terça-feira, 2 de julho de 2013
Wstawać.
Wstawać
do Blog A terceira noite, de Rui Bebiano, Portugal
Mais um post com algum tempo, neste caso quatro anos, que recupero do arquivo.
Primo Levi é figura nuclear da literatura testemunhal do Holocausto.
Nasceu em 1919 em Turim e parece ter-se suicidado em 1987 na mesma
cidade. Participou na resistência contra a ocupação nazi e a
República de Saló, acabando por ser preso por milícias fascistas e, após
ser descoberta a sua ascendência judia, enviado para o campo de
extermínio de Auschwitz. Sobreviveu apenas por uma conjugação de
acasos, um deles a condição de engenheiro químico que o tornou
momentaneamente útil para os seus carcereiros. Foi com base nessa
experiência-limite pessoal, e como expressão de um sentido «dever de
testemunho», que Levi escreveu o primeiro livro, Se Isto é um Homem,
com uma edição inicial de 1947 da qual – numa época em que grande parte
dos potenciais leitores preferia não encarar relatos desta natureza –
se venderam apenas 1.500 exemplares. Só em 1958 a editora Einaudi
publicaria uma edição revista e com tiragem condigna. É desta obra – uma
discrição objetiva, serena, contida, estranhamente desprovida de
amargura, do brutal dia-a-dia de um prisioneiro de Auschwitz que se esforça a cada minuto por não esquecer a sua humanidade – que se transcreve um fragmento.
Assim se arrastam as nossas noites. O sonho de Tântalo e o sonho do
conto inserem-se numa teia de imagens mais indistintas: o sofrimento do
dia, feito de fome, pancadas, frio, fadiga, medo e promiscuidade,
transforma-se de noite em pesadelos sem forma, de uma indescritível
violência, que na vida livre acontecem somente nas noites de febre.
Acorda-se a cada instante, gelado pelo terror, com um sobressalto de
todos os membros, sob a impressão de uma ordem gritada por uma voz cheia
de ira, numa língua incompreensível. A procissão do balde e o barulho
dos calcanhares nus na madeira do chão transformam-se numa outra
procissão simbólica: somos nós, cinzentos e idênticos, pequenos como
formigas e grandes até às estrelas, apinhados uns contra os outros,
espalhados por toda a planície até ao horizonte: às vezes fundidos numa
única substância, uma massa angustiante em que nos sentimos presos
em visco e sufocados; às vezes numa marcha circular, sem início nem fim,
com uma vertigem obcecante e um mar de enjoo que sobe dentro de nós do
peito até à garganta; até que a fome, ou o frio, ou a bexiga cheia
dirigem os sonhos para dentro dos esquemas habituais. Procuramos em
vão, quando o próprio pesadelo ou o desconforto nos acordam, distinguir
os elementos e empurrá-los separadamente para fora da área de atenção
atual, de forma a defender o sono da sua intrusão: mal os olhos voltem a
fechar-se, mais uma vez sentimos que o nosso cérebro se põe a trabalhar
independentemente da nossa vontade; bate e zumbe, incapaz de repousar,
fabrica fantasmas e sinais terríveis, e desenha-os e agita-os sem parar
num nevoeiro cinzento no écran dos sonhos.
Mas durante toda a noite, através de todas as alternâncias de sono, de
vigília e de pesadelo, vigiam a espera e o terror do momento de
despertar: graças à misteriosa faculdade que muitos conhecem, o homem é
capaz, mesmo sem relógios, de prever o momento exato com grande
aproximação. Na hora de despertar, que varia conforme a época do ano,
mas que surge sempre muito antes do amanhecer, toca demoradamente o sino
do campo, e é então, em todos as barracas, que o guarda da noite acaba o
seu turno: acende as luzes, levanta-se, espreguiça-se, c pronuncia a
condenação de todos os dias: – Aufstehen – ou mais frequentemente em polaco: – Wstawać.
Muito poucos esperam o Wstawać dormindo: é um momento de
sofrimento tão intenso, que até o sono mais profundo se dissolve ao seu
aproximar-se. O guarda da noite sabe-o, e é por isso que não o
pronuncia em tom de comando, mas com voz calma e baixa, como de quem
sabe que o anúncio encontrará todos os ouvidos preparados e será
escutado e cumprido.
A palavra estrangeira cai como uma pedra no fundo de todas as almas.
«Levantar-se»; a efémera barreira dos cobertores quentes, a leve couraça
do sono, a evasão noturna, apesar de atormentada, caem em pedaços à
nossa volta, e encontramo-nos acordados sem remissão, expostos à ofensa,
atrozmente nus e vulneráveis. Começa um dia como todos os dias, a tal
ponto longo que não se pode razoavelmente conceber o seu fim, de que nos
separam tanto frio, tanta fome, tanta fadiga; pelo que é melhor
concentrar a atenção e o desejo no pedaço de pão cinzento, que é
pequeno, mas dentro de uma hora será certamente nosso, e durará cinco
minutos, e, enquanto o não tivermos devorado, constituirá tudo o que a
lei daquele lugar nos permite possuir. Ao som de Wstawać recomeça a tempestade.
Primo Levi, fragmento de Se Isto é um Homem (Lisboa, Teorema, 2008; trad. de Simonetta Cabrita Neto).