‘OI’ NA TV
O Estado laico em xeque
Por Lilia Diniz em 26/07/2013 na edição 756
Na semana em que o papa Francisco chegou ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), o Observatório da Imprensa
exibido pela TV Brasil na terça-feira (23/7) discutiu a postura da
mídia brasileira diante do preceito do Estado laico, tema tratado no
programa em diversas ocasiões. Assegurada pela Constituição Federal, a
laicidade é posta em xeque diariamente: das cédulas de real, que
ostentam a frase “Deus é fiel”, ao crucifixo pendurado no plenário do
Supremo Tribunal Federal, passando pelos recentes projetos de “cura gay”
e “bolsa estupro”. Outra barreira à laicidade são os variados feriados
religiosos do calendário brasileiro. No Rio de Janeiro, sede da JMJ, a
prefeitura decretou dois dias de feriado integral e mais dois períodos
parciais. Realizado desde 1986, o encontro de jovens católicos espera
reunir, de acordo com estimativas dos organizadores, mais de 2 milhões
de peregrinos de todo o mundo.
Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o historiador Daniel
Aarão Reis. Professor titular de História Contemporânea do Departamento
de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Aarão pesquisa a
História das Esquerdas no Brasil. Em São Paulo participaram Jean Wyllys,
deputado federal (PSOL-RJ), e o filósofo Roberto Romano. Autor de três
livros, colunista da Carta Capital e do portal iGay, Jean
Wyllys participa de movimentos que combatem a homofobia, a intolerância e
o fundamentalismo religioso, entre outros temas. Roberto Romano é
graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e tem
doutorado na Escola de Altos Estudos de Paris. É professor titular da
Unicamp na área de Ética e Filosofia Política. Escreveu vários livros e
artigos sobre ética e teoria do Estado.
No editorial que abre o programa (ver íntegra abaixo), Dines
comentou que o Estado laico é “continuamente atravessado pela
transformação da nossa mídia eletrônica em púlpito religioso”. Dines
ressaltou que esse tema já foi tratado no programa por várias vezes:
“Nossa insistência justifica-se duplamente: se o Estado democrático de
direito é por obrigação isonômico, as concessões e a programação das
emissoras de rádio e televisão devem obedecer aos mesmos critérios
igualitários em matéria religiosa. Não é o que acontece”.
A reportagem exibida antes do debate no estúdio entrevistou Leonardo
Maciel, presidente da RioEventos, órgão da prefeitura carioca
encarregado dos preparativos da JMJ. Maciel explicou que o volume de
fiéis confirmados para o encontro justifica o feriado: “É o maior evento
que o país já recebeu. Não há na história do país um evento dessa
magnitude, com essa quantidade de turistas que vem ao Rio de Janeiro. É
impossível que um evento dessa magnitude, tal qual uma Olimpíada, chegar
a uma cidade sem que essa cidade se adapte a isso, então você tem que
tomar medidas para que [tudo] ocorra sem transtornos”. Maciel garantiu
que a prefeitura apoia grandes iniciativas, independentemente do caráter
religioso.
Romper a tradição
Para a professora de Filosofia da USP Roseli Fischmann, historicamente a
laicidade do Estado brasileiro nunca chegou a se concretizar. “No
Império era natural essa ligação íntima, uma ligação plena do Império e
da igreja católica. Dentro dos governos que são aristocráticos, então
isso se aplica. E, logicamente, quando se implanta a República, a
primeira coisa a ser negada é essa, porque a República traz essa certeza
de que todos somos livres e iguais. Esse é um ponto crucial. Se somos
iguais, não há espaço para essa diferenciação da aristocracia desde o
nascimento”, lembrou a professora. Para ela, a igreja católica continua
solicitando não direitos, mas privilégios ao Estado.
Roseli Fischmann destacou que o Estado é “de todos e de todas”, por
isso a laicidade é importante: “Aquilo que é colocado, não quer dizer
que se deva seguir. Nós vemos [isso], por exemplo, na discussão relativa
à homossexualidade, só para pegar um exemplo recente que causou muito
debate. [Aceitar] que exista esse reconhecimento da plena igualdade [não
significa estar] de acordo ou querendo para si. É importante entender
que a lei, por existir para todos e para todas, não se coloca como uma
coisa impositiva, ao contrário: ela continua mantendo a possibilidade de
escolha”.
O programa também entrevistou a professora Maria Clara Bingemer, do
departamento de Teologia da PUC-Rio. A estudiosa explicou que os
ocidentais, de maneira geral, estão marcados pelo cristianismo histórico
porque esta corrente configurou, não só a fé e a religião, como também a
cultura. “O comportamento dos cristãos sempre foi contra corrente. Acho
que, por isso também, os órgãos públicos e a mídia ficam muito em cima
da igreja, para ressaltar quando ela tropeça. E ela tropeça porque é
humana”, disse a professora.
Laicismo e democracia
No debate no estúdio, o professor Roberto Romano explicou que o termo “laico” tem origem na palavra grega laos,
que significa o povo, potência maior na democracia ateniense. Na Idade
Média, implantou-se a doutrina de que quanto mais perto de Deus, mais
alta a posição hierárquica na sociedade. “Embaixo de tudo estava o
leigo, o laos, que não tinha direito nenhum e não tinha condição de ser autônomo.
Essa doutrina que foi gerada no helenismo e na Idade Média veio até
hoje. Em muitos Estados você tem essa visão bastante deturpada do povo
como aquele que deve receber ordens e não tem dignidade. Isso quer dizer
o seguinte: laicismo significa exatamente o sinônimo de democracia”,
sintetizou Romano. Na ausência da laicidade, poderes “extra povo”
dominam a cena política.
Para o professor, existem formas avançadas de laicismo, como nos
Estados Unidos. Lá, igreja e Estado estão explicitamente separados,
embora tenham ocorrido tentativas, sobretudo nos governos Bush, de
“misturar as águas”. Roberto Romano ressaltou que um Estado laico
absoluto será sempre difícil porque há uma permeabilidade das religiões
na vida social e, por consequência, na estrutura do Estado. “Os
religiosos elegem seus representantes no Executivo e no Legislativo e,
portanto, procuram influenciar a vida política e estatal para as suas
visões”, disse o filósofo. Roberto Romano ressaltou que a igreja
católica, desde o século 19, se apresenta como uma conquistadora das
massas:
“Esse evento do Rio de Janeiro não é diferente: é colocar a massa na
rua para mostrar que a superioridade da igreja é inconteste em relação
do Estado. É bom lembrar que no século 19 a igreja tomou o costume de
dedicar países inteiros ao Sagrado Coração de Jesus, em expiação e
reconhecimento da sua soberania eclesiástica. O Sacre Coeur de Paris é
uma consagração da França pelos pecados da Comuna de Paris e da
Revolução Francesa. O Equador foi consagrado ao Sagrado Coração de Jesus
e o Cristo Redentor nada mais é do que isso. Se você olhar lá tem o
Sagrado Coração de Jesus”, citou Romano.
As massas tomam a rua
Na avaliação de Dines, os feriados determinados pela prefeitura do Rio
de Janeiro em razão da Jornada Mundial da Juventude acabam sendo um
privilégio para a igreja católica. Daniel Aarão ressaltou que durante a
instalação da República algumas lideranças, animadas pelos propósitos
positivistas, idealizaram uma República laica, mas as tradições se
mostraram mais fortes e acabaram predominando. A igreja católica
continuou influindo através de canais e ramificações e condicionando o
Estado na sua atuação. “Nesse megaevento do Rio de Janeiro eu acredito
que seja prudente decretar o feriado porque os transportes da cidade não
têm condições de [operar] em situação normal”, avaliou Aarão. O
historiador ressaltou que em outros feriados católicos, como o de Nossa
Senhora Aparecida, os não crentes e os ateus são obrigados a respeitar a
data.
Daniel Aarão vê com naturalidade os movimentos de massa das igrejas,
mas observou que as confissões não podem transformar os eventos um fator
para colonizar o Estado: “O princípio da laicidade do Estado, ao
contrário do que muitos religiosos entendem, não é um princípio
antirreligioso. É um princípio a-religioso. Ele quer fazer da religião
um assunto da esfera privada de cada um. Cada um pode ter a sua crença,
pode sse manifestar na rua, em casa, onde quiser. O problema é manter o
Estado neutro em relação às diversas confissões religiosas e também em
relação àqueles que não têm religião nenhuma”.
O deputado Jean Wyllys destacou que, em todo o mundo, Estados colocaram
o preceito da laicidade nas suas Constituições para poder impedir as
guerras religiosas e dar alguma neutralidade ao Estado frente às
diferentes crenças. De fato, a única Constituição radicalmente laica do
Brasil foi a de 1891, após a proclamação da República. “É a única que
não faz qualquer referência a Deus. De lá para cá a igreja católica
renovou seus signos de influenciar o Estado e a palavra Deus voltou ao
preâmbulo e a outras partes da Constituição. No Brasil, não só a igreja
católica tenta solapar essa laicidade que implicaria uma neutralidade do
Estado frente às crenças mas, recentemente, dos anos 1980 para cá, as
igrejas neopentecostais vem renovando os seus meios de influenciar o
Estado e de orientar as políticas públicas”, criticou o deputado.
Um Estado, muitas religiões
Na opinião de Wyllys, em um país com uma formação multicultural e
plurirreligiosa como o Brasil, é inconcebível deixar que correntes
religiosas majoritárias influenciem o Estado e suas políticas. Por outro
lado, não se pode negar a tradição dos santos católicos no cotidiano:
“Não quer dizer que no feriado de Nossa Senhora Aparecida todas as
pessoas se dirijam à basílica. Muito pelo contrário, elas vão para o
futebol, para a praia, elas aproveitam o feriado”. Para o deputado, não é
possível separar toda a identidade e a cultura brasileira da influência
das religiões, mas é preciso perseguir a laicidade em nome do Direito
de crer e de não crer dos indivíduos. Formado dentro dos preceitos do
catolicismo e admirador da arte sacra, o deputado diz que muito dos seus
valores vêm do cristianismo.
Dines ponderou que existe uma inegável herança da religião na cultura
brasileira, mas que as confissões devem se afastar do Estado. Um dos
exemplos desta proximidade é a presença do deputado Marcos Feliciano à
frente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Impregnado de
doutrinas religiosas radicais, o pastor enfrentou forte oposição e, no
entanto, permanece no cargo. Para o deputado Jean Wyllys, o fato é
inaceitável: “Eu acho inadmissível tanto que a igreja católica tente
influenciar as políticas de Estado quanto os neopentecostais, sobretudo
os fundamentalistas religiosos como o deputado-pastor Marcos Feliciano,
[queiram fazê-lo] sem considerar, por exemplo, o conhecimento, os
saberes dos povos, a própria ciência moderna. Ele desconsidera tudo isso
para fazer uma interpretação literal da Bíblia e tentar, a partir dela,
legislar para um povo que é plurirreligioso”, sublinhou o deputado.
Jean Wyllys lembrou que, interessados na capacidade de transformar
fiéis em eleitores, diversos partidos convidaram pastores carismáticos
para fazer parte de seus quadros e ressaltou que a consequência disso
para a laicidade do Estado é grave. “Esses pastores tomaram gosto pela
política e começaram a desenvolver uma fantasia totalitarista de que vão
transformar o Brasil em uma teocracia cristã. Isso é apavorante. Não é
uma teoria da conspiração minha. Eu tenho visto isso todos os dias nos
discursos feitos aqui”, disse o deputado. Para ele, a bancada
neopentecostal fere os princípios da Constituição ao trabalhar contra a
promoção do bem de todos, sem discriminação.
“Há deputados que subiram na tribuna da Câmara para dedicar o mandato a
Jesus, por incrível que pareça, e para dizer que ele vai conduzir o
mandato de acordo com o que está na Bíblia. Eu não tenho nada contra a
Bíblia, pelo contrário, é um livro maravilhoso do ponto de vista
literário e histórico, mas ele fundamenta a crença de um grupo de
pessoas. Pode ser o grupo majoritário, mas ainda é de um grupo de
pessoas”, afirmou o deputado. Para ele, é preciso defender as minorias
das paixões das maiorias.
Os púlpitos eletrônicos
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 694, exibido em 23/7/2013
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Esta edição foi gravada para ser exibida num dos feriados decretados
pela prefeitura do Rio de Janeiro, para facilitar a mobilidade das
legiões de jovens peregrinos de todas as partes do mundo que se reúnem
no Rio na 28º Jornada Mundial da Juventude que, como sempre, será
assistida pelo sumo pontífice.
É a primeira viagem ao exterior do primeiro papa nascido nas Américas, o
jesuíta argentino Francisco, eleito em março deste ano. As emocionadas
homenagens e as devoções produzidas por um evento religioso dessa
dimensão constituem uma oportunidade para mostrar ao mundo um Rio de
Janeiro diferente daquele que aparece durante o carnaval.
É também uma oportunidade para voltarmos a examinar, com a merecida
seriedade, a questão do Estado secular e laico, previsto em nossa
Constituição, e continuamente atravessado pela transformação da nossa
mídia eletrônica em púlpito religioso pelas confissões majoritárias:
católicos e evangélicos.
A nossa insistência justifica-se duplamente: se o Estado democrático de
direito é por obrigação isonômico, as concessões e a programação das
emissoras de rádio e televisão devem obedecer aos mesmos critérios
igualitários em matéria religiosa.
Não é o que acontece. Além disso, qualquer fissura no edifício
republicano – por mais insignificante que seja – tenderá a ser
continuamente ampliada.
É um risco que não vale a pena correr, sobretudo em momentos tão tensos como os que estamos vivendo.
Para avaliar e refletir sobre uma questão tão delicada e
transcendental, contamos com a colaboração do deputado federal Jean
Wyllys, do filósofo Roberto Romano e, aqui ao meu lado, do historiador
Daniel Aarão Reis.
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