Marco Aurélio Nogueira - O marxismo de Leandro Konder (1936-2014), ode ao pensamento crítico e à democracia
- O Estado de S. Paulo
Poderia
um marxista, nesses tempos de crise de seu próprio campo teórico,
analisar com isenção e eficácia a relação dos intelectuais com o
marxismo? Se este marxista praticar um marxismo aberto ao novo, distante
de dogmas e cristalizações doutrinárias, sem dúvida que sim. Se se
chamasse Leandro Konder, a certeza seria ainda maior.
Konder,
que morreu quarta-feira, 12/11/2014, aos 78 anos, foi uma ave rara no
panorama intelectual brasileiro. Dono de vasta bagagem cultural e de
amplo conhecimento de ciência e filosofia, foi um de nossos mais
refinados marxistas, um pesquisador disciplinado e meticuloso, capaz de
se debruçar tanto sobre grandes processos e questões abstratas quanto
sobre detalhes aparentemente menores, com os quais compôs painéis
históricos e perfis biográficos repletos de graça e rigor. Generoso,
cordial e afetuoso por temperamento e convicção, foi um ativo escritor
de livros. Ao longo da vida, publicou mais de duas dezenas deles, além
de inúmeros artigos, ensaios e traduções.
Reconhecido
por sua fineza intelectual e por seu texto envolvente, Konder nunca fez
concessões ao doutrinarismo e ao dogmatismo tão comuns no universo
marxista e no campo comunista, no qual militou a vida inteira. Também
não se dobrou ao academicismo. Como professor, não se cansou de descer
do pedestal e de construir pontes entre o saber acumulado e a jovem
intelectualidade, os homens de cultura, os militantes democráticos e
socialistas. Não atuou como mero “divulgador: esteve sempre interessado
em resgatar os ângulos decisivos do marxismo, aqueles que melhor
expressam o vigor e a originalidades das ideias de Marx e que acabaram
por ser marginalizados pelo reducionismo “marxista-leninista” entranhado
no imaginário dos partidos comunistas e de boa parte da esquerda, no
Brasil e no mundo.
Konder
desejou, em suma, repor no centro do marxismo a dimensão dialética,
naquilo que tem de reconhecimento da irredutibilidade do real ao saber,
de questionamento permanente, de recuperação plena do conceito de
práxis. Buscou resgatar tudo isso à luz dos temas de hoje, sem deixar de
lado episódios menosprezados, autores “malditos” ou polêmicas
correntes. Pôs-se a tarefa de convidar seus leitores e ouvintes a
despir-se de dogmas e preconceitos, alçar vôo e acompanhá-lo numa viagem
ao cerne de debate político-cultural da modernidade.
Leandro
possuía ainda outra característica distintiva: não se levou
exageradamente a sério o tempo inteiro, como gostava de dizer. Havia
nele, em doses fartas, um delicioso senso de humor que suavizava a
firmeza da crítica e humanizava a exposição, recheando-as de detalhes e
boutades que funcionavam como travas de sustentação da narrativa e
sempre revelavam algo mais do personagem ou do assunto em foco. Como se
não bastasse, a verve de Konder ajudou-o também a demonstrar que um
marxista não é necessariamente um chato. “Importante mesmo – reconheceu
certa vez – é ser intelectual marxista e preservar o senso de humor”.
Não era gratuita sua admiração pelo Barão de Itararé,o corrosivo
Aparício Torelly, o primeiro dos nossos “humoristas da democracia”, ao
qual dedicou um saborosíssimo livrinho em 1983.
Todos
estes traços estiveram presentes – com peso diferenciado – na extensa
bibliografia de Leandro Konder, na qual se integram ensaios sobre
grandes pensadores (Lukács, Hegel, Marx, Benjamin), estética, problemas
filosóficos e temas políticos, com seguidas incursões pela história
brasileira, vista pelo ângulo da cultura, dos intelectuais marxistas e
do movimento comunista.
Em 1991, no livro Intelectuais Brasileiros e Marxismo,
Konder analisou o encontro de certos intelectuais com o pensamento de
Marx e com a prática política nele inspirada. A hipótese era que o
marxismo, no Brasil, “antes de ser trabalhado no nível dos conceitos,
foi vivido e traduzido em ação por numerosos ativistas políticos,
militantes, batalhadores”, regra geral associados às lutas do movimento
operário e do PCB, principal difusor das idéias de Marx no Brasil. Uma
história do marxismo no Brasil, ponderava Konder, precisaria ir além da
apreensão de aspectos exteriores, meramente relacionais; precisaria
“examinar a representação da realidade em que tais lutadores se baseavam
para agir”. Descobrir-se-ia, assim, o estatuto do marxismo por eles
assimilado, sua maior ou menor rigidez doutrinária, sua eventual
ausência de molejo dialético e dimensão filosófica. Num certo sentido,
foi essa a perspectiva buscada em A Derrota da Dialética (1987), no qual investigou a recepção das ideias de Marx no Brasil até os anos trinta.
Leandro
sempre se preocupou em decifrar duas formas típicas de pensamento: a
mais “espontânea” e a mais elaborada, o pensamento instrumentalizado
para a prática política e o pensamento dedicado a construções teóricas
mais ambiciosas, que procuram “ultrapassar os limites das intuições e
percepções empíricas que, com freqüência, atendem às necessidades
imediatas dos abnegados militantes”. Nunca se propôs a abordar o tema da
influência do marxismo na cultura brasileira em geral, o que tornaria
ampla demais a relação dos personagens a serem considerados.
Dialogou
com intelectuais de distinta trajetória e formação (Astrojildo Pereira,
Mario de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Otto Maria Carpeaux,
Nelson Werneck Sodré, Antonio Candido, Sérgio Paulo Rouanet, Roberto
Schwarz, José Guilherme Merquior, entre outros), que, cada um a seu
modo, entraram em contato com o marxismo e com ele dialogaram. Alguns
“aderiram entusiasticamente aos princípios do marxismo; outros lhe
reconheceram aspectos estimulantes e trataram de assimilá-los; outros,
ainda, prestaram-lhe a homenagem de discutir com ele, recusando-o de
maneira global, mas freqüentando-o como interlocutor incômodo porém
útil, ao qual se volta sempre para o exercício da discórdia”.
Konder
nos ajudou, assim, a entender como e porque o marxismo, no Brasil,
ainda que sem conseguir se completar como matriz permanente de grandes
criações, funcionou como importante pólo de atração e referência da
intelectualidade, a ela fornecendo estímulo para uma melhor consideração
da questão social e parâmetros para a superação das tendências
individualistas e corporativas quase sempre inevitáveis na vida
cultural.
Leandro
também foi decisivo para que muitas pessoas compreendessem que há muita
coisa envelhecida e superada em Marx e o marxismo encontra-se em crise
profunda, mas Marx ainda não é carta fora do baralho e em certos
aspectos pulsa com vitalidade. Seu primoroso livro O futuro da filosofia da práxis. O pensamento de Marx no século XXI, publicado em 1992, é revelador de um modo de pensar. Está lá, com todas as letras, o princípio que norteou sua atuação:
“O
pensamento que provém de Marx e que, mal ou bem, atravessou o século XX
combatendo, não tem nenhuma chance de sobreviver refugiado em
universidades ou em institutos científicos; e também não tem nenhuma
possibilidade de resistir à autodissolução se renunciar ao rigor
teórico, realizar um sacrificium intellectus, abandonar as exigências da reflexão e tornar-se instrumento de alguma seita.”
Marx
foi “um pensador do século XIX”. Comparados com os nossos, seus
horizontes eram limitados. Havia nele traços fortes de “eurocentrismo”, a
questão da democracia e de seu valor universal não merecia maior
atenção, estavam ausentes ou rebaixados, entre outros, os temas
relativos à dignidade da pessoa humana, à autonomização dos indivíduos,
ao pluripartidarismo e à participação das massas na vida pública e no
controle do Estado. Além do mais, a perspectiva de Marx foi literalmente
saqueada pela prática partidária comunista ao longo do século XX,
ficando reduzida em sua complexidade, engessada e atrofiada em diversos
pontos. Ao menos por isso, os textos de Marx não podem ser convertidos
em doutrina fechada, uma espécie de cataplasma universal pronto para ser
“aplicado” nas feridas abertas pelo capitalismo. Em Marx, enfatizava
Konder, “não existe nenhum anabolizante para os atletas do socialismo
revolucionário atravessarem em tempo recorde a tempestade da crise
atual”. Há, isso sim, um convite à crítica permanente e à revisão.
Além
do mais, não havia e não há porque santificar Marx e vê-lo como que
pairando acima de sua própria época e de seus limites. “O fato de ter
sido um desmistificador genial dos fenômenos típicos de uma esfera
decisiva da atividade alienada (a esfera da produção e da apropriação) –
escreveu Leandro – não assegurava a Marx uma consciência isenta de
‘alienação’ na esfera da vida familiar e da moral privada”.
Konder
jamais se fechou para as diversas correntes da filosofia e do
pensamento. Foi o marxista que todos deveriam tentar ser: afável, não
sectário, modesto, nada professoral, sempre disposto a ouvir e a se
reformular. O “seu” Marx estava aliviado das cristalizações enrijecidas
pelo tempo e a manipulação intensiva; era um pensador carregado de força
sugestiva, capaz de iluminar muitas das perplexidades com que nos
deparamos na sociedade atual: a degradação do trabalho, o caráter
dilacerado da comunidade humana, a mercantilização galopante da vida
social, o esvaziamento dos valores, a perda de potência das grandes
utopias e da ideia de socialismo.
Em um de seus últimos livros (Em torno de Marx, de 2010), Leandro
fez questão de valorizar o Marx filósofo, cuja contribuição à
construção do conhecimento na cultura do Ocidente não teria sido
plenamente aproveitada. Reiterou o convite à reflexão crítica e
autocrítica, como se estivesse a repisar o terreno do qual jamais se
afastou:
“Os
cientistas erram. Não só eles: todos nós erramos. E é errando e
corrigindo o erro que se aprende. Na esperança de diminuir seus erros,
os homens aprendem a pensar mais criticamente e, por extensão, mais
autocriticamente. O exercício do diálogo abre espaço para conhecimentos
novos e ajuda a evitar que se percam conhecimentos desmistificadores”.
A
morte de Leandro Konder retirou na cultura brasileira um de seus
personagens mais ativos, gentis e generosos. Um grande intelectual, um
marxista que jamais se fechou em dogmatismos, um democrata. Seu trabalho
ajudou a formar muitas gerações de marxistas não sectários,
democráticos e pluralistas.
Fomos
muito amigos. Nos últimos anos não o encontrei mais, e me lamento muito
por isso. Carregarei esta culpa daqui para frente. Tentei algumas
vezes, não consegui. Tudo ficou difícil.
Em 1988, Leo revisou com esmero uma tradução do Manifesto do Partido Comunista,
de Marx e Engels, que eu havia preparado para a Editora Vozes,
cotejando-a rigorosamente com o original alemão. Fez o trabalho como
amigo, interessado exclusivamente no valor da edição. Tive de
convencê-lo a compartilhar comigo a autoria da tradução. Em 2004,
redigiu a quarta capa de meu livro Um Estado para a sociedade civil. Foi um acontecimento para mim.
Jamais
o esquecerei, por isto, por ter sido ele quem foi, pelas coisas que
fizemos juntos, por sua importância na minha formação e por sempre ter
sido um exemplo a seguir.
Todas as lágrimas, lembranças e homenagens a ele serão poucas.
Marco Aurélio Nogueira, cientista político e professor de teoria política na Unesp