Golpes
12 de abril de 2014 | 2h 05
ROBERTO ROMANO - O Estado de S.Paulo
Estado e golpes de Estado integram um só bloco histórico
e teórico. Desde Richelieu a máquina política sofre correções para
operar continuamente. Os golpes bem-sucedidos mudam a instituição sem
tropas nas ruas. Os que não conseguem tal feito usam a violência e geram
a desconfiança dos governados. Golpes brancos deixam traços invisíveis
na vida dos povos, os sangrentos marcam a memória das gentes. A Noite de
São Bartolomeu, um golpe de Estado, soma-se às odiosas quarteladas. Mas
todos os golpistas lembram Charon: "É preciso agir antes dos que
desejam nos surpreender!". Se existe Estado, o golpe é iminente. Quando
Napoleão anunciou o seu, alguém questionou: "E a Constituição?".
Resposta: "A Constituição é invocada por todas as facções e desprezada
por todas. Ela não serve mais como instrumento de salvação, pois ninguém
a respeita".
Segundo Gabriel Naudé, os golpes definem "atos extraordinários que os
príncipes são constrangidos a executar contra o direito comum, quando
os negócios se tornam difíceis ou desesperados, sem observar nenhuma
ordem ou forma de justiça" (Considerações Políticas sobre os Golpes de
Estado, 1640). Golpes invertem o direito, a economia, os valores. Neles
"a tempestade cai antes dos trovões, a execução precede a sentença,
(...) um indivíduo recebe o golpe que imaginava dar, outro morre quando
se imaginava seguro, um terceiro recebe o golpe que não esperava". O
governante que perdeu é punido e depois sentenciado pelos vencedores. A
repugnância contra a truculência golpista faz os seus agentes usarem a
dissimulação, até mesmo para indicar o nome da coisa.
Foi o que ocorreu com o Ato Institucional n.º 1 (AI-1). Aposentadas
as noções de legitimidade e de soberania vigentes, o texto proclama: "A
revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este
se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais
expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução
vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. (...) Ela
edita normas jurídicas sem que nisto esteja limitada pela normatividade
anterior à sua vitória".
Já devíamos a Francisco Campos, inspirador ou mesmo coautor do AI-1, a
"Polaca" de 1937. Ele conhecia bem os enunciados do jurista Carl
Schmitt. O autor de A Ditadura, das Origens da Ideia Moderna de
Soberania à Luta de Classes Proletárias (1921) expõe a lógica do golpe. É
dele a fórmula do golpismo: "Soberano é quem decide sobre o estado de
exceção". Crítico dos Parlamentos, ele acentua o poder do presidente,
posto acima da legalidade. O importante, nos textos de Schmitt que se
refletem em 1964, encontra-se na defesa da exceção, supostamente mais
realista do que a regra defendida pelos liberais. A ditadura, remédio
para as convulsões políticas, não precisa da antiga legitimidade. Dada a
crise geral, as instituições jurídicas estabelecidas não garantiriam o
Estado. Sem as urnas, os atores do golpe invocam a exceção no AI-1: "A
revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma".
Logo, o próprio Parlamento e a ordem jurídico-política recebem sua
razão de ser do novo soberano. São deduzidas, assim, como crimes de
lesa-majestade, as cassações de parlamentares e catedráticos, a censura,
etc. 1964 foi uma evidente usurpação da soberania popular. E os golpes
imperaram ao longo do regime. Os atos institucionais, do AI-1 ao AI-5,
foram impostos sob a égide de lideranças civis, corporações jurídicas,
oligarquias regionais e mesmo da CNBB, que apoiou a ditadura.
1964 não foi excepcional na História brasileira. Desde o início de
nosso Estado tivemos muitos golpes. Lembremos o de Pedro I ao fechar o
Parlamento, o dos militares que derrubam a monarquia, o de Getúlio
Vargas que instalou uma ditadura feroz. Após a morte de Vargas o Brasil
sofreu façanhas golpistas com o veto à posse de Juscelino Kubitschek, o
contragolpe do marechal Lott, o levante de Aragarças, a tentativa de
golpe de Jânio Quadros, o golpe militar e civil de 1961 contra Jango, o
que levou ao parlamentarismo. Após 1964 houve o golpe dentro do golpe no
AI-5, o golpe de Abril, etc. Findo o regime, que outra coisa foi a
transformação esperta do Congresso, acrescido de outros integrantes, em
Constituinte, senão golpe? Afastada a tese de uma Assembleia Nacional
exclusiva, nobiliarcas da ditadura ajudaram a redigir uma Constituição
sincrética que hoje, dadas as inúmeras emendas, é desprovida de coesão
interna.
A Constituição vigente prevê remédios contra o golpe de Estado,
mezinhas jurídicas que não impedem o exercício reiterado da usurpação
política. O artigo 49, incisos IV e XI, evidenciam o receio em face dos
possíveis golpes: cabe ao Congresso Nacional "aprovar o estado de defesa
e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender
qualquer uma dessas medidas" (IV) e "zelar pela preservação de sua
competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros
Poderes" (XI).
Excelente princípio, mas ineficaz na prática. Suportamos reiterados
golpes com as medidas provisórias, que deveriam ser exceção, mas se
transformaram em regra para o Executivo legislar. Que outra coisa temos,
em normas eleitorais, senão golpes do Judiciário, que legisla sem
reação do Congresso? É por tal motivo que o liberal Benjamin Constant
imaginou o Poder Moderador, cujo papel seria neutro para evitar os
golpes cometidos pelos três Poderes. Por um golpe, na Constituição de
1824 foi distorcida a ideia de Constant, colocando-se o Moderador acima
dos demais. Daí, uma das raízes absolutistas da chefia do Estado
brasileiro, a mazela do nosso presidencialismo, gigante com pés de
barro, fonte de golpes e contragolpes, todos em detrimento da soberania
popular.
A única prevenção contra as ditaduras é a vigilância cidadã, exercida sobre todas as facções que disputam os palácios.
ROBERTO ROMANO, PROFESSOR DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS, É AUTOR DE 'O CALDEIRÃO DE MEDEIA' (PERSPECTIVA)