Reforma política e lobby
Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
10 Novembro 2014 | 02h 03
Não é preciso ter a finura de Marcel Proust
para evocar as trapaças do tempo que toldam a memória e fragilizam a
vontade. Santo Agostinho tem duras páginas sobre a nossa desgraça na
finitude, mortal fuga do Eterno. Dele fomos expulsos pelo erro que nos
trouxe a mentira e o declínio até o Apocalipse. Em plano bem menor, os
escândalos da vida econômica e política escondem armadilhas que dominam a
consciência pública, distorcida pela falsidade cronológica. Temos
notícias dos crimes e delitos de modo diacrônico: toda manhã os jornais
trazem os "malfeitos". Retomados, tais fatos entorpecem os sentidos.
Após alguns anos poucos indivíduos ouvem, olham, sentem, inalam a podre
desolação imperante nas instituições pervertidas pelos interesses
ilegais.
Sistemática, a vida coletiva pervertida tem outro lado, o sincrônico: no
instante em que uma quadrilha assalta certa repartição ou instituto,
outra age de modo igual em parte distante ou próxima do poder. A máquina
de moer princípios éticos opera em dois registros temporais. A
cidadania distraída sempre retoma a cantilena da indignação quando
estoura um escândalo, mas não busca o fio que une os atentados aos
dinheiros públicos.
Como arrancar, na luz diurna, bilhões destinados às políticas públicas?
Ninguém pode fazer tal milagre isoladamente. Para o sucesso toda uma
rede é armada, técnicas precisam ser movidas, hábitos comuns reúnem os
meliantes. A corrupção não é singular, mas necessariamente coletiva.
Estudos analisam os atos de quem rouba o erário. A intelecção dos
agentes corruptos une as trocas de favores, "amizades", apadrinhamentos,
interesses sociais e políticos (J. Boissevain, Friends of Friends:
Networks, Manipulators and Coalitions, 1974).
Para corromper normas e projetos são inventadas novas e sutis formas de
acesso às informações, às pessoas, às influências. Uma estrutura
triádica, no entanto, sempre opera no setor escuro da vida política:
existem os clientes, postos nos dois lados do balcão, e os agenciadores
(os brokers), que distribuem cargos e recursos, garantem fidelidade aos
pactos. Combater a corrupção requer controlar os "clientes" e quem os
favorece. O caso Alberto Youssef é claro: ele serviu como broker para
corrompidos nos dois polos, o público e o privado. Não basta punir um ou
dois integrantes da rede, os três devem receber sanção negativa. A
tarefa requer forças que vão além de polícia, Justiça, controladorias.
Todos os que pagam impostos deveriam agir como fiscais dos cofres
públicos. É mais fácil, entretanto, abrir o jornal, ligar a TV ou o
computador e assumir o rito inútil da indignação que leva... à hipnose e
ao esquecimento.
Com o moderno Estado foi inoculado na massa dos contribuintes o dogma de
que existem funções explicitamente públicas, desempenhadas por pessoas
cujos poderes são limitados pela ordem jurídica. Nessa forma de pensar,
apadrinhamentos, favores recíprocos, apoios financeiros para eleger
parlamentares e governantes permanecem na penumbra, raramente surgem na
cena para "desacreditar a ordem legal". Mas todos sabem e ninguém
confessa: as ligações perigosas entre clientes e brokers definem a
política "realista" que gera as referidas trocas de dinheiro, clientela,
sufrágios eleitorais (Della Porta, D. e Mény, Démocratie et Corruption
en Europe, 1995).
No Antigo Regime o rei distribuía favores aos nobres e clérigos para
manter o trono. Na época já existiam os "padrinhos", os clientes e os
brokers, que abriam a via para os cargos e dinheiros públicos. As
revoluções modernas instauraram o regime parlamentar. Nele
desapareceriam os benefícios do monarca. Pobre ilusão, pois os
parlamentos reforçam "as técnicas do favor e, com elas, o apadrinhamento
e a clientela também se modernizaram. Nem a politização, nem a
burocratização acabam com elas"(F. Monier, Patronage et Corruption
Politiques dans l'Europe Contemporaine, 2012). Os elos entre as formas
privadas (e públicas) para o enriquecimento de políticos e líderes
econômicos foram instaurados na própria gênese do Estado parlamentar.
As empresas dependiam do quadro normativo e fiscal do Estado, concessões
e contratos governamentais iniciam sua era dourada. E os políticos
passam a precisar dos empresários para seus assuntos eleitorais. Ambos
buscavam informações para suas estratégias específicas. Na Inglaterra
uma "private law" da House of Commons devia ser votada sempre que
iniciativas no campo ferroviário eram empreendidas. O lobby tem papel
relevante. Desde 1830 os empresários do ramo se introduzem no
Parlamento, em 1860 eles já eram 200. Ali uniam o papel de
representantes de empresas e do eleitorado. Surgem os agentes
parlamentares e o lobby profissional. Tais agentes operam com
parlamentares, intermedeiam o trato entre firmas, governo, deputados. Em
1867 aparecem as United Railway Companies e várias associações visando
ao lobby. Elas controlam o Board of Trade, aprovam ou impedem leis entre
1870 e 1880. Na França ocorre algo similar. Desde 1870 os deputados
pertencentes à centro-direita ocupam 50 cargos administrativos em grande
empresas do país: finanças, ferrovias, mineração, indústria pesada,
comércio, seguros (J. I. Engels, in Patronage et Corruption, citado
acima). Só no século 20 começa, na Europa e nos EUA, o controle efetivo
dos tratos entre empresas privadas e governos.
O que ocorre no Brasil, portanto, deve ser visto em perspectiva
temporal: aqui ainda se pratica a simbiose de empresários e políticos
com vista a levar recursos públicos para os cofres das firmas privadas e
para os partidos que assumem nas administrações e nos parlamentos
(municipais, regionais, nacional) a função de lobistas, truque que tem o
nome de "bancada X ou Y" do Congresso. Financiamento público de
campanhas políticas sem regulamentar o lobby e impedir que líderes
operem como brokers nos três Poderes é mover o sorvedouro orçamentário
de uma fonte para colocá-lo em outra, menos visível, mais tirânica.
*Roberto Romano é professor da Unicamp e autor de 'O Caldeirão de Medeia' (Perspectiva)