A aposta no Papa
Roberto Romano
Diz a lenda que Zeus, irritado com Prometeu, mandou uma caixa aos homens. Ela encerrava regalos
que escondiam desgraças e sofrimentos. No fundo veio a esperança, o ataque mais
pérfido dos seres divinos. No caso dos sucessivos
pontificados, a esperança trouxe amargas surpresas. Os católicos do século 19
queriam modernizar a Igreja, adaptando-a à democracia representativa. Eles sofreram
uma derrota tremenda. Quem analisa o livro escrito por Döllinger, traduzido por
Rui Barbosa, “O papa e o Concílio”, aquilata o quanto se perdeu na luta dos
liberais contra o Vaticano. Sem eles, o catolicismo germânico foi dominado
pelos conservadores. Teria sido mais difícil desarmar a sociedade se, em vez do
Centro reacionário, as massas católicas fossem lideradas pela formação liberal.
Com a ausência da última, a Concordata de Império entre Hitler e o Vaticano
permitiu liberdade maior ao nazismo. Quem duvida, leia o artigo 32 da
Concordata (20 de julho, 1933) onde se determina o esvaziamento partidário católico
em troca da “proteção” do pessoal eclesiástico pelos asseclas de Hitler.
Grandes
esperanças foram depositadas em Eugênio Pacelli. Embora a história de sua
atividade ainda seja controversa, podemos dizer que os anseios dos que não
desejavam o totalitarismo e queriam apoio da Santa Sé foram desatendidos. Morto
Pio 12, todos esperavam um papa de transição. João 23, conservador em matéria
religiosa, não prometia modificações eclesiásticas e sociais. Foram surpresas
no mundo, socialista e capitalista, as medidas anunciadas pelo ancião. Ele convoca
o Concilio Vaticano 2, um abalo revolucionário em todos os aspectos da vida
eclesial e redige duas Encíclicas inovadoras (a Mater et Magistra e a Pacem in
Terris), se aproxima dos judeus, incentiva mudanças nunca imaginadas no universo
católico. Sem as encíclicas mencionadas, jamais viria à luz o grande documento
da Igreja no século 20, a “Populorum Progresio” de Paulo 6, acoimada como “marxismo requentado” pelo Wall
Street Journal.
Morto
Paulo 6, as esperanças se voltam ao “papa sorriso”, João Paulo 1, o breve. A
eleição de João Paulo 2 trouxe muitas esperanças para a Igreja. Mas o seu
reinado longo, repressivo, censório, enrigeceu a hierarquia, desvalorizou os
fiéis na base eclesiástica, destruiu boa parte das conquistas trazidas pelo
Vaticano 2. Na hora em que o polonês sobe ao trono, a teologia da libertação
conhece o auge nas Américas. A Igreja
hierárquica, que abençoara as ditaduras sul americanas, enfrenta setores amplos
do clero e dos leigos que ansiam pela democracia. No caso brasileiro, em tempo
não muito distante, além de arregimentar massas contra o governo Goulart, a
CNBB desejou, em documento oficial, “leal colaboração”com os ditadores e
reconheceu a legitimidade “do novo regime institucionalizado em dezembro
último”. Sim, leitor, falamos do Ato Institucional número 5 que permitiu
dizimar opositores com torturas, exílios, ameaças de pena de morte. Alguns
integrantes do episcopado, minoria combativa liderada por Evaristo Arns,
Claudio Hummes, Helder Câmara, Tomás Balduíno, Pedro Casaldaliga, sofriam para
manter a dignidade eclesiástica. A maioria dos hierarcas preferiu a “leal
colaboração”com o regime tirânico.
As
bases da Igreja ensaiavam os passos da liberdade e os líderes entoavam o
cântico do servilismo, e assim teve inicio o reinado de João Paulo 2. Naquele momento
publiquei o livro “Brasil, Igreja contra Estado”. Nele, mostrava que as
esperanças dos progressistas no ocupante da Santa Sé eram infundadas. Recebi
críticas virulentas e, depois, um silêncio nada obsequioso dos interessados.
Estes acreditavam, acríticamente, que a própria Igreja se tornava socialista. A
ilusão foi desfeita pelo papa que ajudou a desmantelar a URSS. No Brasil e na
América do Sul ele censurou teólogos e filósofos, puniu e fechou seminários,
retirou poderes dos bispos que dele discordavam. É o que ocorreu na diocese de
São Paulo, esquartejada para diminuir a força de Dom Arns. No mesmo tempo em
que dizimava a teologia da libertação e seus militantes, o papa dava as mãos
para Ronald Reagan, abraçava Augusto Pinochet, calava diante da repressão no
continente. Ruiram as esperanças no socialismo eclesiástico.
É de
se esperar que a prudência aconselhe os responsáveis pela militância progressista
católica a não apostar imoderadamente alto no atual pontífice. Sua simpatia e
carisma, seu programa de luta pelos pobres e pela justiça, sua ampla cultura
teológica e humanística, seu passado jesuítico, tudo indica para um grande
pontificado. Mas nada sabemos, por
exemplo, sobre como serão as relações da Santa Sé com países como a Venezuela,
a Argentina, o Equador, o Brasil. É naqueles Estados que se concentra a
possível renascença da teologia da libertação. Também nada sabemos da forma
diplomática a ser dada aos tratos do Vaticano no Oriente Médio (além das
notícias que vazam sobre o tema), na África e na Ásia.
Se
João 23 e o Concílio foram comparados à Revolução francêsa (símile muito usado
no século anterior) e se João Paulo 2 representa o Termidor, é cedo para dizer
qual diretriz maior terá o pontificado de Francisco. Antes de festejar uma
ruptura revolucionária, vale a pena seguir os passos do Vaticano sob sua tutela.
Numa instituição complexa e planetária, o entusiasmo no dirigente deve ser
contido. Sinais, em qualquer plano, devem ser testados antes de expostos como
certezas. Na caixa de Pandora, a esperança irrefletida é sempre o mais cruel
dos castigos.