domingo, 16 de janeiro de 2011

A Folha, conhecida dona baratona, morde a assopra. Não existe intelectual crítico no PT, porque o PT sempre proibiu atividade livre do pensamento.

São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 2011



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POLÍTICA

Os livros leem Lula

Falta a narrativa independente do lulo-petismo

RESUMO
Lançados em profusão nos últimos meses, livros procuram fazer um balanço supostamente crítico dos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, mas ora pecam pelo adesismo e pelo tom laudatório, ora por um oposicionismo exacerbado, que impede uma avaliação equilibrada da sociedade brasileira durante o período.

CLÓVIS ROSSI

EM ENTREVISTA DE INTELECTUAIS do PT com a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, o historiador Marco Aurélio Garcia fez uma pergunta precedida do seguinte preâmbulo:
"Nós tivemos, na história da República, três grandes momentos de mudança: os anos 1930, o final dos 1950 e o começo dos 1960 e agora [o período Lula]. É interessante observar que, nas duas primeiras conjunturas, houve grandes movimentos de reflexão sobre o país. Caio Prado, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque são figuras emblemáticas daqueles anos. Grandes expressões culturais, como Villa-Lobos, e mesmo o surgimento da arquitetura brasileira marcam aquele momento".
"Na virada dos 50 para os 60", prosseguiu Garcia, "temos o Raymundo Faoro, o Celso Furtado, o Iseb [Instituto Superior de Estudos Brasileiros], a sociologia paulista e, do ponto de vista cultural, o cinema novo, a bossa nova, a pintura e as artes visuais. No momento atual, porém, vive-se um retraimento do pensamento crítico."

SUBINTELECTUALIDADE É claro que, para um historiador de esquerda, ainda por cima membro do governo Lula -como assessor diplomático do presidente, função que manterá no próximo governo-, Marco Aurélio culpa pelo "retraimento do pensamento crítico" apenas "uma subintelectualidade de direita, de muito baixa qualidade". A entrevista com Dilma faz parte de "Brasil, Entre o Passado e o Futuro" [Fundação Perseu Abramo, 200 págs., R$ 35], um dos muitos livros de balanço dos anos Lula recém-editados pela Fundação Perseu Abramo, o centro de estudos do PT.
Se tivesse estendido também à parte da esquerda que se manteve fiel ao PT o seu lamento pelo "retraimento do pensamento crítico", Garcia teria acertado em cheio. É quase impossível encontrar na profusão de livros sobre Luiz Inácio Lula da Silva e/ou sobre seus oito anos de governo uma narrativa que não seja nem a propaganda descarada daqueles que a direita chamaria de "subintelectuais de esquerda" nem a raiva incontida dos oposicionistas ao presidente e a seu partido.
É possível que a lacuna se explique pela falta, como é óbvio, do distanciamento que só o tempo permite para que se faça um balanço mais objetivo dos anos Lula, tão objetivo quanto possível num território tão carregado de emoções como a política.

ESPÍRITO CRÍTICO Mas falta, principalmente, o espírito crítico que deveria ser a característica essencial do intelectual. Não a crítica para destruir um governo que, a todas as luzes, teve bom desempenho, a ponto de terminar com aprovação de 83% do eleitorado. Falta é a crítica que ilumine o que saiu errado, as lacunas deixadas, os desafios que foram pouco ou nada enfrentados -e assim por diante.
Talvez o exemplo mais eloquente da lacuna no espírito crítico da intelectualidade petista se dê no tratamento da queda da desigualdade, uma lenda, pura lenda.
Para entender por que é lenda, basta ler artigo de Marcio Pochmann, hoje presidente do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), escrito quando ainda era professor da Unicamp e não membro do governo. Publicado no jornal "Valor Econômico", em 12 de julho de 2007, isto é, já no segundo mandato de Lula, o artigo de Pochmann fazia uma perfeita análise do fenômeno da redistribuição de renda.
Assim: a melhora na redistribuição "parece estar, todavia, circunscrita ao fenômeno da redistribuição fundamentalmente intersalarial". Ou seja, reduzia-se a diferença entre os assalariados, mas não se tocava na verdadeira obscenidade que é a diferença de renda entre o capital e o trabalho.
Dizia Pochmann: "A parte da renda do conjunto dos verdadeiramente ricos afasta-se cada vez mais da condição do trabalho, para aliar-se a outras modalidades de renda, como aquelas provenientes da posse da propriedade (terra, ações, títulos financeiros, entre outras)".
Continuava: "De fato, verifica-se que, em 2005, a participação do rendimento do trabalho na renda nacional foi de 39,1%, enquanto em 1980 era de 50%. Noutras palavras, a renda dos proprietários (juros, lucros, aluguéis de imóveis) cresceu mais rapidamente que a variação da renda nacional e, por consequência, do próprio rendimento do trabalho".
De 2005 em diante, a situação não mudou, até porque o capital continuou sendo contemplado, do primeiro ao último ano de governo de Lula, com os mais altos juros do mundo.

LOUVAÇÃO Se a situação não mudou, Pochmann mudou ao ser alçado a um posto importante no governo. Em um dos muitos livros que a Fundação Perseu Abramo editou para comemorar os anos Lula, o economista gastou 102 páginas para exercer impiedoso espírito crítico sobre gestões anteriores e inoxidável louvação ao governo de que faz parte.
O livro chama-se "Desenvolvimento, Trabalho e Renda no Brasil - Avanços Recentes no Emprego e na Distribuição dos Rendimentos" [Fundação Perseu Abramo, 102 págs., R$ 10], mas, apesar de título e subtítulo, omite escandalosamente a diferenciação que Pochmann fazia quando não era do governo. Não diz em momento algum que "a renda dos proprietários (juros, lucros, aluguéis de imóveis)" continuou crescendo mais rapidamente do que o rendimento do trabalho.
Essa característica de propaganda despudorada impregna todos os oito livros editados em duas coleções da Fundação Perseu Abramo, "Brasil em Debate" e "2003/2010 - O Brasil em Transformação" .
Os livros de ambas as coleções seriam perfeitamente substituídos, com vantagem para o leitor, pelos calhamaços (mais de 2 mil páginas) que Lula registrou em cartório como feitos de seu governo. Pelo menos, o leitor fica avisado de antemão que é a história oficial acrítica, não uma suposta análise dos anos Lula.
Nessa historiografia oficial, corre solto o culto à personalidade, com momentos que seriam até ridículos, se houvesse senso do ridículo entre quem se dedica a esse tipo de culto.

GROTESCO O exemplo mais grotesco está numa legenda do livro "Lula, o Filho do Brasil", escrito por Denise Paraná e que serviu de base para cinebiografia de mesmo nome, que, como não poderia deixar de ser na era do culto à personalidade, representará o Brasil na disputa pelo Oscar de melhor filme estrangeiro.
O livro, em si, é até útil, porque mostra a vida de Lula e família antes de se tornar personagem frequente na mídia, a partir das greves promovidas pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. É claro que, como biografia autorizada, desenha um perfil extremamente favorável, inevitável nesse tipo de livro.
Mas, na seção "álbum de fotos", vem o escorregão: uma fotografia de 1974 mostra Lula oficializando em cartório seu casamento com Marisa Letícia. A legenda: "O sorriso feliz já indicava uma relação duradoura".
Como se o sorriso pertencesse a um visionário, o novo Messias, capaz de divisar o futuro.

EXACERBAÇÃO No lado contrário, o do espírito crítico exacerbado demais, uma obra também é eloquente a partir da capa. O livro do colunista do jornal "O Globo" Merval Pereira tampa o rosto do presidente com o carimbo do título, "O Lulismo no Poder", e do nome do autor.
Merval é quase sempre impiedoso. Raramente faz concessões às qualidades do governo e de seu chefe, o que acaba sendo um contraponto aos livros da intelectualidade petista. Mas tem o mérito de relembrar assuntos que o lulo-petismo cuida de jogar para baixo do tapete, como, por exemplo, o escândalo do mensalão.
"O Lulismo no Poder" [Record, 784 págs., R$ 79,90] repassa todos os principais momentos do período 2003/2010, até porque é a reprodução das colunas que o jornalista escreveu para "O Globo". Esse tipo de, digamos, "história não oficial" tem a vantagem de apresentar os fatos na temperatura ambiente de cada época.
O problema é que a história do lulismo não é linear. Ziguezagueia da esquerda para o centro, do centro para a direita e volta ao centro-esquerda, na crise mundial de 2008/2009.

ZIGUEZAGUE Esse ziguezague, ao menos no território da economia, é mais adequadamente capturado em "Os Anos Lula" [Garamond, 424 págs., R$ 35], editado pela Garamond, por iniciativa dos economistas do Rio Janeiro, reunidos no Conselho Regional de Economia, no Sindicato dos Economistas e no Centro de Estudos para o Desenvolvimento.
Este, sim, contém o espírito crítico reclamado por Marco Aurélio Garcia. Até no subtítulo, que é "Contribuições para um balanço crítico 2003/2010". São 25 autores, o que tem a vantagem do pluralismo e a desvantagem de uma certa dispersão de enfoques. Na apresentação, Paulo Passarinho, ex-presidente do Conselho Regional de Economia, enfatiza com precisão e firmeza o papel que os intelectuais deveriam desempenhar:
"Nossa pretensão foi procurar nos reportar ao que experimentamos ao longo desses quase oito anos de governo, dentro de uma visão crítica e independente e a partir de premissas políticas e proposições que sempre julgamos mais adequadas ao país, e das quais jamais abrimos mão".
Emenda: "Com isso, queremos também reafirmar que não compactuamos e não concordamos com qualquer tipo de silêncio [palavra grifada no original], ou perplexidade, ante os aparentes paradoxos que o mundo da política nos reserva. [...] Queremos explicitamente resistir às tentações de compatibilizar o necessário e permanente exercício da crítica às conveniências e interesses políticos de ocasião".
É uma bela definição, que permeia os diversos textos. É uma pena que o livro fique limitado à análise da economia dos anos Lula. Os acadêmicos brasileiros ficam devendo "uma visão crítica e independente" do conjunto da obra lulista.

Talvez o exemplo mais eloquente da lacuna no espírito crítico da intelectualidade petista se dê no tratamento da queda da desigualdade -uma lenda, pura lenda