O que vemos nas ruas?
Que há insatisfação, isso é evidente. As agendas múltiplas captadas nas ruas podem ser agrupadas em críticas aos serviços públicos e à questão da representatividade política. Não há partidos ou a igreja por trás dos manifestantes, fato intrigante e novo no Brasil. Mas por que as ruas “explodiram” agora? “Você conhece em química o processo de saturação?”, responde com outra pergunta o professor de filosofia da Universidade de São Paulo (USP), José Arthur Giannotti. Em um copo de água, você adiciona seguidas doses de açúcar, que vai sendo diluído até o ponto de saturação, quando então esse material sólido começa a se depositar no fundo. “No caso da insatisfação política, ninguém consegue determinar o momento em que satura”, explica, ao lembrar que a questão do transporte e a polêmica em torno de um novo modelo de cobrança na tarifa já tinham derrubado um dos principais candidatos à Prefeitura de São Paulo, nas eleições do ano passado. “Os brasileiros enriqueceram e não mais aguentam os serviços de péssima qualidade que são oferecidos a eles.”
Docentes ouvidos utilizaram a palavra “inferno” para descrever a vida de quem, para trabalhar e estudar, precisa do transporte público – o estopim da crise. “A vida cotidiana é infernal. Quatro horas para uma pessoa que mora na periferia de São Paulo, pega trem, metro, um ônibus, ou mais, para ir e voltar, é tratado como gado. O transporte público brasileiro, relativamente, é um dos mais caros do mundo e, efetivamente, um dos mais precários”, afirma o sociólogo Ricardo Antunes, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, ao comparar a estrutura disponível na capital paulista e o serviço oferecido em outras capitais tão populosas quanto, como Londres e México, por exemplo.
E não é de hoje que o transporte público leva pessoas às ruas. No Rio de Janeiro, cerca de 5 mil pessoas, em uma cidade com então 192 mil habitantes, saíram de casa para protestar em 1879, contra o aumento de um vintém no valor da passagem. Na época, o bonde era um transporte de massa, que atendia cerca de 20 milhões de passageiro por ano. E essa nova taxa, segundo livros de história, era um recurso do Estado para socorrer a economia. “Ou seja, a história do transporte público em São Paulo, mas no Brasil de um modo geral, sempre foi caótica. Os governos, de um modo quase geral, nunca investiram corretamente, quando necessário, na melhoria da mobilidade urbana. Sempre disseram que não há recursos e investiram no transporte individual, isto é, dos ricos. A ideia de serviço público que o Estado deve aos cidadãos no Brasil não pega. Basta olhar a história do país e fazer um inventário destas explosões de protesto poderá perceber que a indignação contra a péssima qualidade do transporte público lidera de longe esse tipo de manifestação”, explica a socióloga Walquiria Gertrudes Domingues Leão Rêgo, professora do IFCH da Unicamp.
Em São Paulo, o epicentro da onda de protestos liderada pelo Movimento Passe Livre (MPL), que desde 2004 atua em diversas regiões do país sob a bandeira da redução de aumentos e da gratuidade das tarifas, uma pesquisa do Datafolha (18/06) mostrou que o 67% dos paulistanos, de maneira espontânea, reconheciam que os protestos estavam associados ao preço das passagens, mas para 38% deles, as marchas também protestavam contra a corrupção e contra os políticos (35%). As entrevistas, realizadas um dia depois do primeiro recorde de público na cidade, quando 65 mil pessoas saíram às ruas, mostraram ainda que a falta de prestígio dos três poderes da República era a maior em dez anos entre os paulistanos. No “ país do futebol”, 70% deles disseram ter interesse pelas manifestações e apenas 18%, pela Copa das Confederações.
“O que me chama a atenção é que, pela primeira vez, desde o final da ditadura, vejo populares na rua cobrando dos poderes estabelecidos, sobretudo do Executivo e do Legislativo, um maior respeito pelo bem público. É a primeira vez que vejo uma movimentação tão grande de massa sem uma direção direta de partidos políticos ou da igreja”, afirma o filósofo Roberto Romano, professor do IFCH da Unicamp, que analisa a questão dos protestos a partir de um recorte histórico brasileiro. “Tudo é feito no Brasil para valorizar os operadores do Estado, e essa é uma característica do absolutismo. Quem opera o Estado é superior ao cidadão comum. Quando você entra em qualquer prefeitura, você vê aquele cartaz grande dizendo: ‘desrespeito ao funcionário, tantos anos de cadeia’, mas não há nada do lado dizendo que desrespeito ao cidadão também pode dar cadeia.”
E a multiplicidade de pautas e demandas é uma característica dos movimentos de rua, e não uma anomalia excepcional no cenário brasileiro. “As mobilizações amplas de rua fazem isso. Elas levam as pessoas, mobilizam, fazem as pessoas prestarem mais atenção a determinados assuntos, mas a pauta fica desorganizada, porque não há um elemento político unificador. Partidos políticos fazem esse papel de articulação; no entanto, o descolamento das manifestações com relação aos partidos deve-se à percepção de que a ação política partidária é ineficaz, deficitária, descolada da agenda popular”, avalia a cientista política Rachel Meneguello, professora do IFCH e diretora do Centro de Estudos de Opinião Pública (CESOP) da Unicamp. Para ela, o Movimento Passe Livre exerceu um papel de agente catalisador das insatisfações acumuladas, que possibilitou a operacionalização da mobilização dos mais diversos tipos de movimentos, e o aproveitamento da repercussão dos protestos pela redução do preço da passagem do transporte na cidade de São Paulo.
Para o cientista político Luiz Werneck Vianna, pesquisador na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, o Brasil está diante de um movimento apartidário, mas que não é apolítico. “Boa parte dessas lideranças já identificadas está vinculada a universidades de elite, a setores da classe média, boa parte da classe média-alta. Este não é um movimento ‘espontâneo’, desinformado, ingênuo, do ponto de vista dos protagonistas que andaram tecendo esse processo”, analisa. Todas as pesquisas realizadas até agora mostram que a maioria dos participantes não tem partido. Militantes de esquerda, com bandeiras, chegaram a ser hostilizados e expulsos de protestos realizados nas ruas do país.
Ao comparar a juventude escolarizada que partiu para as ruas do Brasil, com outros movimentos recentes como o “Occupy” (EUA), que protesta contra a desigualdade econômica e social, e os “Indignados” (Espanha), todos com forte articulação pelas redes sociais, o sociólogo Marcelo Ridenti, professor do IFCH da Unicamp, destaca uma diferença essencial, o fato de os jovens brasileiros terem emprego. “No Brasil, é uma juventude de estudantes, muitos dos quais trabalham, e recém-formados que não encontram no trabalho a possibilidade de manter o padrão de vida familiar (no caso das classes médias estabelecidas), nem vislumbram a realização das promessas de ascensão social pelo estudo, no caso dos jovens com menos recursos”, afirma o pesquisador.
“A juventude atual assumiu o mesmo matiz da que lutou contra a ditadura: a esperança de mudanças”, avalia o economista Gustavo Zimmermann, professor do Instituto de Economia da Unicamp. “No entanto, diferentemente da geração anterior, a atual expressa profunda decepção com os partidos políticos e com os legislativos e executivos dos três níveis de governo, incapazes de dar respostas minimamente satisfatórias aos anseios da classe média. Esperanças e frustrações formaram o substrato das atuais manifestações”, avalia o docente.
A internet é tida hoje como um grande “motor” das manifestações, no passado organizadas de forma “artesanal” e trabalhosa. Tanto que 91% dos entrevistados em uma pesquisa realizada pelo Ibope, em oito capitais do país, disseram ter tomado conhecimento pela internet sobre as manifestações das quais participaram. “As formas tradicionais de manifestação estão sendo substituídas e a rede adquiriu uma dimensão, uma velocidade de propagação dos fatos, que funciona para a juventude e que surpreende”, avalia o professor do Instituto de Economia da Unicamp, José Dari Krein, pesquisador de relações do trabalho e sindicalismo.
“Do ponto de vista das formas de organização na base, o movimento atual é superior ao da minha época [‘Caras-Pintadas’]. Eles são muito mais democráticos. Na verdade, percebo na juventude que se apropria das informações por meio das redes sociais uma forte pulsão politizante. Em 1992, quando organizamos o movimento ‘Fora Collor’ existia uma pauta única, que era derrubar o presidente. Apesar das demandas comuns por transporte, educação e saúde, hoje em dia essa pauta se fragmentou. Isso tornou o movimentou atual mais imprevisível”, avalia o sociólogo Ruy Braga, que em 1992 durante o movimento “Fora Collor” na época era dirigente estudantil (DCA Unicamp) e, hoje, é professor da Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro “A Política do Precariado - do populismo à hegemonia Lulista”.
“A política brasileira entra em uma nova conjuntura. Aquela etapa marcada pela aposta do governo federal, enfim, das forças sociais e políticas que se aglutinaram em torno daquilo que genericamente podemos chamar de “lulismo”, e apostaram na desmobilização e na pacificação dos conflitos na sociedade brasileira nos últimos dez anos, essa aposta foi fundamentalmente perdida. O que está havendo hoje no país é uma retomada de uma tradição de mobilização e de luta, pela efetivação e pela ampliação dos direitos sociais.” (Alessandro Silva)
Na gênese das manifestações
As causas dos movimentos de rua são variadas, segundo professores ouvidos pelo Jornal da Unicamp
RICARDO ANTUNES (SOCIOLOGIA, UNICAMP) – “O que vemos nas ruas, hoje, é um movimento amplo, de massa, polissêmico e multiforme, diferente de outros. As manifestações fizeram ruir o mito do país da classe média, do Brasil onde tudo dá certo e onde o povo está feliz. Isso ocorreu pela confluência de alguns elementos importantes, como o esgotamento interno do nosso modo de vida vigente desde os anos 90. Além disso, há um descontentamento com as instituições de representação política. Nenhum órgão no Brasil, hoje, certamente, é tão impopular como o parlamento. Por quê? Porque há um fosso enorme entre o sentimento nas ruas e os procedimentos parlamentares. Em meio às manifestações, o parlamento aprovou, pela sua Comissão de Direitos Humanos, o projeto que ficou conhecido grotescamente como “cura gay”. Enquanto amplos setores mais esclarecidos sabem que a opção sexual não é doença, o parlamento toma essa medida.”
WALKIRIA LEÃO RÊGO (SOCIOLOGIA, UNICAMP) – “Quando as pessoas melhoram um pouquinho de renda, suas expectativas e demandas por cidadania e bem-estar também aumentam. É um sinal muito positivo, saudável. A miséria, como diria um grande pensador, não é a escola da razão. Por isto e muito mais as pessoas não aceitam continuar sendo insultadas, vilipendiadas, desrespeitadas cotidianamente. A explosão disto provém de um longo processo de frustrações e decepções que na explosão, como estamos vendo, mostram pautas muito heterogêneas. O precaríssimo e absurdo estado dos transportes públicos há tempos exige investimentos. Idosos, deficientes físicos, permanecem em pé sem ter lugar garantido para se sentarem dignamente. Imagine isso, anos a fio, diariamente. Agora, a solução não está na rejeição de partidos e muito menos da política, que são essenciais à democracia. Colocam a democracia brasileira em sério risco. Lutamos muito por ela. Temos mesmo que lutar por mudanças. Contudo, não sejamos ingênuos. Forças conservadoras e até fascitoides estão também metidas nesta explosão, querendo se apropriar dela para destruir a democracia.”
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI (FILOSOFIA, USP) – “Nós tivemos um ciclo importante que vem desde Fernando Henrique, passando por Lula, que trouxe certo bem-estar para uma população carente. Tivemos a inclusão, e isso é um mérito do Lula extraordinário, de quase 40 milhões de pessoas que vieram para o mercado e para a cena política. Mas ao chegarem, perceberam a insuficiência dos passos à frente. Em particular a violência do transporte público no país. As pessoas são “chicoteadas” para entrar no metrô. Ao mesmo tempo, o governo imagina que sairá do atoleiro econômico, no qual estamos metidos, aumentando o consumo, deixando o país se desindustrializar com crescimento da inflação. A cidade se tornou a evidência da má administração: incentiva-se a produção de carros que não podem andar nas ruas. ”
ROBERTO ROMANO (FILOSOFIA, UNICAMP) – “Historicamente, no Brasil, a propaganda tem sido utilizada para reduzir a participação das massas. Ela afasta os problemas reais da ordem social, econômica e tecnológica. No primeiro governo Lula, prometeu-se que 4% do PIB [Produto Interno Bruto] seria empregado em ciência e tecnologia, mas isso não se concretizou. Toda a propaganda é feita para criar uma ilusão e um medo perene. E a propaganda, é bom lembrar, é uma forma de intimidação: ‘se você não votar em mim, esse paraíso irá desaparecer.’ E por que os manifestantes perderam o medo? Pela realidade. Você é bombardeado pela propaganda desde 88. Olha atrás de um ônibus e vê: ‘dever do Estado e direito do cidadão’. Entra nele e tem três vezes mais do que a capacidade; você é empurrado, humilhado; paga uma tarifa muito cara; não tem o ônibus no horário. Depois de um tempo, você está extremamente cansado da realidade e a propaganda não dá conta disso.”
LUIZ WERNECK VIANNA (CIÊNCIA POLÍTICA, PUC-RJ) – “A política dos últimos anos é largamente responsável por essa situação. A política do chamado ‘presidencialismo de coalizão’, na forma degrada como o praticamos, aviltou os partidos, aviltou a representação, nesse toma-lá-dá- cá infernal. Isso extraiu a legitimidade, a aura dos partidos. Os movimentos sociais foram inteiramente cooptados e estão ausentes das ruas. A representação [no caso, os partidos] tentou chegar depois, com o movimento na rua. Este é um movimento de jovens, grande parte deles universitários, mas cadê a UNE [União Nacional dos Estudantes]? De um lado, a representação política foi degradada por esse toma-lá-dá-cá; de outro, a cooptação dos movimentos sociais fez com que essa juventude não encontrasse canais de expressão e ficasse processando a sua insatisfação em um lugar novo, nas redes sociais.”
MARCELO RIDENTI (SOCIOLOGIA, UNICAMP) – “Vejo uma juventude nova, escolarizada, que é resultado de anos de investimento social. No entanto, pelas estatísticas, 70% dos jovens de 18 a 24 anos não estão nas escolas. Os que estão nas ruas são, sobretudo, os 30% da juventude que estão na universidade, no ensino médio, ou recém-formados, a maioria dos quais trabalha. Bem ou mal, com todos os problemas, tem havido uma escolarização muito rápida. Hoje, existem quase 7 milhões de pessoas nas faculdades. Os antecedentes dessa situação estão relacionados com o aumento da escolarização, que, em termos percentuais, ainda é baixo, mas em números absolutos é alto. As manifestações revelam uma certa descrença nas instituições e a incapacidade dos mecanismos tradicionais para expressar essa nova juventude.”
RUY BRAGA (SOCIOLOGIA, USP) – “Temos um modelo de desenvolvimento que entrega para a juventude empregos formais, mas que paga pouco. Que garante muito gasto social, mas que, ao mesmo tempo, diminui investimentos em saúde e educação, que sucateia os serviços públicos. Um modelo que não distribui renda entre aqueles que vivem como trabalhadores assalariados. Percebe-se um relativo progresso, mas que se esgotou. Por outro lado, tenho um emprego, ele é formal, mas, ao mesmo tempo, paga mal e as condições de trabalho são péssimas; estou frequentemente assediado pela polícia nos bairros periféricos onde moro; esses bairros, por sua vez, são bairros horríveis; o transporte público é péssimo e caro; e efetivamente não tenho saúde e educação. Existem muitas razões para as mobilizações.”
GUSTAVO ZIMMERMANN (ECONOMIA, UNICAMP) – “Há uma crise do modelo de governança no Brasil, do modo de governar. Foi essa crise que levou ao apartidarismo prevalecente nas passeatas [identificado nas ruas, segundo pesquisas]. Precisamos reconhecer que os partidos foram incapazes de produzir respostas esperadas, mas o apolitismo é muito perigoso. As manifestações atingiram os níveis atuais por juntarem as insatisfações com os serviços públicos urbanos, com a desilusão com os representantes políticos, as ameaças à estabilidade monetária e as incertezas do momento econômico. A gota d’água foi a correção das tarifas dos transportes urbanos. Ademais, há a revolta com os custos da Copa do Mundo. Não se tem transporte urbano decente, mas o teremos para os estádios. Isso ofende o cidadão: ‘para fazer futebol aparece dinheiro, mas para atender o dia a dia, não’.”
JOSÉ DARI KREIN (ECONOMIA, UNICAMP) – “Houve uma perda de representatividade das instituições políticas e novas demandas de participação estão sendo colocadas. As manifestações expressam diferentes e até contraditórias aspirações de segmentos sociais que buscam protagonismo político, especialmente da juventude. As tensões sociais de diferentes ordens, que passam fundamentalmente pela qualidade de vida, dos serviços públicos e da inquietação da forma como ocorre o jogo político no país. Infelizmente, os partidos não conseguem conectar-se com amplos segmentos sociais e não expressam as tensões sociais, constituindo-se fundamentalmente em conglomerações voltadas para viabilizar seus projetos eleitorais. Em substituição as formas tradicionais, há novos instrumentos de manifestação das insatisfações, tais como nas redes sociais.”
RACHEL MENEGUELLO (CIÊNCIA POLÍTICA, UNICAMP) – “A não ser o Movimento Passe Livre, que coloca uma pauta muito clara e específica, é um movimento de múltiplos interesses. Não se observa nas ruas uma pauta unitária, uma agenda unificadora. Há uma insatisfação generalizada com questões da vida urbana e com o sistema representativo. Não entendo que esse movimento tenha uma pauta contrária à democracia. A questão do apartidarismo [defendida pela maioria dos participantes das manifestações] pode prejudicar a sequência da mobilização. Historicamente, grandes mobilizações de massa têm sequência em suas reivindicações porque partidos transformam isso em agenda a ser colocada ao poder público, de maneira organizada. Hoje, as coisas estão colocadas para o poder público de maneira fragmentada e direta, provavelmente traduzindo a natureza das atuais mobilizações.”
(Alessandro Silva)
Uma rápida pesquisa na internet revela que uma frase da história do país “ressuscitou” a partir de 17 de junho, quando houve o primeiro recorde simultâneo de manifestantes nas ruas. “A única coisa que mete medo em político é o povo na rua”, dizia o político Ulysses Guimarães (1916-1992), presidente da Assembleia Constituinte de 1987-1988. Dita no contexto daquele período, a frase tem sido usada por todo tipo de usuário na rede mundial de computadores. De fato, a última semana de acontecimentos no país demonstra bem os motivos da redescoberta dessa máxima que pareceu “dormir” por décadas.
Ouvidos
pelo Jornal da Unicamp no decorrer dos desdobramentos recentes,
professores das áreas de sociologia, ciências sociais, filosofia e
economia, traçaram caminhos possíveis para as manifestações de rua: a
força dos protestos poderia acabar e resultar em desarticulação; ou a
agenda, de alguma forma, poderia ser absorvida pelo país. Até o momento,
este último parece ser o rumo tomado, para o futuro, pelas
manifestações que ocuparam ruas do Brasil.
“Nenhum
político sabe hoje o que vai acontecer com ele amanhã”, afirmou o
sociólogo Ricardo Antunes, professor da Unicamp. “Nada sabemos sobre o
futuro desses movimentos, pois estamos no calor dos acontecimentos, mas,
quaisquer que sejam suas consequências, o país não será mais o mesmo.
Saímos do cenário letárgico que nos encontrávamos. Os movimentos
existentes no mundo, todos eles, da Tunísia à Turquia, da Espanha aos
EUA, passando pela Grécia, Itália, Portugal, Reino Unido, demonstram que
começam a florescer e exercitar manifestações mais suscetíveis às ações
de massa, de grande envergadura, nas praças e ruas públicas; mais
plebiscitárias e menos institucionalmente representativas. Embora elas
tenham uma conformação frequentemente policlassista, seu centro, seu
eixo mais acentuado, se encontra nas forças populares. E, em grande
medida, expressam um profundo descontentamento com o modo de vida
destrutivo que hoje domina, no qual quase tudo se tornou mercadoria, da
saúde à educação, da política ou transporte.”
Para
entender o que já mudou, basta observar o noticiário dos dez dias
posteriores a 19 de junho, quando a Prefeitura e o Governo de São Paulo
reduziram o preço das passagens do transporte urbano, atendendo à
reivindicação que serviu como estopim para os protestos, sob a bandeira
do Movimento Passe Livre (catalisador das mobilizações que levaram
milhares de brasileiros às ruas). Desse anúncio em diante, 14 capitais
no total reduziram tarifas; o aumento do pedágio em 15 rodovias federais
foi suspenso, situação igual à das estradas estaduais de São Paulo; e o
preço da energia elétrica não subiu no Paraná, entre outras novidades,
para falar apenas das ações sob a competência do poder Executivo. No dia
26 de junho, a Prefeitura de São Paulo cancelou uma licitação de ônibus
estimada em R$ 46 bilhões em 15 anos.
“Num
quadro otimista, podemos pensar que os governos irão encampar demandas
de melhorias substanciais na saúde, na educação, no transporte, no gasto
público, com demandas que revertem efetivamente para a maior parte da
população”, disse o sociólogo Marcelo Ridenti, da Unicamp, ouvido logo
após a decisão sobre a passagem em São Paulo, e antes dos demais
desdobramentos citados, antevendo o que ocorreria, de fato, no país.
No
dia 24 de junho, a presidente Dilma Rousseff anunciou um pacote de
medidas, que chamou de “pactos em favor do Brasil”, propondo um
plebiscito (primeiro, sobre uma assembleia constituinte exclusiva;
depois, apenas sobre a reforma política), transformar a corrupção em
crime hediondo, investir mais na mobilidade urbana e na saúde (incluindo
a contratação de médicos estrangeiros), desonerar impostos do setor de
transportes públicos e destinar 100% dos royalties do petróleo do
pré-sal para a educação. O pacote incendiou o debate político.
“A
questão da mobilidade urbana entrou na agenda política como uma
importante questão de política pública”, avaliou o economista Gustavo
Zimmermann, da Unicamp. “A partir dessa nova agenda que na realidade é
mais ampla e inclui a implantação de um verdadeiro ‘Estado do Bem
Estar’, a profundidade das ações nestas áreas dependerá de um longo
aprendizado dos setores até hoje marginalizados e dos operadores do
Estado que muito raramente enfrentaram as questões de qualidade.”
Na
esfera do Legislativo, questões que se arrastavam há anos foram
resolvidas em dias. A proposta de emenda constitucional número 37,
apresentada em 2011 e que limitaria o poder de investigação do
Ministério Público, caso fosse aprovada, foi derrubada em 25 de junho
pelo placar de 430 (dos 513 deputados federais) a 9 – e dois destes
disseram que erraram ao votar. Quando ela chegou ao Congresso, no calor
dos acontecimentos do “Mensalão” e de outras investigações, a proposta
recebeu 207 assinaturas favoráveis e dependia de 308 votos para ser
aprovada. A bandeira da PEC-37 surgiu nas ruas, entre as diferentes
pautas lançadas. “Passamos por uma situação desfavorável de opressão e
pressão. Só que um vento divino mudou tudo. Na undécima hora, quando
tudo parecia perdido, o povo foi às ruas. Precisamos agradecer a
população”, disse o presidente da Associação Nacional dos Procuradores
da República, Alexandre Camanho, em entrevista ao jornal O Globo. Ao ser
questionado sobre o futuro do país depois das manifestações de junho, o
cientista político Luiz Werneck Vianna, da PUC-RJ, disse que a
mobilização popular deveria ser absorvida, assimilada, e não poderia ser
negada. “Tem que ser como na luta do judô, quando se usa a força do
adversário contra ele. É uma metáfora um pouco ruim, porque não é para
virar contra ele, mas para virar em favor de uma solução que traga toda
essa energia que as ruas manifestaram para o reforço da vida
institucional.”
Outro
projeto aprovado a reboque dos acontecimentos, após dois anos de
tramitação, muda o Código Penal e transforma em crime hediondo os
delitos de corrupção (ativa e passiva) e de concussão. Votado no Senado,
a alteração seguiu para votação na Câmara. Outra novidade, foi a
aprovação da aplicação de royalties do petróleo para a educação (75%) e
saúde (25%), além da desoneração de tributos incidentes sobre o
transporte público municipal.
“O
nível de mobilização, hoje, é excepcional. No entanto, ele será, num
futuro próximo, muito superior ao dos últimos dez anos. Pode ser que
haja uma acomodação, mas ela ocorrerá num patamar muito superior ao que
era”, avaliou o sociólogo Ruy Braga, da USP. Segundo o professor, as
redes sociais, em particular o Facebook, tornaram-se um meio para
expressar o aprendizado político dos setores mais jovens.
Coincidência
ou não, na esfera do Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF)
condenou (26/06) à prisão imediata o deputado federal Natan Donadon
(PMDB-RO) por desvios de recursos na Assembleia Legislativa de Rondônia
nos anos 90, na primeira decisão desse tipo desde o final do regime
militar. O parlamentar estava condenado desde 2010, pelo próprio STF, e
vinha recorrendo da decisão. Ele foi preso no dia 28 de junho.
Ao
falar sobre o futuro do país, o professor do Instituto de Economia da
Unicamp José Dari Krein elencou três questões que merecerão atenção do
setor público: melhorar os serviços públicos, realizar uma reforma
política para incorporar outras formas de organização e democratizar a
comunicação no país. “Somente 40% da população brasileira está conectada
na internet, o que também expressa, até o momento, um perfil dos que
estão nas ruas. A democratização da mídia e do acesso na internet ainda
não é uma realidade no país.”
No
contexto atual, o pior cenário imaginado pelo professor de filosofia
José Arthur Giannotti, da USP, seria o aparecimento de um “salvador da
pátria”. “Vivi a época de Jânio Quadros, a época Collor, estava sentindo
que estamos entrando em um impasse no qual aparece um ‘salvador da
pátria’, o que seria a pior solução possível”, disse. “Ao invés desse
desastre, creio que a melhor solução seria criar uma frente parlamentar
interpartidária com uma agenda precisa de reformas, sempre com apelo
popular.”
Diante de acontecimentos
tão inusitados e novos na cena política brasileira, e nas ruas, o
filósofo Roberto Romano, da Unicamp, propõe uma nova visão de pesquisa
para entender a mobilização. “Todos os conceitos que nós temos em termos
sociológicos, históricos, por exemplo, deveriam ser suspensos para que
pudéssemos realizar uma fenomenologia do que está acontecendo, uma
descrição, a mais exata possível, de todas as tendências, de todas as
reinvindicações, de todas as iniciativas que estão aparecendo, para que
possamos, daqui um tempo, ter condições de entender razoavelmente o que
está acontecendo”, afirmou. (Alessandro Silva)