15/07/2013
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03h30
Maria Sylvia Carvalho Franco: Armadilhas para Dilma
Os atuais movimentos de massa no Brasil não se devem apenas a recentes
demandas sociais, econômicas ou políticas. Essa atribuição toma o
resultado pela gênese dos eventos. Estes determinam-se no interior de um
arraigado sistema produzido em nossa história.
Destaca-se na origem da sociedade brasileira a exploração de riquezas
baseadas na escravidão moderna, instituição constitutiva do capitalismo,
articulada às mudanças socioeconômicas, inclusive o trabalho livre, em
curso na Europa. Não por acaso, J. Locke deu forma teórica às práticas
capitalistas, fundamentou o pensamento liberal e legitimou a escravidão
moderna, alicerçando-os no direito natural e individual à propriedade:
só o proprietário pertence ao gênero humano. Os sem posses convertem-se
em inferiores, justificando-se o seu jugo e a pena de morte para quem
atenta contra a propriedade, "ipso facto", contra a vida e a liberdade.
A violência do estado de natureza permeia a sociedade civil, garantindo
--pela recusa de sua humanidade-- a exploração do trabalhador livre e do
escravo. Na vertente moderna e cristã exposta por Locke, o escravo está
expulso do estado de natureza, segregado da religião, excluído da
sociedade civil.
Entre nós, esse elenco articulou-se ao absolutismo português gerando, em
nossa concretização do capitalismo, ampla rede de controle social
arbitrário e economia espoliativa. Por séculos, mudanças decisivas
ocorreram entre dominantes e dominados, mas subsiste a essência dessa
ordem: a produção de lucro. Distraída desse fato, Dilma caiu em ciladas,
algumas embutidas em sua própria ideologia.
A primeira delas foi acatar o esquema de poder construído por seu
antecessor, que esbanjou ardis retribuindo os provedores de suas
campanhas políticas e produziu, com astuciosa propaganda, o mito do
herói em um país próspero e venturoso. Com essa herança, Dilma caminhou
para o inferno ao cortar benesses. Perturbou o setor financeiro ao
baixar juros e introduzir impostos para o capital externo, provocando
fuga desses bens, elevação do câmbio, desequilíbrio no mercado.
Crente no "papel histórico da burguesia nacional", cortou impostos,
concedeu crédito copioso, subsidiou o consumo, supondo que os ganhos
acrescidos se transformariam em produtividade. E veio a desaceleração
industrial, o "pibinho", as aventuras com recursos do BNDES e a volumosa
remessa de lucros. Jogou com a inflação visando lastrear o
desenvolvimento, mas conseguiu carestia e queda no consumo, suposto
lastro para a ascensão social, produtor de nova classe média, na verdade
inexistente.
Classes não se formam com artifícios de propaganda e participação
rapsódica no mercado. Exemplar dessa falácia é o Minha Casa, Minha Vida.
O banco oficial não empresta os recursos iniciais para construção,
apenas ressarce o montante previamente aplicado pelo candidato, quantia
que lhe é impossível amealhar; as prestações excedem os bolsos da
família e é exorbitante o preço final do imóvel. Diante do impasse, o
bancário aconselha o cliente a procurar um construtor "acostumado a
trabalhar com a Caixa", vale dizer, com a empreiteira favorecida pelo
governo.
Dilma tropeçou no rijo sistema de privilégios e troca de favores. Nessa
faina, o empresariado conta com lobbies operando no Congresso,
influenciando os partidos oligarquizados e a burocracia estatal, com
apropriação privilegiada e uso irresponsável dos dinheiros públicos.
Contra esses interesses destrutivos da imensa riqueza nacional, ergue-se
a massa dela despojada. A revolta contra as tarifas de transporte não é
a gota d'água, o estopim que acendeu o povo, mas parte importante da
experiência diuturna de pessoas roubadas de seus direitos. Elas têm
consciência de que preços maiores visam favorecer os concessionários que
financiam eleições e ocupam cargos chaves na administração pública.
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Aqui, é nulo o perigo de populismo tarifário e é inválida a alegação de
que a estabilidade dos preços possa bloquear investimentos e, "ipso
facto", piorar o serviço. Esse automatismo não existe; o alvo é o lucro
fácil, isento de contrapartida.
O peso desse arcabouço torna irrisória a assertiva de que a atual
rebelião seria difusa, alheia a partidos, carente de alvos precisos.
Nebulosa apolítica, seria a expressão do fortalecimento ("empowerment")
do indivíduo, sujeito da consciência e dos atos sociais, gerado no bojo
da internet.
Trata-se de versão requentada da secular ideologia liberal, em que o
indivíduo é constitutivo do universo. O poder de seres isolados --hoje
como antes-- anula-se diante dos monopólios estatais da força física, da
norma jurídica e dos impostos. As massas assustam e um recurso para
aplacá-las seria dissolvê-las em seus átomos. Mais vale compreender o
sentido desses movimentos.
Eles não poderiam conjugar-se a partidos, por serem fonte da corrupção
que recusam; a liderança não poderia ser hierárquica, pois são contra a
oligarquização da política; suas demandas são exatas, referentes a
direitos que lhes são roubados e pelos quais pagam tributos; não querem
"mais", como reza a propaganda, querem o imprescindível. Nem são
amorfos: as redes sociais ensejam a organização dos grupos e atividades.
Como toda técnica, ela é meio para ações cujo sentido define-se por seus atores e por seus fins.
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO é professora titular aposentada de filosofia da USP e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)