhas golpistas com o veto à posse de Juscelino Kubitschek, o contragolpe do marechal Lott, o levante de Aragarças, a tentativa de golpe de Jânio Quadros, o golpe militar e civil de 1961 contra Jango, o que levou ao parlamentarismo. Após 1964 houve o golpe dentro do golpe no AI-5, o golpe de Abril, etc. Findo o regime, que outra coisa foi a transformação esperta do Congresso, acrescido de outros integrantes, em Constituinte, senão golpe? Afastada a tese de uma Assembleia Nacional exclusiva, nobiliarcas da ditadura ajudaram a redigir uma Constituição sincrética que hoje, dadas as inúmeras emendas, é desprovida de coesão interna.

A Constituição vigente prevê remédios contra o golpe de Estado, mezinhas jurídicas que não impedem o exercício reiterado da usurpação política. O artigo 49, incisos IV e XI, evidenciam o receio em face dos possíveis golpes: cabe ao Congresso Nacional "aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas" (IV) e "zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes" (XI).

Excelente princípio, mas ineficaz na prática. Suportamos reiterados golpes com as medidas provisórias, que deveriam ser exceção, mas se transformaram em regra para o Executivo legislar. Que outra coisa temos, em normas eleitorais, senão golpes do Judiciário, que legisla sem reação do Congresso? É por tal motivo que o liberal Benjamin Constant imaginou o Poder Moderador, cujo papel seria neutro para evitar os golpes cometidos pelos três Poderes. Por um golpe, na Constituição de 1824 foi distorcida a ideia de Constant, colocando-se o Moderador acima dos demais. Daí, uma das raízes absolutistas da chefia do Estado brasileiro, a mazela do nosso presidencialismo, gigante com pés de barro, fonte de golpes e contragolpes, todos em detrimento da soberania popular.
A única prevenção contra as ditaduras é a vigilância cidadã, exercida sobre todas as facções que disputam os palácios.

ROBERTO ROMANO, PROFESSOR DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS, É AUTOR DE 'O CALDEIRÃO DE MEDEIA' (PERSPECTIVA)