10 de setembro de 2011 • Diversão&arte
Estigmas de Visão
Filósofo mostra que o ideário da hegemonia global foi retomado pelos EUA. Agora, o terror permite ignorar soberanias e interesses humanitários.
Roberto Romano
Certezas ideológicas constituem uma causa eficaz nas derrotas dos Estados. Marcello Gigante, historiador do pensamento, recorda a importância do ceticismo em assuntos ligados à vida coletiva. Ele narra uma visita sua a Nova York, antes do 11 de setembro : “no World Trade Center, a última maravilha do mundo, os dois prédios exibem mais de cem planos, e me apareceram diversos e iguais, segundo a distância e o ponto de observação. Durante o passeio pelo Hudson, no entanto, um parecia menos alto do que o outro; em terra firme, na distância mínima, os dois colossos surgiam como eram, iguais. Após a dúvida, tive a certeza, depois da aporia, o dogma: os edifícios têm a mesma posição, a mesma estrutura, a mesma altura mesmo que, às vezes, observados à distância, forneçam a sensação de serem diversos; a diversidade se revela um aparecer, a igualdade um ser (…) Vejo, erro, conheço, distinguo, julgo: o conhecimento conduz à uma certeza que está no limite, única e não dúplice, verificada, confirmada pela experiência”. (1) Exemplo terrível. Depois dos atentados, a certeza sobre os prédios gêmeos sumiu na poeira dos aviões. Mesmo o idealizador dos ataques que os destruíram desapareu na sombra da morte. Seu nome e figura voltarão, em novos atentados ? Não sabemos. Na política, sobretudo internacional, o que parece, nem sempre é verdadeiro.
Também na ordem bélica e na diplomacia as certezas enganam. “Realismo” é termo banal nas relações internacionais desde a Guerra do Peloponeso, quando os atenienses massacraram o povo de Melos para garantir sua hegemonia contra Esparta. (2) A palavra define o controle dos países fracos pelos fortes. Foi assim que o Ocidente espalhou sua cultura pelo mundo. Deixando de lado as bem aventuranças cristãs, os europeus efetivaram o ideal de Aristóteles em sua "Política". Só os gregos, pensa o filósofo, seriam homens na plenitude. Tal doutrina justificou batalhas e astúcias diplomáticas. Cartazes espalhados na China, diante dos clubes britânicos diziam no século vinte: "Proibida a entrada de cães e chineses". Muitas falas contra o terror, hoje, trazem os estigmas de semelhante visão cósmica. O ideário da hegemonia foi retomado pelos EUA. Um autor realista afirma que, o empenho norte-americano de espalhar a democracia pelo globo ajudou a “depor governos eleitos democráticamente e abraçou bom número de regimes autoritários durante a Guerra Fria, quando os idealizadores políticos americanos sentiram que tais ações poderiam ajudar a conter a URSS". (3) Em 11 de Setembro a mesma diretiva se intensifica, justificada pela réplica ao terror.
Os governos modernos seguem a razão de Estado, uso de força e dissimulação a serviço do poder, para conservar o mando ou garantir a ordem social. Dirigentes políticos são jogadores pouco honestos que "mudam as regras do jogo quando estão perdendo". (4) E foi assim após o atentado ao Pentágono e às Torres Gêmeas. As manipulações das regras no jogo interno, com a Lei Patriótica que feriu direitos coletivos e individuais, e no xadrez internacional, com as falácias sobre as "armas de destruição de massa" no Iraque e similares, justificaram a presença do Ocidente em países islamitas. Se na Guerra Fria a chantagem usou o comunismo internacional, o terror permite ignorar soberanias e interesses humanitários, num combate desigual entre potências avançadas em tecnologia e países sob ditaduras sanguinárias que vampirizam seus povos. Se o Ocidente une democracia e saber técnico, gerando uma força quase invencível, também é fato que seus Estados usaram fartamente, e não apenas em Hiroshima ou Nagasaki, a ciência para o controle imperial. (5)
Nos povos submetidos, como é o caso dos que integram o Oriente Médio, os líderes, frutos do colonialismo e da concorrência entre a extinta URSS e os países da OTAN, não conseguem hoje manter as massas disciplinadas. Sob feroz repressão (na Tunísia, no Egito, na Líbia, na Síria, no Iêmen, no Irã) as ruas acolhem pessoas que, embora não sabendo o que pode vir no futuro imediato e remoto, cansaram-se do modelo imposto, que não corresponde a nenhum programa nacional, mas efetiva alvos truculentos, corruptos.
As matrizes ideológicas, e mesmo o antigo nacionalismo, não arregimentam mais os grandes setores populares e a intelectualidade das nações islâmicas. A fala nacionalista tem concorrente forte na matriz religiosa (a diferença entre sunitas e xiitas se acentua). O fortalecimento de potências como o Irã não é visto como positivo, tanto pelos atuais dirigentes árabes quanto pelos movimentos que se elevam contra eles. Cada um daqueles países tem objetivos e formas de economia que, não raro, exibem francas contradições entre si, de mercado, estratégia militar ou diplomacia. Por enquanto, não se vislumbra algo dramático, como na guerra entre Iraque e Irã, visto o enfraquecimento do primeiro pela invasão estrangeira. Sinais importantes são dados pelas atitudes da Liga Árabe em relação aos países que atravessam a presente crise de governabilidade. É como se os dirigentes da Liga estivessem prenunciando que, após a queda de notórios ditadores, a sua vez chegará. Os interesses da OTAN enfraquecem a unidade militar e política dos países árabes, tornando a ONU uma instituição com valor menor do que simbólico. Se das atuais revoltas surgirem regimes hostis ao Ocidente, a situação dos EUA na região pode piorar. O lodaçal do Iraque, do Afeganistão e do Paquistão pode ser radicalizado, exigindo despesas em finanças e pessoas que a OTAN e os EUA não podem suportar.
Outra armadilha, fabricada no governo Bush, faz com que a opinião pública tema o elo dos que hoje tomam as ruas do mundo árabe com o terrorismo. Os terroristas, de fato, podem radicalizar as posições ideológicas daqueles círculos, ou banir os que demonstram ânimo pacífico e democrático. A repulsa aos padrões ocidentais será pior caso se exaspere o que M. Scheuer, ex-dirigente da CIA, chama de Imperial Hubris. (6). O programa da direita republicana (impor a democracia estadunidense a ferro e fogo, num rito de orgulho imperial ferido), exasperado pelos delirantes do Tea Party, é a receita eficaz para a perda de toda a região.
O modelo colonial europeu arregimentou, como feitores das populações, personalidades criminosas. Quanto pior elas eram para os povos, melhor para os britânicos, franceses, italianos. Os EUA não mudaram tal modus operandi. Ditadores foram ajudados financeira e militarmente (Sadam Hussein é apenas um deles). As etnias dominantes serviram a propósitos similares, esmagando maiorias caladas por torturas, baionetas, exílios, prisões. A realidade surge agora na Líbia : os EUA e aliados usaram Kadafi como parceiro na tarefa de "vencer o terror" com prisões ilegais, torturas terceirizadas, etc. A história dos nexos entre ditadores mediterrâneos (mas também sul americanos, africanos e asiáticos...) com a CIA é pouco edificante em se tratando da ordem democrática e dos direitos humanos.
Países como o Egito e a Líbia (fracionada em tribos poderosas) têm formas sociais diferentes e seus regimes, com muita probabilidade, serão diversos. É próprio do orgulho excessivo, experimentado pelo Ocidente, imaginar que existe apenas um tipo de regime político correto a ser imposto, se preciso, na ponta das armas. A democracia é universal quando se trata de prever e garantir a liberdade dos indivíduos, famílias, coletivos, contra o arbítrio de governantes. Ela é polifônica e multicolorida.
Dizer, para justificar a hegemonia norte-americana ou européia, que povos orientais são avessos à democracia, tem sabor do velho etnocentrismo. É esquecer ditaduras monocráticas, de Cesar a Napoleão, deste a Salazar, Franco, Pinochet, Getulio Vargas etc. E sem que nada se fale do Antigo Regime no qual o rei legislava segundo a sua veneta. No absolutismo (que teima em não morrer em países como o Brasil), o governante diz que só deve prestar contas a Deus. O princípio da accountability exigiu revoluções, sangue e sacrifícios. Países como a França e a Espanha, cujas guerras de religião foram tremendas, poucas lições de tolerância têm a dar ao resto do mundo. Alemanha, Itália ("dona" da Líbia, agressora da Etiópia etc.) pouco podem acusar no tribunal do mundo. Como ensinam Hobbes e Hegel, o planeta não tem um juiz que puna os excessos das potências. A ONU está longe de ser uma autoridade, porque é um condomínio com direitos desiguais. De um lado, a maioria das nações, de outro, no Conselho de Segurança, os poderes hegemônicos. Se tal status quo não for modificado, tragédias como a do 11 de setembro são previsíveis, matando todas as certezas nas chamas aterrorizantes da história.
(1) Gigante, Marcello: Scetticismo e Epicureismo, 1981.
(2) Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, capítulos 84 a 116.
(3)Mearsheimer, John : The tragedy of Great Power Politics, 2001.
(4) Lazzeri, Christian: La raison d'état, politique et rationalité, 1992.
(5) Hanson, Victor Davis : Por que o Ocidente Venceu, massacre e cultura, da Grécia antiga ao Vietnã, 2004. E também Moreno, Jonathan: Mind Wars, Brain research and National Security, 2008.
(6) Scheuer, Michael: Imperial Hubris, Why the West is losing the war on terror, 2004.