Recuos e indefinições marcam campanha de Marina Silva à Presidência Mudança no programa de governo para agradar a evangélicos, retirando tema sobre união homossexual, é apenas um dos pontos de incoerência na adaptação da candidata às novas alianças e à possibilidade de ir ao segundo turno
Paulo de Tarso Lyra - Correio Braziliense
Publicação: 01/09/2014 06:30 Atualização: 01/09/2014 08:14
Passadas duas semanas desde o início do
horário eleitoral e após o primeiro debate televisivo — o segundo será
na tarde de hoje —, os três principais presidenciáveis ainda
escorregam, em níveis variáveis, nos discursos e nas promessas feitas
aos eleitores nos campos econômico, político e social. Marina Silva
(PSB) é a que mais sofre para adequar o discurso. Caiu em contradição,
por exemplo, menos de 24 horas após lançar o programa de governo
socialista. Na sexta, ela anunciou políticas amplas para favorecer o
público homossexual. No dia seguinte, pressionada por lideranças
evangélicas, como o pastor Silas Malafaia, que bateu nela duramente,
recuou. E irritou os ativistas gays e os defensores da existência de um
Estado rigorosamente laico. Marina, na tentativa de contornar a
polêmica, disse que o texto lançado “não era o que havia sido acordado”
— a justificativa, além de não evitar o desgaste, expõe como a
trajetória dela na campanha eleitoral está recheada de idas, vindas,
recuos e adequações pontuais ou meramente eleitorais.
Roberto
Romano, professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade
de Campinas (Unicamp), analisa que a candidata socialista está
rearrumando o discurso em vários sentidos. Mas identifica uma
fragilidade maior: a necessidade de composição partidária num eventual
governo do PSB. “Eu espero que, se for eleita, ela consiga efetivar um
governo que não fique ilhado, como aconteceu com Jânio Quadros e
Fernando Collor de Mello”, comenta.
Leia mais notícias de Política
O
autor do livro Igreja contra Estado ressalta que Marina já está
tomando doses altíssimas de “uma bebida” chamada realismo. “Não dou
dois meses, num eventual governo dela, para ocorrer uma coalização e a
entrada de outras legendas, até mesmo as que ela combate”, afirmou. “A
fragilidade dela não tem relação com a questão religiosa, mas vem da
posição de uma candidata que, se eleita, precisará do apoio dos tucanos
e dos petistas para governar.”
Outras incoerências — ou
discrepâncias — que têm sido atribuídas à ex-seringueira de Xapuri
dizem respeito à adequação do discurso às circunstâncias. Marina foi
uma intransigente crítica da construção das usinas de Santo Antonio,
Jirau e Belo Monte — todas no Rio Madeira, em Rondônia. No entanto, o
tema quase que desapareceu das palestras oficiais de campanhas — nas
quais aborda, aliás, a necessidade de o Brasil “produzir mais energia”.
Também combateu a soja transgênica, mas o seu vice, o gaúcho Beto
Albuquerque, era ativo defensor, no Congresso, dos produtos
geneticamente modificados e até teve campanha financiada pelo
agronegócio.
Saiba mais...
Dilma defende geração de empregos nas indústrias naval e automobilística
Dilma critica propostas de criação de emprego de Marina Silva
Site da campanha da candidata Marina Silva sofre ataques virtuais
Candidato ao governo do Ceará se assume gay em propaganda eleitoral
Reta final de campanha pode enfraquecer esforço concentrado no Congresso
"Temos um problema grave: falta um projeto de nação", diz Dom Damasceno
Ao contrário dos principais rivais, Marina
não tem experiência administrativa — justamente o alvo das críticas de
petistas e de tucanos. “Por isso, ela opta por um viés político, de
motivação da sociedade”, disse a chefe do Departamento de Ciência
Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Helcimara
Teles.
Enquanto Marina adotou o discurso do “novo” sem conseguir
explicar o que é essa novidade, os principais rivais encontram outras
dificuldades. Por estar no poder há quatro anos, Dilma Rousseff (PT)
tem mais condições de apresentar números do governo, mas não consegue
mostrar como corrigirá a rota de um país que caminha para a recessão.
Aécio Neves (PSDB) critica o atual modelo de gestão da economia e
promete ampliar os programas sociais, entretanto, não apontou de onde
viriam os recursos para turbinar essas iniciativas.
Debate econômico
Aécio
e Dilma sentem-se mais à vontade do que Marina para entabular um
debate econômico, embora tenham visões distintas do atual momento
vivido pelo país. Os tucanos afirmam que a nação está quebrada, que a
atual gestão não soube preservar o legado da estabilidade econômica
deixado por Fernando Henrique Cardoso e que é fundamental uma troca de
comando para que o Brasil retome o rumo do desenvolvimento. “Se o seu
dinheiro, eleitor, está comprando as mesmas coisas que comprava no
passado, parabéns, Dilma merece um novo mandato. Mas se você acha que
não, como eu acredito que você pensa, então está na hora de mudar”,
sentenciou Aécio durante o debate presidencial da TV Bandeirantes na
semana passada.
Dilma reconhece que o país atravessa um momento
de vulnerabilidade — sobretudo após o anúncio, na última sexta-feira,
de nova retração do Produto Interno Bruto (PIB) no segundo trimestre
deste ano. Mas, ao contrário dos tucanos, a equipe econômica atribui a
recessão à crise internacional e à paralisia na economia do país
durante a Copa do Mundo. Por não assumir ser parte integrante do
problema, Dilma teria, na opinião de analistas ouvidos pelo Correio,
condições de defender a própria reeleição. “É aquela velha história do
capitão de um barco que está afundando. Dilma vai dizer que, no atual
momento, é muito mais arriscado trocar o timoneiro”, ponderou
Helcimara.
O debate econômico forçou Marina a entrar na
discussão. Nas últimas semanas, a socialista — que repaginou o visual,
tirando os óculos e adotando modelitos mais executivos, como o terninho
em substituição ao xale — passou a defender a autonomia do Banco
Central e tenta construir pontes de diálogo com o agronegócio, antes
avesso a qualquer interação com a “guerrilheira ambiental”, como chegou
a ser classificada pelo setor produtivo.
Entretanto, o
discurso econômico de Marina divulgado no programa de governo foi
ironizado no sábado pelo PSDB, que disse estar lisonjeado, pois algumas
propostas da candidata teriam sido copiadas dos tucanos. “O programa
dela, na verdade, reforça nossas ideias do ponto de vista econômico. Eu
me senti imensamente homenageado. Reproduz ponto de vista de gestão,
pegando exemplos de Minas Gerais, como a remuneração variável para os
servidores públicos da educação”, disse Aécio Neves.
Colaborou João ValadaresOBSTÁCULOS
Confira algumas dificuldades enfrentadas pelos presidenciáveis para formatar um discurso que cative o eleitor
Marina Silva
» Iniciou a trajetória política como uma ambientalista radical. Com a perspectiva de poder, abriu canais de diálogo com o agronegócio. O problema é que os apoiadores ligados à questão ambiental estão descontentes com a mudança de postura e o setor produtivo ainda não se convenceu do discurso.
» Ao incluir, no programa de governo apresentado na sexta-feira, reivindicações do público LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros), irritou os evangélicos. Ao retirar pontos sobre o tema no dia seguinte, desapontou os ativistas dos direitos homossexuais. Ao justificar a manobra, alegando “equívoco” na formulação do documento, demonstrou insegurança em relação às próprias propostas.
» Acena para uma nova configuração política, mas não explica como vai governar sem uma base de sustentação no Congresso e sem quadros técnicos para preencher os ministérios e demais órgãos da administração federal.
Aécio Neves
» Nas últimas semanas, prometeu aumentar os repasses aos programas sociais, propostas que geram impacto fiscal, sem, contudo, apontar fontes de recursos para as novas benesses.
Dilma Rousseff
» Aposta em um discurso com viés econômico, mas não consegue explicar de forma convincente por que a inflação está beirando o teto da meta e o crescimento econômico é pífio.
“A fragilidade de Marina não tem relação com a questão religiosa, mas vem da posição de uma candidata que, se eleita, precisará do apoio dos tucanos e dos petistas para governar”
Roberto Romano, cientista político
Albuquerque: campanha cometeu um erro
Após o recuo da candidata do PSB à Presidência da República, Marina Silva, que suprimiu do programa de governo o trecho em que assegurava o apoio a propostas legislativas em defesa do casamento de pessoas do mesmo sexo, o candidato a vice na chapa, deputado Beto Albuquerque (PSB-RS), admitiu ontem que a campanha cometeu um erro. “O equívoco foi uma campanha presidencial assumir compromissos com projetos de lei no Congresso, o que é uma invasão de competência. Então, não há recuo nos nossos compromissos com o movimento LGBT, com a defesa dos direitos civis desses companheiros, que, como todos os brasileiros, têm direitos assegurados”, disse, em Porto Alegre, onde participou de um corpo a corpo com eleitores.