"Há um abismo entre Lula e a ingenuidade de Dilma", diz socióloga
A socióloga Maria Sylvia Franco conviveu com os homens e ideias que resultariam no PT e no PSDB e alerta para uma distinção importante: quem passou a consumir mais não necessariamente passou a produzir mais
FILLIPE MAURO, COM MARCOS CORONATO
05/11/2014 08h00
O
Brasil conheceu, nos anos 1960, uma geração de intelectuais que
influenciaria o país pelas décadas seguintes. Na Universidade de São
Paulo (USP), um grupo de estudos liderado pelo sociólogo marxista
Florestan Fernandes – que viria a ser deputado federal pelo PT –
impulsionou figuras como Fernando Henrique Cardoso, futuro presidente da
República pelo PSDB. Entre eles estava a socióloga Maria Sylvia Franco,
estudiosa das raízes da violência no Brasil. Sua obra "Homens livres na
ordem escravocrata" tornou-se um clássico da sociologia brasileira.
Maria Sylvia conversou com ÉPOCA sobre os dois grupos que disputam o
poder no Brasil e alguns temas-chave para entender o cenário político.
Maria Sylvia – Tenho pena da Dilma. Há um abismo entre a grande esperteza de Lula e uma certa ingenuidade de Dilma. A presidente parece simpatizar com a escola econômica da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), da década de 1960. Um raciocínio mecanicista de manual de marxismo, que acredita que, se o Estado impulsiona a burguesia nacional, uma série de mudanças estruturais se encadeia automaticamente. Dilma fez isso: deu incentivo fiscal, abriu o crédito, reduziu taxas sobre automóveis. A burguesia vendeu muito. Investiram? Não. Colocaram o dinheiro no circuito financeiro por segurança. Não pensaram no coletivo um instante sequer. Quando acordarem, será tarde demais.
ÉPOCA – A senhora e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foram orientados por Florestan Fernandes, um dos maiores intelectuais marxistas do país. Em 1994, Florestan afirmou classificou como "perturbador" o rumo de FHC e do partido dele, o PSDB (Fernandes se referia à aproximação do PSDB, um partido com origem na centro-esquerda, de economistas liberais e do PFL, hoje DEM, partido de direita que reunia vários políticos que haviam apoiado a ditadura militar). A senhora, alguma vez, teve o mesmo sentimento?
Maria Sylvia – Quase não consegui defender minha tese porque ia contra Florestan e seus orientandos, Fernando Henrique e Octávio Ianni (sociólogo de esquerda, estudioso de desenvolvimento e desigualdade social). Não fosse graças a Antonio Candido e Sérgio Buarque de Holanda, o trabalho não viria a público. Fernando Henrique tirou 9,5 em sua tese. Eu tirei 10. Fernando Henrique foi, desde sempre, um político hábil e capaz. Mas tenho minhas dúvidas se algum dia foi marxista.
ÉPOCA – Por que a candidatura da ex-senadora Marina Silva, com a proposta de fundação de uma “nova política”, não foi para o segundo turno?
Maria Sylvia – A “nova política" é uma fórmula retórica. Era ilusão da parte de Marina acreditar na política fora do espectro da direita e da esquerda. Foi um milagre ela ter conseguido mais votos que em 2010, diante da campanha agressiva do PT. A campanha da presidente Dilma foi um grande desserviço para a cidadania. Tornou difícil os eleitores votarem com consciência e razão. O grande problema é que Marina precisaria refundar a esquerda no país. A esquerda brasileira está descaracterizada e a direita veio com toda força. O PSOL (cuja candidata à Presidência foi Luciana Genro) até tem boas pessoas e intenções. Mas tem apenas 1% dos votos. É possível que Marina tivesse a intenção de mudar esse sistema tradicional, o clássico sistema de favores. Talvez promovesse mesmo mudanças mais estruturais, tornando o contato com os mais pobres menos demagógico. Mas o problema é maior que nossas eleições. Enquanto não houver pleitos preliminares nos partidos, com consulta à militância de base, esse mesmo mandarinato continuará no poder. Dizem-se novos. Não sei onde.
ÉPOCA – Vivemos uma fase de baixa taxa de desemprego e alta do poder de compra. Para a senhora, como se explica a alta taxa de rejeição a Dilma Rousseff?
Maria Sylvia – Os itens que o senhor mencionou são parte do sistema forte de propaganda controlado pelo governo federal. Não é à toa que o principal ministro de Dilma se chama João Santana (coordenador de campanha de Dilma Rousseff). Dizem que uma nova classe média entrou no mercado de consumo graças à distribuição de renda. Essa é a maior distorção ideológica que podemos imaginar. Parte da confusão de dois critérios diferentes. Uma coisa é consumo, outra coisa é renda. A renda faz parte do PIB e está fundada no sistema produtivo. Só há distribuição de renda com reforma estrutural do sistema produtivo. Ninguém é contra o Bolsa Família. Mas não podemos negar que ele é, no máximo, um benefício, pago pelo assalariado. As pessoas têm, sim, geladeiras e carros novos, mas continuam morando em favelas. É possível consumir mais sem participar do processo produtivo.
ÉPOCA – O salário mínimo passou por ajustes consideráveis. Isso não eleva a renda?
Maria Sylvia – Sim, é verdade. Ainda assim, temos a questão do (baixo) investimento produtivo. Porque renda é o salário do trabalhador mais o ganho do proprietário. No capitalismo, se os lucros do proprietário ficam estagnados, o salário do trabalhador também não cresce. Hoje, o emprego pode até ser pleno no setor de serviços, mas com PIB abaixo de 1% é impossível que se sustente. A inflação durante o governo do PT foi baixa com relação aos anos anteriores ao Fernando Henrique Cardoso. Mas, nos últimos dois anos, disparou. Pesou em itens básicos como alimentação, vestuário e transporte. O custo de vida cresceu.
ÉPOCA – Seu livro também descreve o Brasil do século XIX como uma sociedade fundada na violência. Até hoje, e a despeito da queda na desigualdade social, continuamos um país violento. Como a senhora interpreta isso?
Maria Sylvia – Essa história romântica do homem cordial, criada por Sérgio Buarque de Holanda, é uma mitologia que dará muito trabalho para ser desconstruída. A violência vem de várias fontes nesse nosso mundo autoritário da propaganda. No passado, havia o senhor de escravos, mas agora temos, por exemplo, uma polícia violentíssima.
A Copa do Mundo foi um sucesso porque houve uma repressão fantástica. Em cada esquina, havia um policial vestido feito o (vilão de ficção científica) Darth Vader. Aliás, também se via violência dentro dos estádios. As pessoas estavam agredindo umas às outras quando se emocionavam com o hino, usando aquelas perucas, pintando seus rostos. Como alguém pode se submeter àquilo?