Falta de civilidade atrapalha autoridades e prejudica o patrimônio público. Em Porto Alegre, deverá ser lançada nas próximas semanas uma campanha destinada a combater a má-educação urbana. Marcelo Gonzatto, ZERO HORA, Geral | 18/01/2011 | 03h49min
Em um ano, a Brigada Militar recebe mais de 300 mil trotes no Estado. Todos os meses, 6,6 mil orelhões são danificados. Diariamente, mais de 400 motoristas são multados por estacionar o carro em local proibido.
Os números escancaram como a falta de civilidade conturba a vida de gaúchos e brasileiros, desafiando sociedade e autoridades a encontrar soluções. Em Porto Alegre, deverá ser lançada nas próximas semanas uma campanha destinada a combater a má-educação urbana.
Na semana passada, a pichação da chaminé da Usina do Gasômetro – um dos cartões-postais da Capital – se transformou em mais uma evidência da falta de cuidado da população com o patrimônio público. No mesmo dia, nove toneladas de lixo foram retiradas do Delta do Jacuí, e ladrões furtaram parafusos da canalização do Conduto Álvaro Chaves. Consultas a órgãos públicos e empresas privadas, porém, mostram que o impacto das más ações é bem mais amplo.
Embora não exista uma contabilidade global dos prejuízos financeiros e morais provocados pela incivilidade, é fácil perceber o custo social gerado pelo registro de 37 trotes a cada hora para o telefone de emergência da Brigada Militar – que muitas vezes resulta na mobilização inútil de homens e viaturas, além de ocupar linhas telefônicas prioritárias. Para a historiadora e cientista política da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) Ana Simão, a origem de comportamentos como esse está na relação do cidadão comum com o Estado.
— A sociedade não percebe o que é público como seu. O resultado disso é a necessidade de que o Estado esteja presente em tudo o tempo inteiro — avalia, lembrando que o perfil patrimonialista do Estado brasileiro reforça esse sentimento.
Educação ajuda a mudar quadro
Ana aponta que podem ser detectados avanços pontuais, como em relação à conscientização ambiental, mas ainda insuficientes para mudar o retrato desolador da vida em comunidade. O sociólogo e doutor em Planejamento Urbano Eber Marzulo, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aposta no avanço da escolarização para estimular o apreço pelos bens comuns:
– Um maior tempo de escolaridade leva a um maior controle do significado simbólico de respeito ao patrimônio público, histórico e cultural.
Marzulo também cobra uma maior capacidade de informação e fiscalização por parte do poder público. A prefeitura da Capital anunciou, para o final de fevereiro, o lançamento de uma campanha destinada a educar a população para uma melhor convivência citadina – ainda marcada por pichações de prédios públicos e privados, desrespeito ao trânsito, conflitos pessoais e outras chagas do mundo urbano.
O professor de Ética e Filosofia Política da Unicamp Roberto Romano é cético em relação à capacidade de qualquer ação de curto prazo modificar hábitos nocivos cultivados desde a explosão das áreas urbanas, na década de 50.
– Estamos em um processo civilizatório que deverá levar algum tempo – acredita o especialista (leia entrevista na página ao lado).
Eber Marzulo, porém, acredita que há uma disposição favorável em boa parte da sociedade gaúcha e brasileira a se adaptar a normas de convívio.
– Na Europa, sabem que se não seguirem as regras serão punidos. Aqui, onde a perspectiva de punição é muito menor, quem cumpre faz isso por solidariedade.
As razões - Confira algumas das hipóteses de especialistas para explicar as origens da falta de educação social dos brasileiros:
- Até os anos 50, preponderava no país a cultura interiorana nascida da tradição rural. As relações baseadas no conhecimento interpessoal e no respeito a autoridades, porém, entraram em colapso com a rápida urbanização – e ainda não foram substituídas por outro código de comportamento.
- Os brasileiros têm dificuldade de perceber os bens de uso público como seus, o que favorece o descuido e a depredação. Isso pode ser explicado pelo caráter patrimonialista do Estado, que enfraquece o controle social, e pela tendência da população de esperar soluções sempre dos governantes.
- No Brasil, uma frase comum é “você sabe com quem está falando?”, denotando prepotência associada a poder econômico ou político. Em países desenvolvidos, é mais comum a frase “quem você pensa que é para falar assim?”, indicando maior consciência sobre deveres e direitos iguais.
A MÁ EDUCAÇÃO URBANA. “Nossa sociedade não respeita o que é público” - Roberto Romano, professor da Unicamp, professor de Filosofia e Ética Política na Unicamp, Roberto Romano acredita que o povo brasileiro ainda está aprendendo a viver em grandes sociedades urbanas. Enquanto isso não ocorre, segundo ele, persiste a falta de respeito com o patrimônio público e os demais cidadãos. Confira a entrevista concedida ontem, desde São Paulo, por telefone:
Zero Hora – Falta civilidade ao brasileiro?
Roberto Romano – Como em todas as relações sociais, há um movimento de imitação. Quando você tem um sistema político onde o recurso público é usado para fins privados, você tem uma sociedade onde o que é público não merece respeito. Pode estragar, quebrar. Nossa sociedade não tem o costume de respeitar o que é público e elege governantes que também não respeitam. É um espelhamento.
ZH – O cidadão não se sente responsável pelo espaço que é público?
Romano – Exatamente, é algo que não é assunto dele. É território de caça, de aventura. Não existe norma pública que seja respeitada, e o maior exemplo disso é o trânsito. Na faculdade de Sociologia, no primeiro ano aprendemos que existe uma coisa chamada expectativa de reciprocidade de comportamento. Se você entra numa rua, você espera que o outro venha pela mão dele. Mas isso não é visto em sua plenitude aqui no Brasil.
ZH – Essa falta de civilidade vem aumentando ou está diminuindo?
Romano – O fato é que ainda vivemos o rescaldo da urbanização no brasil. Nós tínhamos a cultura rural, ou de pequenas cidades, onde todos se conheciam e as relações eram mais pessoais. Havia relação de autoridade com os fazendeiros, com o padre, o juiz. Desde os anos 50, o Brasil entrou em uma onda rapidíssima de urbanização.
ZH – O senhor quer dizer que ainda não aprendemos a viver em cidades?
Romano – Exatamente. Saímos do sertão e não nos adaptamos ainda ao ritmo das grandes urbes. Somos manadas de pessoas que não têm padrões de comportamento coletivo. Na Europa, as cidades têm 2 mil anos. Os EUA também tiveram uma urbanização rápida, mas a nossa foi mais tardia. Tem pessoas que ocupam determinados status sociais, mas não sabem o que fazer com ele. Temos uma classe média violenta, que só conhece o poder do dinheiro ou da força física. Se tem um salário razoável, um carro importado, o resto não existe.
ZH – O senhor acredita ser possível um avanço em curto prazo?
Romano – Não. É um processo civilizatório, e ainda estamos vivendo as dores do parto de uma sociedade urbana. Vamos sentir essas dores enquanto não conseguirmos criar padrões de comportamento de massa civilizados.
Em um ano, a Brigada Militar recebe mais de 300 mil trotes no Estado. Todos os meses, 6,6 mil orelhões são danificados. Diariamente, mais de 400 motoristas são multados por estacionar o carro em local proibido.
Os números escancaram como a falta de civilidade conturba a vida de gaúchos e brasileiros, desafiando sociedade e autoridades a encontrar soluções. Em Porto Alegre, deverá ser lançada nas próximas semanas uma campanha destinada a combater a má-educação urbana.
Na semana passada, a pichação da chaminé da Usina do Gasômetro – um dos cartões-postais da Capital – se transformou em mais uma evidência da falta de cuidado da população com o patrimônio público. No mesmo dia, nove toneladas de lixo foram retiradas do Delta do Jacuí, e ladrões furtaram parafusos da canalização do Conduto Álvaro Chaves. Consultas a órgãos públicos e empresas privadas, porém, mostram que o impacto das más ações é bem mais amplo.
Embora não exista uma contabilidade global dos prejuízos financeiros e morais provocados pela incivilidade, é fácil perceber o custo social gerado pelo registro de 37 trotes a cada hora para o telefone de emergência da Brigada Militar – que muitas vezes resulta na mobilização inútil de homens e viaturas, além de ocupar linhas telefônicas prioritárias. Para a historiadora e cientista política da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) Ana Simão, a origem de comportamentos como esse está na relação do cidadão comum com o Estado.
— A sociedade não percebe o que é público como seu. O resultado disso é a necessidade de que o Estado esteja presente em tudo o tempo inteiro — avalia, lembrando que o perfil patrimonialista do Estado brasileiro reforça esse sentimento.
Educação ajuda a mudar quadro
Ana aponta que podem ser detectados avanços pontuais, como em relação à conscientização ambiental, mas ainda insuficientes para mudar o retrato desolador da vida em comunidade. O sociólogo e doutor em Planejamento Urbano Eber Marzulo, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aposta no avanço da escolarização para estimular o apreço pelos bens comuns:
– Um maior tempo de escolaridade leva a um maior controle do significado simbólico de respeito ao patrimônio público, histórico e cultural.
Marzulo também cobra uma maior capacidade de informação e fiscalização por parte do poder público. A prefeitura da Capital anunciou, para o final de fevereiro, o lançamento de uma campanha destinada a educar a população para uma melhor convivência citadina – ainda marcada por pichações de prédios públicos e privados, desrespeito ao trânsito, conflitos pessoais e outras chagas do mundo urbano.
O professor de Ética e Filosofia Política da Unicamp Roberto Romano é cético em relação à capacidade de qualquer ação de curto prazo modificar hábitos nocivos cultivados desde a explosão das áreas urbanas, na década de 50.
– Estamos em um processo civilizatório que deverá levar algum tempo – acredita o especialista (leia entrevista na página ao lado).
Eber Marzulo, porém, acredita que há uma disposição favorável em boa parte da sociedade gaúcha e brasileira a se adaptar a normas de convívio.
– Na Europa, sabem que se não seguirem as regras serão punidos. Aqui, onde a perspectiva de punição é muito menor, quem cumpre faz isso por solidariedade.
As razões - Confira algumas das hipóteses de especialistas para explicar as origens da falta de educação social dos brasileiros:
- Até os anos 50, preponderava no país a cultura interiorana nascida da tradição rural. As relações baseadas no conhecimento interpessoal e no respeito a autoridades, porém, entraram em colapso com a rápida urbanização – e ainda não foram substituídas por outro código de comportamento.
- Os brasileiros têm dificuldade de perceber os bens de uso público como seus, o que favorece o descuido e a depredação. Isso pode ser explicado pelo caráter patrimonialista do Estado, que enfraquece o controle social, e pela tendência da população de esperar soluções sempre dos governantes.
- No Brasil, uma frase comum é “você sabe com quem está falando?”, denotando prepotência associada a poder econômico ou político. Em países desenvolvidos, é mais comum a frase “quem você pensa que é para falar assim?”, indicando maior consciência sobre deveres e direitos iguais.
A MÁ EDUCAÇÃO URBANA. “Nossa sociedade não respeita o que é público” - Roberto Romano, professor da Unicamp, professor de Filosofia e Ética Política na Unicamp, Roberto Romano acredita que o povo brasileiro ainda está aprendendo a viver em grandes sociedades urbanas. Enquanto isso não ocorre, segundo ele, persiste a falta de respeito com o patrimônio público e os demais cidadãos. Confira a entrevista concedida ontem, desde São Paulo, por telefone:
Zero Hora – Falta civilidade ao brasileiro?
Roberto Romano – Como em todas as relações sociais, há um movimento de imitação. Quando você tem um sistema político onde o recurso público é usado para fins privados, você tem uma sociedade onde o que é público não merece respeito. Pode estragar, quebrar. Nossa sociedade não tem o costume de respeitar o que é público e elege governantes que também não respeitam. É um espelhamento.
ZH – O cidadão não se sente responsável pelo espaço que é público?
Romano – Exatamente, é algo que não é assunto dele. É território de caça, de aventura. Não existe norma pública que seja respeitada, e o maior exemplo disso é o trânsito. Na faculdade de Sociologia, no primeiro ano aprendemos que existe uma coisa chamada expectativa de reciprocidade de comportamento. Se você entra numa rua, você espera que o outro venha pela mão dele. Mas isso não é visto em sua plenitude aqui no Brasil.
ZH – Essa falta de civilidade vem aumentando ou está diminuindo?
Romano – O fato é que ainda vivemos o rescaldo da urbanização no brasil. Nós tínhamos a cultura rural, ou de pequenas cidades, onde todos se conheciam e as relações eram mais pessoais. Havia relação de autoridade com os fazendeiros, com o padre, o juiz. Desde os anos 50, o Brasil entrou em uma onda rapidíssima de urbanização.
ZH – O senhor quer dizer que ainda não aprendemos a viver em cidades?
Romano – Exatamente. Saímos do sertão e não nos adaptamos ainda ao ritmo das grandes urbes. Somos manadas de pessoas que não têm padrões de comportamento coletivo. Na Europa, as cidades têm 2 mil anos. Os EUA também tiveram uma urbanização rápida, mas a nossa foi mais tardia. Tem pessoas que ocupam determinados status sociais, mas não sabem o que fazer com ele. Temos uma classe média violenta, que só conhece o poder do dinheiro ou da força física. Se tem um salário razoável, um carro importado, o resto não existe.
ZH – O senhor acredita ser possível um avanço em curto prazo?
Romano – Não. É um processo civilizatório, e ainda estamos vivendo as dores do parto de uma sociedade urbana. Vamos sentir essas dores enquanto não conseguirmos criar padrões de comportamento de massa civilizados.