Movimentos sociais criticam falta de diálogo do governo Dilma em Belo Monte7 fotos
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"Muro de pedras" construído pela Norte Energia em Vitória do Xingu, para impedir novas ocupações Letícia Leite/ISAAgência Pública
Reportagem da série "Cartas na Mesa", da Agência Pública, em que cidadãos brasileiros criticam os candidatos à Presidência da República
"O governo está trocando o pneu com o carro em movimento. O comitê
gestor tem deficiências no modelo de gestão, na presença da sociedade
civil e na transparência de seus atos. É importante ampliar para outras
pessoas essa participação da sociedade civil. Há um passivo do Estado
brasileiro em relação a comunidades tradicionais atingidas por
empreendimentos que é preciso reconhecer. Já passou a hora de
apresentar, junto com a sociedade, um modelo de gestão para esses
territórios."
A avaliação acima não foi feita pelos atingidos
pela hidrelétrica de Belo Monte. Vem do próprio governo federal, através
da secretária adjunta de Articulação Social da Secretaria-Geral da
Presidência da República, Juliana Gomes Miranda. Ela acompanha desde
2011 o projeto, exatamente na relação do governo com a comunidade. A Pública solicitou
entrevista com o ministro Gilberto Carvalho, responsável por esse
contato. Após informar que a conversa seria com o secretário de
Articulação Social, Paulo Maldos, e não com o ministro, a
Secretaria-Geral delegou a tarefa para Juliana.
As críticas ao
projeto feitas pela população do Xingu são bem mais incisivas que as
observações de Juliana. As mais indignadas são as que vêm do Movimento
Xingu Vivo para Sempre, uma organização que reúne grupos que não
aceitaram – e não aceitam – a construção da hidrelétrica: "É uma
ditadura. Não tem diálogo. Os movimentos sociais que são de resistência,
contra os projetos do PAC, o Gilberto Carvalho não recebe", diz uma das
líderes do Xingu Vivo, Antonia Melo. Só existe diálogo com os
movimentos que estão de acordo com a política do governo. Aí Dilma pode
até receber. Mas é para ficar calado."
Movimento Xingu Vivo Para Sempre/Agência Pública
Antonia Melo, do Xingu Vivo: "Só existe diálogo com os movimentos que concordam com a política do governo"
A ativista se refere ao Programa de Aceleração do Crescimento. Belo
Monte é uma das vitrines do PAC, com investimento total de R$ 28,9
bilhões, segundo o próprio governo. A promessa de campanha, embutida nas
propagandas televisivas, é a de que a usina beneficie 18 milhões de
pessoas, ou 60 milhões de consumidores. "Dilma veio aqui na
segunda-feira (dia 02/08) e soubemos em cima da hora", relata Antonia
Melo, referindo-se à agenda de campanha da candidata. "O aeroporto
ficou lotado de polícia, Exército, Força Nacional. Ela passou direto
para os canteiros da destruição. Deu entrevista defendendo
hidrelétricas, sequer procurou saber se o povo, a comunidade, as pessoas
atingidas estavam sendo respeitadas. Não há um mínimo de diálogo com a
população expulsa e massacrada".
A liderança do Xingu Vivo segue
disparando contra o projeto: "A outra situação grave é que a maioria
desses movimentos é cooptada pelo governo. Cargos, recursos para os
projetos. É um cala a boca. Movimentos que não aceitam são tratados como
bandidos, como inimigos. Seja com os indígenas, seja com os movimentos
que vão lá para reivindicar direitos – aí é cavalaria, bala de borracha,
gás lacrimogênio. Não tem conversa. É repressão. É um governo que tem
capa de governo popular, que tem todas essas aberturas, entre aspas, com
relação aos movimentos sociais, mas é uma grande farsa."
Antonia Melo faz uma ressalva em relação ao ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, que recebeu diversas organizações. "Mas tudo que prometeu
fazer não fez", dispara. Segundo ela, Lula ouviu os povos indígenas e
disse que, se o projeto não fosse viável, não ia impor goela abaixo.
"Falou isso para a gente em reunião e para o bispo Dom Erwin Kräutler.
No governo Dilma fomos novamente, com o cacique Raoni, tentar falar com
governo. Fomos recebidos com presença de muita polícia. Teve reunião na
Casa Civil. Mas tudo que os representantes do governo prometeram não
fizeram nada".
Dom Erwin Kräutler é bispo da Prelazia do Xingu e
presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), um dos parceiros
do Movimento Xingu Vivo para Sempre. Os povos indígenas estão entre os
principais atingidos pela usina, ao lado de populações ribeirinhas, como
os pescadores, somando 40 mil pessoas afetadas. Tanto pescadores como
indígenas chegaram a aceitar o projeto, mas, diante de promessas não
cumpridas, articulam novos protestos.
O advogado Leonardo Amorim, do Instituto Socioambiental, acompanha de
perto Belo Monte e confirma essa tendência até em relação a apoiadores
tradicionais. Organizações que eram a favor da usina no momento da
instalação, analisa, passaram a ter discurso crítico, diante da não
efetivação de direitos. Ele menciona o Fórum Regional de Desenvolvimento
Econômico e Socioambiental da Transamazônica e Xingu (Fort Xingu),
historicamente a favor da usina.
Esse fórum reúne grandes e
pequenos comerciantes que, segundo Amorim, "sempre fizeram lobby
pró-Belo Monte". "Até alguns meses atrás, quando foi dissolvido,
disseram que os ganhos que anteviam não vieram", relata o advogado. "A
saúde estava um caos, o saneamento sem garantia, criminalidade, preço
dos imóveis inviabilizando atividades".
Outro caso seria o do
Consórcio Belo Monte, uma aliança de municípios impactados, que adotou
um discurso mais crítico desde a instalação.
Um rápido histórico
Antonia Melo, do Xingu Vivo, ingressou nos movimentos sociais de
Altamira no fim dos anos 80. Um dos mais organizados era o de mulheres.
De lá para cá, houve seguidas dissensões. Boa parte das lideranças
ganhou funções nos governos federal ou estadual, especialmente na época
da governadora Ana Júlia Carepa, do PT, entre 2007 e 2010. Para a
ativista, o que houve foi cooptação.
Palavra que Juliana, da
Secretaria-Geral da Presidência República, rejeita. Ela diz – neste
momento, um tanto irritada – que entre os que reclamam há gente ligada
ao PSTU, ao PSOL, e que não é o caso de se falar em partidos.
Professora de sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Lorena Fleury fez doutorado sobre a Usina de Belo Monte. E tratou também
da relação do governo com os atingidos pela obra. Ela considera o caso
Belo Monte emblemático em relação à postura do governo com movimentos
sociais. "Coloca-se na postura de quem pretende elaborar diálogo, mas na
prática ele não se consolida", diz. "O governo aceita ouvir algumas
poucas lideranças, mas não atende nenhuma demanda. Muito pelo contrário.
Como a principal demanda de parar Belo Monte foi considerada
inaceitável, o diálogo começou inviabilizado".
Ela observa que o
Xingu Vivo nunca aceitou discutir a construção da usina. Uma postura
diferente daquela do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), por
exemplo, que tem maior histórico de interlocução com PT e, de tabela,
com o governo federal. O MAB, explica a pesquisadora, não aceitava
inicialmente discutir as condicionantes – as realizações que o governo
promete fazer diante dos impactos sociais e ambientais. Depois que a
obra foi iniciada, passou a negociar. "Houve uma reacomodação, e o Xingu
Vivo continuou tendo postura mais radical contra o governo".
Existe uma pré-história de Belo Monte, a Usina de Kararaô. Em 1989, as
organizações populares – de mulheres, indígenas, negros, já organizados
em torno dos impactos da Transamazônica – conseguiram derrubar o
projeto, que previa o alagamento de terras indígenas. Ao ser retomado, e
diante dos protestos contra a utilização do nome Kararaô, indígena, ele
se tornou a Usina de Belo Monte. "Esse movimento social era forte e foi
canalizado para o PT", explica Lorena Fleury. "O plano foi engavetado,
mas nunca saiu totalmente do horizonte do governo. E o PT era contrário.
Com a mudança do PT para o governo federal, várias dessas pessoas que
faziam oposição à hidrelétrica alçaram cargos associados ao governo. E o
PT assumiu o governo estadual. Com isso, mudaram de lugar".
Nos
anos 90, o setor das mulheres tinha se organizado na Fundação Viver,
Produzir e Preservar. E veio um período de relativa calmaria. Com Lula
eleito presidente, o projeto foi retomado. Segundo a pesquisadora da
UFRGS, o raciocínio era o seguinte: já que o PT estava no governo,
"vamos aceitar, desde que seja um projeto diferente". A percepção era a
de que não se podia fazer oposição a Lula, e necessário apoiá-lo. "As
que não aceitaram foram hostilizadas", diz Lorena. A fundação conseguiu
criar uma série de políticas para agricultura familiar. "Trocaram a
resistência a Belo Monte pela possibilidade de efetivar essas demandas.
Foi aí que se formou o Xingu Vivo, liderado pelas que saíram da
fundação".
As condicionantes
Com a adesão ao projeto
de setor significativo das organizações populares, a palavra
"condicionantes" passou a ser uma das mais pronunciadas na região.
Aceitava-se a obra desde que houvesse contrapartidas socioambientais,
pelo governo e pela Norte Energia – o consórcio responsável, desde abril
de 2010, pela construção da usina. O problema é que boa parte dessas
condicionantes não é cumprida – ou é cumprida de forma insuficiente.
Assim, mesmo entre aqueles que aceitaram o projeto forma-se uma
mobilização específica, para o cumprimento das promessas.
"A
lista de condicionantes é enorme e vai aumentando", explica Lorena
Fleury. "São mais de 50 condicionantes, no entanto o empreendedor não
consegue cumpri-las e são objeto de uma disputa muito grande". Isto
quando os moradores não se consideram enganados.
É o caso de
Otávio Gomes das Chagas, de 62 anos. Ele morava numa ilha na Volta
Grande do Xingu, inundada com a barragem. Lá, tinha uma roça, criava
galinhas. Agora mora em um baixão, termo utilizado na região para as
áreas pobres. Recebeu R$ 12.900 de indenização da Norte Energia e teve
de morar de aluguel. Não tem aposentadoria. A casa só tem um quarto e
uma sala, utilizada também como cozinha. "Mas nada dela presta: a água
não presta, é só ferrugem, tem de buscar no tanque, a mais de cem metros
de distância. Banheiro é o do vizinho". Otávio não se acostumou com a
cidade. E conta que, para pagar o aluguel de R$ 300,00, chega a ficar
sem comer. "Um ano que estou nesse aperrengue", diz. "Eu tenho
esperança de que eles me dessem uma moradia, ou terra para nós morar".
Antonia Melo, do Xingu Vivo, não tem dúvidas: "Ele foi enganado". Ela
diz que todos os moradores, por direito, deveriam ter sido colocados em
outra área do rio, onde poderiam continuar com suas atividades, sua
cultura. "A empresa não assentou nenhuma família, de acordo com a lei –
nem ribeirinhos, nem agricultores, nem famílias da cidade. Com
conivência e apoio do Judiciário. Seu Otávio é uma das vítimas. São
várias".
Advogado do Instituto SocioaAmbiental (ISA), Leonardo
Amorim conta que boa parte das ações antecipatórias – aquelas que
deveriam ter sido feitas antes das obras de construção da usina,
iniciadas em 2011 – ainda não foi cumprida. "No caso do reassentamento
urbano, não cumpriram nem 10% da construção das casas", conta. "O plano
original era que as 5 mil famílias urbanas fossem retiradas das áreas
alagadas. A reforma de um hospital e a construção de outros dois não
foram feitos".
Entre uma e outra defesa do governo e do projeto,
mais uma vez Juliana Miranda, da Secretaria-Geral da Presidência, é
sincera, em relação às condicionantes: "Tem condicionantes que não
adianta o poder público ter vontade se o empreendedor não agir". Com
isso se chega a um problema central de Belo Monte: as cobranças em
relação ao governo federal ganham como anteparo um consórcio privado.
Falta de transparência
Leonardo Amorim aponta a falta de transparência como outro tema central
em relação às contrapartidas. Assim como o Movimento dos Atingidos por
Barragens, o Instituto Socioambiental aceita as condicionantes, não é
inimigo do projeto. É parceiro da Fundação Viver, Produzir e Preservar,
governista, mas tem sua atividade junto às populações extrativistas
reconhecidas até pelo Xingu Vivo, de oposição.
25.set.2014
- A presidente da República e candidata à reeleição pelo PT, Dilma
Rousseff, faz caminhada no município de Feira de Santana (a 117
quilômetros de Salvador), nesta quinta-feira. Antes disso, a presidente
declarou disse que não acredita em choque fiscal e que o discurso sobre o
assunto feito pela candidata Marina Silva (PSB) é eleitoreiro. Nesta
semana, o governo sacou R$ 3 bilhões do Fundo Soberano para fechar as
contas Leia maisDivulgação
Mesmo assim o acompanhamento que faz das políticas públicas na região
de Altamira esbarra em obstáculos impostos pelo consórcio. "Do que eu
presenciei da relação entre governo e movimentos sociais o que mais me
chamou a atenção é que o processo é completamente intransparente. Eu já
fui expulso de várias reuniões. Não só em Altamira, mas em Brasília. No
meio de 2012, quando cheguei em Altamira, numa reunião entre Funai,
indígenas afetados e Norte Energia, o representante da Norte Energia
falou: o ISA está ali. A Funai (Fundação Nacional do Índio) não se
pronunciou, e fui expulso pelo porteiro."
Amorim lembra-se
também de uma reunião do Fórum de Acompanhamento Social, uma das
condicionantes previstas pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e
dos Recursos Renováveis (Ibama). Esse fórum foi concebido para o
empreendedor ter contato constante com a comunidade, e ser questionado
sobre os impactos. A reunião tratava do monitoramento dos impactos sobre
a pesca. Cem pescadores estavam em frente do prédio da Norte Energia.
Pelo microfone, ouviram que só quatro deles seriam recebidos. "Isso
provocou comoção geral, pescadores quiseram invadir o prédio", conta o
advogado. Quantos participaram? Quatro. "Eles voltaram de mãos abanando
para casa", conta o advogado. "E nunca mais teve reunião do fórum".
Em Brasília, nada tão diferente. Amorim foi a um workshop semestral,
sobre os relatórios feitos pela Norte Energia. O Ibama emite a cada seis
meses um parecer sobre esses relatórios. "Boa parte do trabalho do ISA é
ver as informações, divulgar para o Ministério Público, a Funai. E para
publicar placares de cumprimento de condicionantes. Fui há três meses
em uma dessas reuniões, em um hotel. O diretor socioambiental da Norte
Energia presidia a mesa. Bateu no meu ombro e disse: 'O senhor não foi
convidado'. E disse que ia chamar o segurança". Como se tratava de uma
reunião com um órgão público, ele pediu ata da reunião. "Disseram que
não há ata$escape.getQuote().O advogado lembra que tem perfil técnico,
especializado em questões ambientais. "Para gente é mais fácil, imagine
para os atingidos. Eles não têm a menor ideia do que é direito deles ou
que a Norte Energia faz para desviar a atenção do direito dos
atingidos".
Procurador do Ministério Público Federal, Ubiratan
Cazetta diz que o caso relativo ao advogado do ISA é uma distorção do
processo democrático. "O fato de o ISA ter uma atuação qualificada, que
possa ajudar os movimentos sociais, não pode servir como motivo para
excluí-lo de audiências públicas. É da essência do ato público", afirma.
"A regra é que qualquer um possa participar. Ainda que traga perguntas
indigestas, que é o papel dos movimentos sociais. O papel do
administrador é ter resposta a isso".
MP: de mãos atadas
O próprio Ministério Público se confessa impotente diante da lentidão
judicial – que perpetua situações denunciadas pela população. "Há uma
estratégia judicial de fazer que os projetos sejam postergados e as
obras sejam concluídas", afirma Cazetta. "Obtemos uma liminar, ela é
cassada por decisão de presidente do Tribunal de Justiça do Pará, e essa
decisão vigora até o fim do processo. Quando o processo chega ao fim,
dez anos depois, já há uma decisão consolidada".
Ele enumerou
vários exemplos nesse sentido. Um deles, uma ação proposta em 2006: uma
oitiva para conhecimento prévio do projeto pelas comunidades indígenas.
"O governo sustentava que iria ouvir. No licenciamento, não foram
ouvidos. O governo passou a sustentar que não era o caso porque não
havia alagamento. Nós ganhamos no Tribunal Regional Federal, mas o
processo não chega ao Supremo Tribunal Federal, está parado no TRF há
mais de um ano".
O procurador conclui que não há espaço de
diálogo verdadeiro, "seja com indígenas, seja com movimentos sociais".
Ele critica a utilização de um instrumento chamado suspensão de
segurança, válido só para presidentes de tribunais. "Ele continua sendo
utilizado e rompe com o caminho normal de uma decisão em processo
judicial", avalia. Essa decisão, explica Cazetta, não discute se a ação é
correta, ou se as provas são fortes ou não. "Simplesmente se faz uma
análise política – se afeta ou não a ordem pública ou o interesse
econômico do governo".
Esse seria o caso do desrespeito à
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, relativa aos
direitos dos povos indígenas. A OIT diz que o governo violou a
convenção. "Como o processo atrasou muito, o governo diz que a decisão
já se consolidou", diz Cazetta. Em relação ao alagamento de casas, a
mesma lógica. "Era uma oportunidade excelente de pensar Altamira para os
próximos anos. Pensar um bairro mais adequado, urbanização mais
moderna. Mas se abandonou a promessa inicial de três tipos de casas".
Movimento Xingu Vivo Para Sempre/Agência Pública
Direito dos indígenas a serem ouvidos, consagrado na Convenção 169 da OIT, está no centro do debate
Em pelo menos um caso essa imposição motivou gastos extras, conforme o relato de Amaury Juruna,
uma liderança local de sua etnia. Ele conta que o povo Araueté não pode
ter piso de concreto dentro da casa. Pelo hábito de enterrar seus
mortos no recinto. Também não podem ter janela, pelo medo dos espíritos.
Ao receberem a casa, como compensação pelo despejo, lá estavam: janela,
piso de concreto. Não aceitaram. "Perderam dinheiro, houve desperdício
de dinheiro público", constata o Juruna. Ele também fala de projetos
tecnicamente errados de casas de farinha. "Não fizeram pesquisa sobre a
cultura das etnias, uma coisa básica".Segundo o procurador, o
tipo de moradia do pr
ograma Minha Casa, Minha Vida não segue o padrão da
região. "Não é a área prometida", diz. "Sem pensar que as pessoas não
têm tecnologia para fazer qualquer tipo de alteração". Em relação ao
desperdício de dinheiro público, ele conta que a Norte Energia não se
sente obrigada a repassar detalhes sobre os gastos. Ou seja, trata-se de
uma caixa-preta.
Com tudo isso, o papel do Ministério Público
acaba sendo diminuído. Antes do início das obras, foi movida uma ação
sobre esvaziamento, pelo consórcio, de uma audiência pública, onde
centenas de pessoas foram impedidas de participar. Esse processo seguiu a
mesma lógica: foi arrastado. "Agora a obra já passou dos 50% de
construção", constata Cazetta. "O que vai mudar uma audiência pública
hoje? Nada". Ele conta que os próprios juízes dizem isso nas decisões.
"Aí o problema já se consolidou, você já teve alagamento de casas, as
pessoas já se mudaram".
Cazetta diz que o que sobra para o MP,
no fim das contas, é uma ação ineficaz. "O campo de atuação fica muito
limitado a boas ações. E a despertar o debate – chamar a população para
esse debate. Mais uma atuação de alerta do que propriamente efetiva",
define. "Algumas coisas são obtidas, algumas políticas públicas, algumas
compensações. Diante do tamanho do problema, ainda é pouco".
Acesso fechado
Antonia Melo, do Xingu Vivo, conta que não pode chegar perto dos
canteiros ou entrar em qualquer lugar da Norte Energia. Isto por decisão
da justiça estadual, que aceitou interditos proibitórios movidos pela
Norte Energia e pelo Consórcio Construtor de Belo Monte. Tanto o Xingu
Vivo como o MAB podem ser multados diariamente em R$ 50 mil, caso
desrespeitem a medida que visa impedir manifestações. "Sou acusada de
incentivar a invadir os canteiros", conta ela, que já coleciona sete
dessas proibições. Fora os processos. "Só não sou proibida de falar".
"É um remédio extremamente violento para impedir um discurso contrário
ao seu posicionamento", diz o procurador Ubiratan Cazetta. "Obviamente o
movimento social não pode fazer tudo que quiser. O problema é que
muitas vezes você tem uma situação em que o processo judicial é criado
justamente para criar constrangimento. Isso, pensando no fortalecimento
da sociedade civil, é uma perda". Ele observa que, como as ações são
movidas na justiça estadual, o MPF não pode atuar diretamente. "Não me
lembro de nenhuma decisão da Justiça Federal nesse contexto".
Cazetta observa que faltam defensores públicos. E que a falta de apoio e
estrutura leva à desinformação das organizações sociais. "Eventualmente
você tem outra entidade vinculada a direitos humanos, que tem advogado.
Mas é sempre aquela coisa informal. Tinha uma defensora em Altamira,
hoje não tem ninguém".
O Instituto Socioambiental fez um
registro fotográfico de um muro de pedras construído em Vitória do
Xingu, a nordeste de Altamira, onde fica a casa de força da
hidrelétrica. "Era o lugar onde os grupos entravam para derrubar",
relata Antonia. "Depois disso fizeram a muralha para impedir a entrada
de qualquer manifestante". O muro foi erguido em julho de 2013, um mês
após a ocupação feita por indígenas de oito etnias, pescadores e
ribeirinhos, que exigiam ser recebidos pelo governo.
Letícia Leite/ISAAgência Pública
"Muro de pedras" construído pela Norte Energia em Vitória do Xingu, para impedir novas ocupações
"Não é no canteiro de obras de Belo Monte que esse modelo vai ser
discutido", justifica Juliana Miranda, da Secretaria-Geral da
Presidência. "Existe um planejamento energético, colocado para consulta
pública. Canteiro de obras é para obras. Você já tem a licença prévia,
já iniciou o licenciamento ambiental. Queimou etapas. A discussão agora é
como garantir o envolvimento da sociedade".
A relação com os
trabalhadores nas obras também vem sendo conturbada. Em 2011, 2012 e
2013 houve várias greves, nem sempre encaradas de forma pacífica. Em
abril de 2012 um operário foi preso. Enquanto a Polícia Militar
utilizava bombas de gás e sprays de pimenta, outros policiais
sobrevoavam o local em um helicóptero da Norte Energia, conforme o
relato do Xingu Vivo. Um ano depois, foi a vez da Força Nacional
encurralar os operários, segundo o CSP-Conlutas, no canteiro Pimental.
Houve denúncia de sequestro de trabalhadores por policiais e seguranças.
Até um jornalista foi acusado de instigar as paralisações. Um dos
recursos utilizados pelo consórcio foi o mesmo ao longo desses anos: demissões.
Os povos indígenas
Antonia Melo lembra que, por um ano, aldeias indígenas receberam R$ 30
mil da Norte Energia, de verbas emergenciais. Ela diz que a Funai também
virou inimiga dos índios nesses projetos. "As pessoas nunca vieram aqui
falar com os índios, mas os ex-presidentes da fundação assinaram
documentos dizendo que eles tinham sido ouvidos", afirma. "Fizeram para
dividir os povos, como fazem com as outras lideranças. Como os indígenas
viram que não ganharam nada, continuaram com manifestações. Então
ganharam voadeiras, motores, carro. Hoje estão na Volta Grande do Xingu,
praticamente sem água. Os Xikrin dizem que o Rio Bacajá já está seco".
Lorena Fleury, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, observa
que, com os R$ 30 mil emergenciais para as aldeias, se tornou muito mais
atrativo para os indígenas aceitar Belo Monte. "Viram que aqueles que
se opunham estavam se desgastando e aceitaram esses recursos", analisa.
"Mas isso nunca significou que eles tivessem aceitado o conceito de Belo
Monte. É dentro dessa lógica que têm acontecido as ocupações mais
recentes".
Daí a estratégia de ocupar os canteiros, fechar, para
chamar atenção. A ocupação mais efetiva, segundo ela, foi a do povo
Munduruku. Eles ficaram por mais tempo e conseguiram destacar um maior
número de manifestantes, parando o empreendimento. "Virou uma questão
pública maior", diz Lorena.
Segundo ela, os indigenistas relatam
que os povos da região não são de guerra. "Por isso os Kaiapó e
Munduruku, mais combativos, eram necessários para essa mobilização".
Os Munduruku ocuparam durante oito dias o canteiro principal de obras
em Belo Monte. Eles pediam a suspensão de todos os empreendimentos
elétricos na Amazônia até que fosse feita consulta prévia aos povos
tradicionais, como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT).
O temor deles é relativo à construção de
hidrelétricas no Rio Tapajós, as próximas da fila, onde 12 mil membros
da etnia seriam afetados – além de 8 mil indígenas das etnias Kayabi e
Apiaká. O grupo passou oito dias ocupando o Canteiro Belo Monte e chegou
a Brasília em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB), após acordo com
o governo para desocupar o local. Lá, foram recebidos pelo ministro
Gilberto Carvalho.
Na prática, continua Lorena Fleury, as
condicionantes para povos indígenas têm sido completamente
negligenciadas. "Por mais que o empreendedor diga o contrário",
alfineta. "Há alguma ou outra mitigação, mas a regularização de terras e
as coisas estruturais não têm sido realizadas". Ela diz que as
ocupações mais recentes são uma forma de chamar atenção para as
condicionantes não resolvidas. E que há um descompasso entre o ritmo das
obras e a lentidão no atendimento das condicionantes que levou ao
embate mais efetivo, mais dramático.
Impacto na pesca
É
consenso entre os que participaram do processo de Belo Monte que os
pescadores foram os últimos a serem chamados. Em meio às discussões
iniciais, esqueceram-se deles. "No caso dos pescadores teve uma situação
que a gente puxou o freio e teve de rever toda a situação deles",
admite Juliana Miranda, a secretária adjunta de Mobilização Social da
Secretaria-Geral da Presidência.
Movimento Xingu Vivo Para Sempre/Agência Pública
"Grande Pescaria em Defesa do Xingu e Contra Belo Monte": protesto em março de 2011
O presidente da colônia de pescadores de Altamira, Lúcio Vale de Sousa,
diz que em momento algum, no caso de alguns impactos, os pescadores
foram procurados pelo governo. "No ponto principal, até agora não fomos
ouvidos", afirma.Ele conta que foram eles que procuraram o governo. "Já
fizemos reunião com o próprio consórcio, com o MP, Brasília, Ministério
da Pesca, representantes da Norte Energia, Ibama, todos os órgãos do
governo, e até agora não tivemos resposta".
Sousa quer
compensação para as famílias que estão sendo prejudicadas pela baixa no
setor pesqueiro. Próximo da barragem, não poderão mais pescar. Logo que
começaram a aterrar o rio, em 2012, os pescadores começaram a reclamar.
"A água ficou suja, com resíduo de dinamite", diz o sindicalista. Ele
explica que a dinamite é utilizada para fazer as turbinas dentro da
rocha.
O cotidiano dos pescadores, baseado nos ciclos da
natureza, acaba sendo alterado por causa do empreendimento. Diante da
claridade das luzes artificiais, aumenta a dificuldade de pescar. "Como
não tem diferença de iluminação, agora é tudo noite de luar", afirma
Sousa.
Em sua colônia são 800 pescadores na ativa. Nem todos são
atingidos pela barragem. O pescador diz que não foi estipulado um valor
para a indenização. "Queremos sentar na mesa com o governo", avisa. "A
gente está aqui para fazer acordo com eles. Até agora não sentaram na
mesa para compensar os prejuízos para a nossa categoria".
E o governo, o que diz?
O governo federal enxerga um cenário menos conflituoso. Alega que desde
2009 debateu a usina em audiências. Que, desde junho de 2011, se
desloca todo mês para Altamira e região, para debates. "Foi uma abertura
importante", diz Juliana Miranda. "Governo não chegou só com a obra,
mas com a face do desenvolvimento regional".
Ela também defende a
Casa de Governo Altamira, que chama de posto avançado da Presidência. É
um escritório da Casa Civil, do Ministério do Planejamento e
Secretaria-Geral. "De 2011 para cá comunicação tem sido diferente",
continua Juliana. "A gente tem de reconhecer que governo tem de abrir
mais. Não está tudo bem, não quero passar a ideia de que está tudo bem.
Ainda tem muito o que aprender e fazer melhor".
Em outro
momento, ela afirma que a sociedade começou a fazer o debate sobre
direitos com atraso. "Boa parte era o debate contra a obra", critica.
"Isso dominou a pauta. Enquanto isso a garantia de direitos foi ficando
secundária". Um bom exemplo seria a entrada do MAB no debate sobre
direitos dos pescadores e ribeirinhos. "Migrou de pauta contrária para
que direitos maiores sejam garantidos. E estragos maiores não
aconteçam".
Perguntada sobre eventual satisfação do governo com
suas ações, a secretária adjunta de Mobilização Social responde: "A
gente não está aqui para estar satisfeitos. Tenta colocar um ritmo na
região que garanta os direitos dessas pessoas. Não estamos. O local da
vila de pescadores não está definido, o acesso a embarcações, igarapés.
Infelizmente ainda está tudo sendo travado. Lá atrás, se os movimentos
sociais estivessem debatendo isso, talvez a gente não estivesse falando
desses problemas".
Sobre o passivo do Estado em relação a
comunidades atingidas por empreendimentos, Juliana diz que, além de
reconhecê-lo, o governo está trabalhando para "repactuar essa dívida".
Mas admite que a regulamentação dos empreendimentos, trabalho iniciado
em 2012, não necessariamente terá efeito em Belo Monte. "A gente não vai
só para mitigar, ser colchão, amortecer", considera. "Agora, até acho
que, se a gente conseguir mitigar, em parte vai fazer muita coisa".
Juliana rejeita a ideia, veiculada pelos movimentos sociais, de que a
imposição de Belo Monte tenha ocorrido por causa do perfil técnico
atribuído à presidente Dilma Rousseff: o de uma gerente, ex-ministra das
Minas e Energia, determinada a pôr em prática os projetos relativos à
geração de energia, e com insensibilidade em relação ao cotidiano de
populações tradicionais. Ela menciona o diálogo com os Munduruku e a
coordenação de um seminário nacional sobre matriz energética, em 2012,
como exemplos contrários.
"Quando o governo chama o MAB, quando
as estatais sentam para discutir barragens, todos falamos em nome dela,
porque ela nos orientou a debater e dialogar", analisa. "Talvez o
sentimento dessas pessoas seja o de não ter sentado diretamente com ela.
Mas o governo não é fechado para o debate. Há um esforço. Que precisa
ser aprofundado".
Ela lembra que, em julho do ano passado, Dilma
sentou para conversar com 27 lideranças indígenas. E que fez mais de 20
reuniões com organizações. "Recebe todo ano movimentos rurais, do
campo", diz Juliana. "Não fez demarcação de terras indígenas, mas fez
desintrusões, no Mato Grosso e no Maranhão".
Juliana observa
que, quando o governo fez a desintrusão da Terra Indígena Maraiwatséde,
no Mato Grosso, o STF foi invadido por opositores da medida. "Não é só o
Poder Executivo que é invadido por agenda privada", constata. "O Estado
brasileiro é muito mais aberto para o poder privado do que para o poder
social. Nunca existirá satisfação com nosso trabalho, mas
continuaremos. Faremos que qualquer um dos grandes empreendimentos
garantam direitos humanos, garantias sociais".
A Norte Energia responde
Embora tenham sido feitos vários pedidos de entrevista, para que fossem
detalhados os diversos temas levantados pela reportagem, a Norte
Energia limitou-se a emitir um comunicado, por meio de sua assessoria de
imprensa, com dados gerais do projeto e uma lista das condicionantes
socioambientais realizadas ou a realizar.
"Há muitas inverdades
faladas por pessoas contrárias à hidrelétrica que vai beneficiar 60
milhões de brasileiros", escreveu o porta-voz da empresa, Delorgel
Kaiser. Segundo ele, a Norte Energia destinou mais de R$ 1 bilhão para
ações do Projeto Básico Ambiental nos municípios das áreas de influência
da usina, de um total de R$ 3,2 bilhões programados. A esse número se
somam R$ 500 milhões do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do
Xingu.
O Projeto Básico Ambiental, informa a empresa, envolve
117 projetos de cunho ambiental, econômico, social e cultural
desenvolvidos na região do Xingu como parte do licenciamento ambiental
do empreendimento. "Os recursos contemplam também o plano emergencial
que atendeu às comunidades indígenas entre 2010 e 2012", diz o texto.
Sobre cooptação de lideranças indígenas e doação de voadeiras, Kaiser
responde que são críticas "desmontadas pelos fatos". "Todas as ações
desenvolvidas em áreas indígenas são pactuadas com os órgãos
responsáveis e com a Funai, que, em maio de 2014, assinou com
a Norte Energia um Termo de Compromisso que define a forma de
acompanhamento dos projetos, com participação de lideranças indígenas".
Logo em seguida o porta-voz admite que houve doação de equipamentos, na
fase do Plano Emergencial, entre 2010 e 2012, "como barcos, motores,
geradores, veículos e lubrificantes", com doação de mais de 1 milhão de
litros de combustível. "A empresa apenas atendeu a uma exigência das
próprias lideranças indígenas, apoiada pela Funai", justifica.
O
assessor diz que, desde novembro de 2010, a Norte Energia destinou R$
153 milhões para a melhoria da qualidade de vida das comunidades
indígenas da região. "Os reservatórios da UHE Belo Monte não alagarão
nenhum centímetro de terra indígena, e parte das aldeias beneficiadas
encontra-se a centenas de quilômetros de distância da área do
empreendimento".
Um modelo de desenvolvimento
Coordenador da ONG Terra de Direitos, Darcy Frigo considera necessário
levar em conta o modelo de consórcio privado central para se discutir o
conflito. "As grandes empresas procuram o Judiciário para se proteger
contra os movimentos sociais", afirma. "O governo diz que instala uma
representação local para tentar amenizar os efeitos do projeto, mas na
prática quem dá as cartas na cidade, no âmbito local, é o poder privado.
Em Altamira, tudo é muito mediado pelos interesses da Norte Energia.
Eles buscam a interdição do protesto e a criminalização dos movimentos
sociais".
O procurador Ubiratan Cazetta concorda: "Belo Monte
não é o único exemplo". "O país tem dificuldade muito grande de
trabalhar grandes empreendimentos em locais onde movimentos sociais são
atingidos". Ele diz que a lógica do "progresso ou atraso" já existia nos
governos da ditadura e continua. "Há um problema na implantação de
grandes empreendimentos, de chegar com a decisão tomada. Com um espaço
muito pequeno de negociação e de oitiva das realidades ribeirinhas,
indígenas. Não é exclusividade do governo Dilma".
Darcy Frigo
diz que o problema está em como a sociedade determina o que ela quer em
termos de demanda de energia. "A partir daí os interesses privados, os
lobbies políticos fazem pressão sobre o Estado", afirma. Ele sustenta
que as decisões centrais desse processo não acontecem na
Secretaria-Geral, e sim na área econômica e no Ministério de Minas e
Energia. Em espaços anteriores.
"Quando o conflito eclode você
chama os agentes públicos para mediar, mas a decisão está tomada em
outra esfera", analisa Frigo. "Não basta fazer consultas quando o
empreendimento já está em fase de licitação. Já houve Plano Decenal lá
atrás, e lá foi definida a política para obtenção de energia. A agenda
de mediação é residual – não consegue mais mudar o curso desses
empreendimentos. Gera uma contradição que é parte desse modelo de
desenvolvimento no nosso país".
Greenpeace sobrevoa Belo Monte e mostra impacto da obra13 fotos
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Greenpeace
faz sobrevoo dos canteiros das obras da Usina Hidrelétrica de Belo
Monte. Na foto, obras no canteiro do Sitio Pimental. A hidrelétrica
deverá entrar em operação em 2015 após um investimento de US$ 10,6
bilhões e sua capacidade de geração será de no máximo 11.233 megawatts
nas épocas de alta do Rio Xingu. A obra é questionada por ecologistas,
indígenas e pescadores por seus enormes impactos ambientais na Amazônia,
e até a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA
chegou a recomendar sua suspensão Marizilda Cruppe/EVE/Greenpeace