sábado, 22 de novembro de 2014

Zero Hora/ 22/11/2014

Ao prender poderosos e envolver maior empresa do país, ofensiva pode virar divisor de águas

Ação escancarou em detalhes o esquema sujo de desvio de dinheiro. Resta saber o que virá pela frente

22/11/2014 | 14h05
Ao prender poderosos e envolver maior empresa do país, ofensiva pode virar divisor de águas DANIEL TEIXEIRA/ESTADAO CONTEUDO
Além de estimular um debate sobre novas formas de coibir a sangria dessas cifras bilionárias, o episódio deverá provocar outros impactos por sua relevânciaFoto: DANIEL TEIXEIRA / ESTADAO CONTEUDO
No começo dos anos 80, o representante de uma empreiteira bateu à porta do então ministro dos Transportes, o gaúcho Cloraldino Severo. Trazia na pasta a proposta de uma obra vultosa: um túnel submerso de 60 quilômetros ligando São José do Norte a Pelotas.
— Com o dinheiro que vocês estão querendo, mudo a cidade de lugar — espantou-se o ministro.
O lobby das construtoras pretendia ainda criar um novo porto em uma ilha artificial na Baía da Guanabara, no Rio, implantar um trem-bala entre Rio e São Paulo, entre outros projetos mirabolantes que chegavam a custar US$ 5 bilhões e cujo maior propósito era abrir caminhos até o cofre do governo federal.
O assédio das empreiteiras faz parte de uma longa tradição, que se tornou bem mais visível na semana passada, de intimidade entre o poder público e os maiores tocadores de obras do país.
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Esse casamento de sete décadas deu forma a obras colossais como a Usina de Itaipu e a Rodovia Transamazônica, mas construiu também o que é considerado por especialistas o maior caso de corrupção descoberto na história recente do Brasil — com implicações políticas e econômicas ao atingir um governo eleito por pequena margem de votos (51,6% de Dilma Rousseff contra 48,4% de Aécio Neves), sob economia cambaleante e diante de uma oposição revigorada.
Embora a relação promíscua entre agentes públicos e interesses privados seja antiga, alguns fatores transformam as revelações da Operação Lava-Jato em um divisor de águas no mar turvo da administração federal: envolve a maior empresa do país, a Petrobras, levou a prisões inéditas de alguns dos empresários mais poderosos do país e escancarou em detalhes o sistema de irrigação de dinheiro sujo a políticos e partidos. Por isso, os alicerces do poder tremem desde a sexta-feira em que foram cumpridos 23 mandados de prisão.
— A influência das empresas de construção na política é muito antiga. O que espanta agora é a escala do problema e o fato de que os corruptores, pela primeira vez, foram expostos – opina o ex-ministro e consultor Cloraldino Severo.
Estima-se que os recursos surrupiados da Petrobras somem bilhões, e sabe-se que parte dos envolvidos já aceitou devolver mais de R$ 420 milhões. A divulgação desses valores, para o professor de Ética Política da Unicamp Roberto Romano, confirma que a administração pública se transformou há muito tempo em uma “máquina de corrupção” abastecida por empresas cada vez mais pujantes e influentes.
— Essa relação entre o governo e o empresariado começou com Getúlio Vargas, continuou com JK, quando a construção de Brasília deu início ao império das empreiteiras, e seguiu na ditadura com a implantação das grandes rodovias nacionais. As prisões de agora interrompem, por alguns segundos, essa história de imenso poderio das empresas sobre a história política, econômica e social do Brasil — analisa Romano.
As prisões simbolizam passo no rumo certo
Para o cientista político e presidente da empresa de análise política Arko Advice, Murillo Aragão, a descoberta do saque à Petrobras marca um momento ímpar:
— Provavelmente, estamos diante do maior escândalo de corrupção já descoberto na história do Brasil, dado o volume de dinheiro desviado. Ele coloca em xeque o modelo de relacionamento do governo com o setor privado e os políticos.
A grande questão é saber se o choque provocado pela dimensão do caso resultará apenas na prisão dos envolvidos — o que já seria um avanço — ou levará a mudanças estruturais capazes de emperrar a eficiente máquina pública de desvio de dinheiro.
Sem um mecanismo eficaz de combate às maracutaias, sempre haverá empresários dispostos a tudo para botar a mão no Tesouro e agentes públicos disponíveis a acertos espúrios. Para o cientista político e professor da UnB Alexandre Gouveia, pelo menos as prisões de presidentes e diretores de empreiteiras e da Petrobras simbolizam um passo no rumo certo.
— No caso do mensalão, não tivemos muitas delações premiadas porque os envolvidos apostavam na impunidade, e não tivemos corruptores identificados. Agora, a Lava-Jato levou a um mapeamento profundo dos envolvidos, a prisões de pessoas com peso econômico e à adesão à delação premiada. É um ponto de evolução na relação do dinheiro público com o interesse privado — avalia Gouveia.
Murillo Aragão avalia, ainda, que a atuação da Polícia Federal demonstra um ambiente mais favoravel à apuração de responsabilidades no país:
— Acredito que o caso demonstra um amadurecimento das instituições no Brasil. Em outros tempos, talvez o governo abafasse tudo isso de forma indevida. Agora há um ambiente mais propício às investigações.
Mas, para Roberto Romano, o desmantelamento do mecanismo de achaque ao dinheiro público exigiria a busca de soluções para problemas mais profundos, como os seguintes:
1. Centralização de poder e dinheiro na União.
2. Burocracia, que facilita a extorsão a empreendedores a fim de acelarar processos.
3. Um sistema político em que os partidos precisam de dinheiro para se eleger e, depois de eleitos, de mais dinheiro para comprar votos e garantir sustentação no Congresso.
4. Cultura do apadrinhamento político para ocupação de cargos.
5. Falta de punição adequada a corruptos
O presidente da Confederação Nacional dos Municípios, Paulo Ziulkoski, afirma que a concentração de recursos pela União é um convite à corrupção em grande escala —  Brasília abocanha cerca de 60% de tudo o que é arrecadado no país, enquanto os Estados recebem 25%, e aos municípios restam pouco mais de 15%. O governo federal arrebatou R$ 1,1 trilhão em impostos no ano passado, sem falar na receita de empresas como a Petrobras — R$ 304 bilhões em 2013.
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Outras empresas poderão sentir efeito do escândalo
Além de estimular um debate sobre novas formas de coibir a sangria dessas cifras bilionárias, o episódio deverá provocar outros impactos por sua relevância. Em termos econômicos, a Petrobras e a cadeia produtiva no seu entorno já sentem o golpe – a empresa Iesa, por exemplo, anunciou mil demissões no Rio Grande do Sul após a rescisão de um contrato com a estatal. O diplomata e consultor de negócios Rubens Barbosa acredita que outras empresas brasileiras poderão sofrer efeitos colaterais do escândalo:
— A credibilidade da maior companhia brasileira está afetada. Outras empresas poderão encontrar juros mais altos ao tentar captar recursos no Exterior — exemplifica Barbosa.
O economista e professor da PUC-SP Antônio Corrêa de Lacerda acredita que pode haver um impacto inicial de atraso em investimentos no país devido a paralisações de obras, mas não crê em redução dos investimentos externos.
— Pode se criar um clima de incerteza, instabilidade. Mas, no médio e no longo prazos, pode surgir um aspecto positivo pela sensação de saneamento e combate à corrupção –
analisa Lacerda.
Segundo o cientista político Alexandre Gouveia, a presidente Dilma Rousseff terá de exibir habilidade política para controlar os efeitos do escândalo — o mais recente capítulo de uma longa história envolvendo a União e as maiores empreiteiras do Brasil.
— O potencial de crise é maior do que o do mensalão pela envergadura e exposição dos envolvidos. A presidente terá de investir em transparência, se aproximar das lideranças partidárias e ainda administrar a crise econômica — sustenta Gouveia.

As razões para a corrupção sistêmica no Brasil
1  — O governo federal centraliza o poder e o dinheiro no Brasil: no ano passado, arrecadou R$ 1,1 trilhão em impostos. Apesar dos repasses para Estados e municípios, a União fica com cerca de 60% de tudo o que é arrecadado no país. Além disso, administra empresas pujantes como a Petrobras, a maior do Brasil, com receita de R$ 304 bilhões em 2013.
2 — O dinheiro é disputado pela iniciativa privada, sejam empreiteiras ou quaisquer outras empresas que fornecem materiais ou serviços para o governo. A centralização de poder e a burocracia criam oportunidades para que servidores cobrem ou aceitem propinas de empresas que querem acertar contratos com o governo.
3 — Para fechar os contratos e ganhar dinheiro, muitas vezes vencendo licitações direcionadas, empresas aceitam pagar suborno. Em compensação, podem vender seus produtos ou serviços a preços acima do mercado. A diferença acaba no bolso dos corruptos.
4 — O dinheiro abastece o sistema político-partidário: ajuda a financiar partidos e campanhas eleitorais que permitirão às siglas chegar ao poder ou se manter nele e, assim, garantir cargos em secretarias, ministérios e empresas por meio de indicações políticas a cargos de confiança. Ajuda, ainda, a comprar votos no Congresso para aprovar projetos de interesse do governo, garantir a governabilidade e facilitar a reeleição.
5 — A expectativa de impunidade permite que o sistema continue funcionando, e faz com que escândalos se sucedam ao longo de décadas.
* Zero Hora