“É dando que se recebe”
Mas, hoje, a partir de Brasília, regras uniformes determinam até os detalhes da ordem nacional, desconhecem deliberadamente as diferenças regionais, culturais, geográficas, etc. Do Oiapoque ao Chuí, há uma uniformização gigantesca que obriga cada uma das regiões a se pautar pelo tempo longo da enorme burocracia federal, perdendo ocasiões preciosas para o experimento e mudanças das políticas públicas em plano regional ou local. Enquanto em outras federações, como a norte-americana (e apesar do grande centralismo daquele país) vigoram leis diversas em termos penais, educacionais, tecnológicos, etc., no Brasil a mão de ferro do Estado central controla, dirige, pune e premia os estados, segundo sustentem os interesses dos ocupantes temporários da Presidência. Nesse controle, as oligarquias regionais surgem como operadores de face dupla: servem para trazer os planos do poder central aos Estados e para levar ao mesmo poder as aspirações de estados e municípios.
O lugar onde as negociações entre os dois níveis (central e estadual) ocorrem, normalmente, é o Congresso, em Brasília. Ali, Presidência e ministérios buscam apoio aos seus projetos, inclusive e, sobretudo, de leis. É impossível conseguir recursos orçamentários, por exemplo, sem as “negociações”, e nelas omodus operandi identifica-se ao conhecido “é dando que se recebe”. Assim, os planos federais de inclusão social e democratização societária patinam na enorme generalidade do “grande Brasil”, enquanto as unidades aguardam as “providências” de uma burocracia incapaz de entender os vários ritmos e formas de vida e pensamento regionais.
Nos impostos, a concentração irracional de poderes deixa estados e municípios sempre à mingua de recursos. Verbas provenientes de impostos ou a eles ligadas, como no caso das exportações, não são repassadas às unidades ou não são repassadas em tempo certo, permanecendo nas mãos dos ministérios econômicos. Governadores e prefeitos são reduzidos à quase mendicância junto ao poder central. Testemunhamos, todos os anos, a caminhada de prefeitos do país inteiro rumo ao Congresso para reclamar recursos, autonomia, modificações em leis eleitorais e de estruturas municipais. Os prefeitos são tratados como estranhos ao Parlamento Federal. Enquanto tal situação permanecer, a fábrica das manobras corruptas (nas duas pontas, nos municípios e na capital da República) estará em pleno funcionamento.
Semelhanças entre as práticas absolutistas e as que imperam em nossos dias, na política brasileira: a determinação mais evidente e danosa é a da troca de favores na sociedade e na administração pública. Nenhum dos escândalos que abalaram o Estado nacional deixa de ter operadores (os brokers) que ligam interessados e seus alvos. Assim, os que manipulam recursos públicos cumprem a função de intermediários, em primeiro lugar, dos favores sociais, políticos, econômicos, ideológicos e, mesmo, religiosos. Mas, tais operadores não funcionam no vazio. Eles executam um papel essencial e servem a todos os partidos, porque todos eles movem a máquina do poder federal que concentra as verbas emanadas de impostos. Sem os operadores, nenhum oligarca regional consegue chegar até a boca do cofre ou à caneta do poder Executivo. Osbrokers, por sua vez, conseguem cargos para seus clientes, tanto na administração pública quanto nas chamadas empresas estatais (para não falar nas empresas privadas que, assim, trocam favores com os donos temporários do poder).
Apadrinhamento político
Os nossos brokers, herdeiros do Antigo Regime (dos quais Marcos Valério é apenas um entre muitos), trabalham num esquema de apadrinhamento político que se divide entre as velhas práticas, como as indicações para os cargos feitas por oligarcas e as “novas” indicações para os cargos segundo o critério da “militância”, sem passar pela competência técnica ou administrativa. Daí para os “serviços” junto aos cofres públicos e privados é apenas um passo. O chefe do Executivo e do Estado tem como função, à semelhança do rei no Antigo Regime, favorecer os que o favorecem com cargos, privilégios, recursos e isenções de impostos. Semelhante troca de favores só é viável porque existe na sociedade a cultura do favorecimento, conseguido com os que operam o Estado.
Os nossos políticos jogam perenemente com o medo dos eleitores diante do pior: o fim dos favores ou uma hecatombe econômica se “os outros”vencerem, ou com a ausência de verbas, obras, empregos. Basta ver a propaganda nas eleições: se os munícipes votarem contra os indicados por Brasília (ou pelo palácio do governador), programas importantes não virão. Caso votem no candidato do príncipe, benesses fluirão em abundância. Os políticos conhecem os eleitores, não os idealizados, mas os reais. Os princípios éticos não rendem favores nem votos, não rendem obras, nem poder. É em um terreno assim que devemos pensar a responsabilidade governamental.
A corrupção que gera escândalo possui dois registros temporais – um diacrônico e outro sincrônico. Num sistema necessariamente corrupto, dada a concentração de recursos nas mãos do poder Executivo maior, os policiais, o Ministério Público, a Justiça e a imprensa tomam conhecimento dos fatos uns após outros. Mas, no mesmo átimo em que surge um escândalo, a rede corrupta opera no Estado e na sociedade. A polícia, a Justiça, o Ministério Público quase sempre operam post festum. O sistema, sincronicamente, pratica as mesmas coisas supostamente punidas ao serem descobertas. A nossa prática é a de iluminar um quadro de cada vez, enquanto os demais ficam na sombra… até que sejam iluminados.
Os escândalos não constituem monopólio dos políticos. Eles não raro têm raízes no mercado, na sociedade civil e nas instituições sociais. Pensemos apenas nos esportes: boa parte deles é gerida segundo técnicas de causar inveja aos apadrinhados de Don Corleone. Os casos são múltiplos. Talvez seja mais grave que um operador do Estado se corrompa, do que um cartola. No entanto, as pessoas se habituam ao fenômeno nos dois setores. Lembremos a lição dos pensadores políticos segundo a qual um Estado (é mais verdadeiro para o democrático) pode ser assassinado por forças externas violentas, mas também morre por consunção interna.
Quais são as outras lições a serem extraídas da Ação Penal 470? A primeira é nos precavermos contra o maniqueísmo e a prática do desmascaramento alheio quando se guarda a máscara da pureza (falsa) para si. A segunda é lutar contra a cultura do favor na sociedade e no Estado. A lógica do compadrio precisa ser recusada pelos que se julgam democratas. A terceira é legalizar olobby, porque em boa parte os nossos congressistas, sob a aparência de representação popular, são lobistas de fato, sem responsabilidade normativa. Eles também agem como os brokersque facilitam o acesso ao verbo e às verbas. A quarta é lutar por uma federalização real do Brasil. Sem ela, os escândalos, movidos pelos intermediários, cujo nome pode ser Valério ou qualquer outro, continuarão desanimando a cidadania na busca de um Estado democrático de direito.