sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A repressão polivalente.

MSG, Revista de Comunicação e Cultura (número 6, ano 1), especial sobre Sociedade Controlada, vários autores. Abaixo segue o artigo de Roberto Romano.


Discordo da noção essencial, posta para ser debatida neste número da Revista. Creio ser necessário, no caso, o recurso ao paradoxo. Explico : “para ten doxa” na lingua dos filósofos gregos significa “ir além da opinião comum”. No caso, ir adiante tem o sentido de recusar a lógica dos falantes. Foi assim que Rousseau, por exemplo, negou uma certeza comum no século 18. A tese enunciava que artes e técnicas marcariam o progresso geral do ser humano, incluindo a moralidade. Aconselhado por Diderot (preso em Vincennes por causa do ateísmo, evidente em sua Carta sobre os Cegos), o autor do Contrato Social redige um Discurso sobre as Ciências e as Artes que nega todo o otimismo das Luzes, quando se trata de unir progresso científico e artístico e melhoria ética. E pronto ! Rousseau ganha o concurso da Academia, recusa o consenso. Não espero prêmios por negar o pensamento que gerou a questão em pauta. Mas devo, por consciência ética, ir contra o panorama da sociedade atual, nela apresentado. Vivemos numa sociedade que recusa toda vida privada? Mas quando, Deus nosso, existiu tal vida, a não ser no curto tempo que vai do século 19 aos anos vinte do século 20?

Comecemos na Grécia, pátria da política e da ordem social vivida por nós. Platão e Aristóteles ficariam surpresos se lhes falássemos de “vida privada” como valor. No seu entender o modo de vida mais pobre e tacanho era no interior do “oikos”, casa onde reinava o macho ateniense. Aliás, a palavra “idiota”, hoje é mais apropriada aos militantes políticos conduzidos na coleira pelos seus donos (ops ! líderes...) e marqueteiros, designava em Atenas quem se isolava da política, não comparecia às Assembléias, desprezava a ordem pública. A própria Assembléia era constituída por indivíduos e grupos que buscavam desvelar os segredos íntimos da polis, processando judicialmente quem não aderia à ordem democrática. Outro ponto relevante: devemos aos gregos o imperativo jurídico de que a ninguém é lícito ignorar a lei. E qual a causa? A visibilidade de tudo o que diz respeito ao convívio público. Os termos da lei eram grafados em pedra, postos na praça pública em letras enormes. O peso do Estado era tamanho que especialistas em arqueologia do direito grego mostram os cidadãos incomodados por tamanha visibilidade, apagando os caracteres escritos nas pedras. Maldições dos governantes eram postas ao lado daqueles primitivos out doors oficiais. Mas não dava certo. Os mesmos pesquisadores mostram que, ao lado das maldições apagadas, existiam outras maldições para quem as apagara... Para manter a publicidade das leis, maldições, ameaças, força física e processos eram intentados contra os renitentes “idiotas”. A morte de Sócrates se deve, em grande parte, a tamanha bisbilhotice do Estado grego.

O modo de controlar a vida oficial (nela integrando o que sobrava de vida íntima) levou a uma ética democrática altamente policialesca, favorecendo a delação. Para nada dizer sobre institutos nefandos como o ostracismo, recordemos a peça de Sófocles (As Vespas) para perceber o quanto os juízes democráticos, tendo em vista ganhar algumas moedas a mais, criavam processos contra cidadãos inocentes, delatando-os aos tribunais. O nome, vespas, foi bem dado por Aristófanes porque o inchaço do corpo social era evidente, com tantas “contribuições ao bem público” via delação premiada. Mesmo depois de enterrado o poderio ateniense, o hábito de tudo vigiar na existência alheia se manteve incólume. Que tal abrir o tratado da maior autoridade ética grega, depois de Platão e de Aristóteles, autoridade que manteve seu posto oracular no helenismo, na Idade Média, no Renascimento e nas Luzes? Estou falando, claro, de Plutarco. Ele critica o vezo grego de tudo espionar e de tudo falar em dois tratados estratégicos. O primeiro é o De curiositate. Alí, o filósofo mostra todos os malefícios trazidos pelo hábito de inspecionar a casa alheia, bem como o de seguir as “novidades” surgidas na praça pública e Assembléias. O segundo é o De garrulitate, o uso excessivo da lingua para espalhar boatos e, assim, assumir o controle dos demais cidadãos. Vida privada na Grécia, a pátria do nosso Estado e de nossas instituições civis ? Nem pensar...

Vida privada na Idade Média? Nem para os servos e nem para os senhores. Os primeiros tinham suas donzelas usadas pelos segundos, e sua casa invadida quando bem aprouvesse aos aristocratas, ao rei, aos padres. Os nobres viviam em público, ostentando sua riqueza e poder contra ou em favor do rei. No Absolutismo, o próprio soberano vivia em palco aberto aos olhos cortesãos, incluindo o cumprimento de suas necessidades naturais diante do público. Vida privada? Basta ler Saint Simon, o cronista da corte, ou seguir a existência de Pompadour, ou Maria Antonieta... A primeira era chamada, pelos príncipes reais, de “mamãe puta” e tal era o juízo de toda a corte. A segunda, bem....não é preciso dizer o que passou no círculo mais próximo do poder e nos panfletos distribuídos entre a laia da Suburra. O ideal jacobino de transparência democrática herdou, modificando-as, as práticas de viver em público da Grécia, da nobreza medieval e absolutista. Só que agora “todos” viveriam sob o olhar de todos. E novamente recordo Rousseau, contrário a semelhante publicidade e adepto da vida retirada. No texto polêmico contra D´ Alembert, sobre o teatro, temos a condenação máxima do exibicionismo dos particulares e do voyeurismo oficial. Basta abrir a Carta sobre os Espetáculos para notar até onde vai a indignação rousseoísta contra a bisbilhotice. Em outros textos, o genebrino se insurge contra a vida nas cidades, onde ninguém pode ser alguém. Tal paradoxo, “alguém/ninguém”, sabemos, vem da Odisséia e se espraiou com as urbes renascentistas, criando a figura do “Herr Omnes”, o senhor todo mundo (caçoada comum em Lutero) e o termo Niemand que significa ao mesmo tempo alguém e ninguém. Sob os olhos do poder público não existiria, a partir do século 16, a distinção entre ser notável (nobre ou sacerdote) ou ser um João Ninguém. Todos deveriam se submeter ao mando principesco.

A própria Igreja deu idéias ao Estado no sentido de vigiar os cidadãos. Como ela saia da Reforma, precisava saber com quem contar entre os supostos fiéis. E também devia conhecer as riquezas e comportamento das famílias. São Carlos Borromeu imaginou o “Livro do Estado das Almas”. Os padres preenchiam formulários sobre cada um dos lares, assinalando os nomes de todos os integrantes. Para a família da Silva existia uma ficha com o nome do Chefe, de sua esposa, filhos, etc. Após o nome, espaços vazios onde o padre deveria responder se Pedro Silva (ou qualquer membro familiar) bebia, comia muito, era dissoluto nos costumes, brigava, sabia ler, o quanto ganhava, de quanto dispunha, etc. A ficha, depois de preenchida era cruzada com as demais na paróquia. Desta última, o trabalho ia ao âmbito das dioceses e seguia para Roma. Assim, a Igreja tinha um retrato “interno” dos focos familiares, conhecendo praticamente tudo sobre eles. Outras perguntas: Pedro da Silva freqüentava prostitutas, ateus, agnósticos, protestantes ? O formulário era completo mesmo. Como dizem os especialistas em informática, só faltava o computador, que o resto estava pronto na vigia dos governados. (Cf.François Dagognet : Philosophie de l ´Image)



Athanasius Kircher, jesuíta importante da época, idealizou modos de controle dos cinco sentidos humanos, dos ouvidos aos olhos, deles ao tato, etc. Veja-se a seguinte gravura sobre o ouvido do poder, mas que se completa, na coleção de Kircher, com os olhos e todos os sentidos movidos pelos donos do mando, político ou religioso.

Athanasius Kircher

Quem segue o texto de Alexis Tocqueville (A democracia na América) sabe muito bem que o público invade o âmbito privado de maneira inexorável. O ideal de uma vida privada, distinta do Estado e da existência pública se define na tênue camada cujo nome genérico é “burguesia”, a partir do século 19. Como disse, a distinção entre público e privado vigora na Europa e nos EUA (quem imaginaria que os povos colonizados sob o tacão europeu tinham vida íntima ?) em curto tempo. Já com os regimes totalitários, nazifascista e comunista, some a referida distinção. Entre os múltiplos elementos, para além do fenômeno totalitário mas a ele conexo, recordemos o macartismo. Quem, na América, poderia aspirar a uma vida privada, quando os espiões do senador dedo duro sentavam em todas as repartições, quartos, embaixo de todas as camas ? Voltando um pouco ao passado: quem não se lembra do romance O Vermelho e o Negro onde se mostra, com toda a impiedade, a espionagem em nome do Estado napoleônico? Erich Auerbach (no monumental Mimesis) evidencia o desconforto dos submetidos à ditadura do Corso.

Um livro infelizmente pouco divulgado no Brasil é o escrito por Richard Sennet, The Fall of Public Man (traduzido pela Companhia das Letras sob o título de O Declínio do Homem Público). Alí fica bem clara a tendência de vigiar que se instala nas modernas urbes. E quando o indivíduo foge do olhar público (algo que piora nas pequenas cidades, onde absolutamente tudo é vigiado pelos cidadãos, num modo de controle tremendo, leia-se o o Ethan Frome, de Edith Wharton) ele, mostra Sennet, tomba sob a vista, os ouvidos, o tato e tudo o mais dos “movimentos” a que deve pertencer e a quem deve sua “identidade”. É o que se passa com os gays, encurralados pelo seu movimento e jungidos a preservar uma “identidade” comprando em lojas específicas, morando em bairros idem, etc. Não é por acaso que um dos maiores gênios do século 20, Jean Paul Sartre, escreveu peça terrível sobre o “convívio” humano. Alí, ele diz com clareza e distinção cartesianas : “somos os carrascos un dos outros” e “l ´enfer c´est les autres”.

Logo, quando discordo do diagnóstico da Revista, eu o faço com base em milênios de vigilância das pessoas pelos mais diversos poderes, políticos, religiosos, sociais. O desejo de mando, de fazer o mal, as famosas “paixões” segundo os filósofos, todas as formas de controle, são co-essenciais ao ente humano. O que se fez, sobretudo depois da revolução informática do século 20, foi aplicar novos recursos para vigiar e punir. É por semelhantes razões que penso, sem muitas surpresas, ser o fascismo algo mais profundo do que os movimentos que receberam tal nome. Ele se enraíza fundo na alma dos homens, sua herança é repartida pelas polícias, escritórios burocráticos, Bancos Centrais, e outros modos de controlar o rebanho humano. Futuro? Quem assistiu “Laranja Mecânica” sabe muito bem o que nos espera. Lutar contra este vórtice que devora todas as ilusões ? Tarefa de Quixote e dos que pertencem aos “few ... happy few ... band of brothers”. O resto é silêncio.