quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Diário do Comércio, São Paulo

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Diário do Comércio – Qual o significado dos grupos anticorrupção surgidos na internet?

Roberto Romano – Eles significam as massas virtuais indignadas com as práticas contrárias ao bem coletivo e que servem como "detonadores" de massas físicas. No Brasil, o costume ainda é o de analisar manifestações pela dimensão física (grandes campanhas como a das Diretas, impedimento de Collor, etc). Os "detonadores" ainda não têm condições de reunir grandes multidões nas ruas. Mas o que os analistas não mostram é que tais grupos conseguem mover vastos setores da sociedade, tornando possíveis movimentos como o que gerou a Lei da Ficha Limpa e outras ações corretivas contra a corrupção. Eles ainda não juntam massas nos espaços físicos coletivos, mas veiculam informações antes inacessíveis aos pagantes de impostos. Não se deve ter esperança excessiva nos meios eletrônicos de comunicação. Mas eles auxiliam poderosamente os cidadãos que, é evidente, a cada momento se tornam mais rigorosos face aos desvios dos que operam o Estado nas três faces: Executivo, Legislativo e Judiciário. Até os anos 50 do século anterior, o Brasil era uma imensa faixa litorânea habitada, nada mais. Depois dos anos 60, cidades surgiram em todo o interior. Hoje, gradativamente, elas se unem devido à mídia, às empresas e sua presença em cidades do hinterland (região menos desenvolvida), às escolas e à internet. Apenas começam a surgir os frutos de semelhante conexão virtual. Ela trará muitas surpresas para os que julgam poder usar erradamente os recursos públicos sem vigilância.


DC – Esses grupos anticorrupção na web têm condições de evoluir? Representam uma nova forma de fazer política no País?

Romano – Como disse, eles ainda não mostraram toda a sua potencialidade, mas é apenas uma questão de tempo e de persistência. Os partidos políticos que ignorarem, ou pior, que desafiarem tais movimentos, insistindo em malversar as finanças públicas, terão muitas dificuldades em futuro próximo.


DC – Todos esses grupos se dizem apartidários. Explicitam que não confiam nos partidos políticos e nos parlamentares. O que explica a descrença nos partidos e nos políticos?
Romano – O que é um partido político? É um modelo ideal de Estado e sociedade. Um partido liberal defende liberdade dos indivíduos e grupos contra ingerências do poder público. Se um partido assim chega ao governo e ao Legislativo, ele tudo faz para moldar o Estado e a sociedade segundo seus ideais. Para ganhar eleições, ele promete agir segundo tais parâmetros, contra os partidos adversários que propõem outras formas organizativas do Estado e da sociedade. Ora, a maioria quase absoluta dos partidos políticos brasileiros desconsidera seus próprios programas, em proveito de alianças eleitorais oportunistas. E mostra, assim, que não confia em suas próprias palavras. Com tal fato, perde a fé pública, que é essencial para a obediência dos cidadãos e para a verdadeira governabilidade.

Quando partidos com programas liberais se unem a partidos contrários ao liberalismo, fica evidente a falta de confiança neles mesmos, por parte de seus dirigentes e militantes. Ora, se eles não acreditam no que propõem, por que os cidadãos alheios a eles deveriam acreditar?


DC – No Congresso, comissões discutem e elaboram propostas de reforma política. Representam uma reforma política ou apenas eleitoral?

Romano – A reforma política, tal como vem sendo tratada e assumida até hoje, não passa de um mito associado a muitos engodos. Pessoalmente, não acredito em reforma política que deixe intocado, dentro dos partidos, o poder de oligarcas que dominam a cena pública há décadas e décadas. Nossos partidos têm "donos". Enquanto suas estruturas não forem democratizadas (por exemplo, proibindo dirigentes de serem conduzidos aos cargos internos máximos mais do que duas vezes), não teremos verdadeira reforma política. Como todos os assuntos partidários são decididos por pequenos grupos que manipulam a máquina da agremiação, usam as finanças eleitorais para impor candidatos, alianças, etc., temos a famosa oligarquização dos partidos já descrita e prevista por Robert Michels nos começos do século 20. Eleições primárias para os candidatos partidários que postulam o Executivo ou o Legislativo não resolveriam as mazelas dos nossos partidos. Mas ajudariam muito como base de uma rigorosa e séria mudança política.


DC – O que é preciso mudar para que o País passe por uma reforma política?

Romano – Algo muito difícil de ser atingido – a federalização do Estado nacional. Hoje, todas as políticas públicas, as finanças, os impostos, sofrem o controle do poder central, na sua face Executiva. Enquanto governadores e prefeitos forem reféns do poder central e só conseguirem recursos se obedecerem sem oposição aos ocupantes do Palácio do Planalto, não teremos mudança alguma no "é dando que se recebe", a fonte das corrupções e dos abusos de poder em nosso País. Sem federalização efetiva, não existe reforma política digna desse nome. E sem reforma política, não teremos federalização de fato e de direito. Tal nó górdio exige estadistas dignos desse nome. Como os partidos atuais não renovam seus quadros dirigentes, mantendo a direção partidária nas mãos dos "donos de agremiação", a safra de estadistas é muito pobre, comprometendo o futuro de nossos filhos.


DC – Como uma reforma política poderia superar distorções do sistema político?

Romano – Se os partidos forem mais fiéis a seus programas, eles serão mais consequentes nas alianças, evitando a desculpa de, "por realismo", apoiarem notórios corruptos ou autoritários. Se os mesmos partidos realizarem primárias para escolha de seus candidatos, os aderentes em sua base darão mais de si para as eleições, para o controle dos gestores, etc. E serão atenuados truques como o caracterizado com o "é dando que se recebe". Se as direções partidárias forem renovadas a cada quatro anos, por exigência legal, será mais difícil manter alianças espúrias com a desculpa da "governabilidade". Saindo o poder das mãos dos "donos de partidos", os partidários da base serão mais ouvidos, inclusive com relação às suas reivindicações fundamentais, todas definidas nos municípios. Assim, o voto distrital será algo estratégico nessa mudança.


DC – Caso uma reforma política se concretize, quais tipos de corrupção habituais poderiam ser suprimidos?

Romano – Suprimidos, jamais, porque mesmo na Suécia existe corrupção política. Mas atenuados, sim. Diminuindo o poder dos oligarcas dentro dos partidos, diminui o poder das oligarquias regionais. A pauta nacional pode deixar, então, de ser decidida pelos oligarcas regionais com o Executivo Federal, para se voltar mais para os problemas dos estados e municípios, pois os impostos deixarão de ser, sobretudo, moeda de troca entre oligarcas e Presidência da República, retornando mais diretamente aos municípios. Diminuindo o número dos intermediários, é atenuada a corrupção.


DC – Os parlamentares estão interessados em concretizar uma reforma política? Por quê?

Romano – Não. Porque na sua maioria ou são donos de partidos ou a eles obedecem se quiserem ser eleitos ou reeleitos. E reforma política sob o tacão de oligarcas é apenas retórica, nada mais. Vejamos apenas uma lei, a que regulamenta os lobbies. Existem no Congresso vários projetos de lei naquele sentido. Nenhum deles é discutido e aprovado. A causa? É porque o Congresso inteiro é um lobby, controlado pelos oligarcas regionais. Não lhes interessa aprovar algo que retiraria de suas mãos um instrumento poderoso para chantagear o Executivo e para pressionar a iniciativa privada em momentos eleitorais. Em vez de lobistas profissionais e obrigados a se mover segundo bases legais, o setor da iniciativa privada é obrigado a aceitar a "mediação" de políticos, com evidentes conotações financeiras, para conseguir aprovar seus projetos, muitos deles relevantes para o País.


DC – Neste caso, como não estão interessados em reforma política, o que poderia levá-los a mudar de opinião e de atitude em relação ao assunto?

Romano – Apenas a pressão da cidadania, de trabalhadores aos empresários. E apenas a pressão da imprensa, do Ministério Público, da polícia, etc... E voltamos à sua primeira pergunta: as massas virtuais, da internet, podem servir como "detonadores" das mudanças almejadas por todos os pagadores de impostos do País.


DC – A eleição de uma Assembleia Constituinte, em 2014, poderia consolidar as reformas, em especial a política?

Romano – Considero a convocação de uma Assembleia Constituinte para realizar as reformas, entre elas a política, algo a ser visto com muita prudência. Em primeiro lugar, ela pode ter como resultado o equívoco fundamental da própria Constituição de 88. Naquele documento, não foi hegemônica a doutrina sobre o Estado de Direito e nem sua rival, a doutrina sobre o Estado Democrático de Direito. Assim, tamanha indecisão só poderia resultar no enorme número de emendas que hoje a tornam texto de árdua compreensão e exegese. Caso tal fato seja repetido na Constituinte proposta, podemos ter, em vez de uma reforma política eficaz para o Estado, mais um escrito a ser emendado de mil modos. Outra preocupação diz respeito à postura dos possíveis constituintes. Se sua maioria for autoritária, em doutrina e gestos, em vez de aprimorada, a democracia perderá em substância ética e jurídica. Se, apesar de tudo, a referida Constituinte for julgada necessária, é preciso que se evite, nela, o peso excessivo da ideologização partidária. Isso, no Brasil de hoje, é uma tarefa quase impossível. Precisamos, sim, transformar o mito da reforma política em realidade. Mas com o material humano, hoje imperante em nossa vida política, é missão para estadistas. E tais figuras rareiam, cada dia mais, em nossa terra. (Diário do Comércio/Guilherme Calderazzo, 31/10/11)